Prometi abrir o post hoje com a entrevista que fiz com Dorival Filho.
Não cumpri a promessa porque acabei subindo dois posts, o do discurso da vitória de Dilma e do rescaldo da eleição polarizada que vivemos.
Mas esta entrevista, prometida desde ontem, estava aqui no rascunho, por algum motivo respeitei o fato de o entrevistado nunca ter se “desnudado” como o fez agora. Talvez por isso só tenha decidido publicá-la hoje.
E por algum motivo lá no fundo de minha alma, sabia que ela seria importante Dilma vencendo ou não estas eleições.
Sou educadora e sim, toda a história de inclusão me fortalece, me reanima, ressignifica minha vida.
Esta é uma das histórias de superação mais bonitas que li e agradeço ao Dorival, por ter vindo aqui no blog e comentar um post onde eu o havia citado o que me permitiu encontrá-lo.
Apreciem a beleza desta história, retrato deste novo país que estamos construindo que de acordo com seu contundente depoimento o povo vai se tornando protagonista:
Talvez seja mais fácil ser otimista para quem nunca precisou disputar o seu café da manhã com vários urubus, alegrar seus sobrinhos com brinquedos desprezados e doces com validade vencida ou presentear sua mãe com um vestido que alguém não quis mais usar e descartou no lixo.
Dorival catava restos no lixão, hoje é doutorando da UFSC.
Ele me conta que em sua infância havia dias que ia pra escola e não conseguia escrever com as mãos feridas de cacos de vidro, cortadas no garimpo do lixão. Hoje é cidadão.
Lutamos para que nunca mais nenhuma criança tenha de sobreviver num lixão. Obrigada, Dorival. Obrigada, povo brasileiro.
Onde você nasceu, quantos anos tem, conte um pouco esta trajetória. O que afinal significa dizer ‘sair do lixão’? Vc foi catador? Explique este contexto para os leitores.
Dorival G.S. Filho: Nasci em Piedade, interior de São Paulo em 1982. Trata-se de uma pequena cidade próxima a Sorocaba. Infelizmente, a maioria das oportunidades de emprego era na lavoura e a disputa por uma vaga era acirrada. Na minha infância, trabalhei no corte de cebola e depois colhi morango por alguns anos. Nesse período, tive que deixar de estudar para me dedicar só ao trabalho na lavoura. Nessa fase da minha vida eu não consegui conciliar trabalho e estudo.
Em 2001, em meio à crise que o País passava, a única oportunidade de trabalho que encontrei foi no lixão. Minha mãe era gari e a única fonte de renda da nossa família que estava cada vez mais escassa, então, resolvi enfrentar o lixão. Lembro-me como se fosse hoje, o cheiro forte, a companhia dos cães abandonados, os olhares vazios dos catadores, e a disputa dos humanos com os animais pela comida, a cada caminhão que chegava para despejar o lixo.
Aprendi que o trabalho no lixão era chamado de garimpo e, logo, me adaptei ao serviço. Nunca imaginei que o ser humano podia se tornar invisível, mas pode. Ao entrar no ramo do garimpo, me tornei invisível.
Éramos como uma comunidade a parte. Todos os dias, chegávamos às 6:00 para esperar o primeiro caminhão. Enquanto aguardávamos, cada um falava o que estava precisando: roupas de bebês para a filha grávida, dizia uma das garimpeiras. Hoje preciso de sapatos para meus netos irem à escola, dizia outra. Eu sempre pedia que quando alguém achasse livros que guardassem para mim.
Cada dia era uma surpresa no lixão. Tinha dia que universitários iam fazer pesquisa e curta metragens. Outro dia, iam políticos para nos tirar de lá, uma vez que a prefeitura seria multada, segundo eles. Às vezes, senhoras a procura de uma jóia da família que desaparecera ou papéis importantes.
Com o tempo fui adquirindo mais experiência e já sabia identificar o lixo do rico e o lixo do pobre. O nosso ouro era o cobre, mas qualquer coisa podíamos vender: relógios, bijuterias, joias valiosas, etc.
Às 17:00 era o momento de retornar para casa e meus cães (adotados do lixão) e meus sobrinhos já me aguardavam na esquina, os primeiros a espera de comida, os segundos à espera dos brinquedos ou de doces que eu encontrava. Após algum tempo no garimpo, resolvi que tinha que voltar a estudar e assim o fiz, trabalhando de dia e estudando à noite. Não foi fácil! Tinha dias que eu só ia para a escola para ouvir os professores, pois os diversos cortes nos dedos causados pelos cacos de vidro presentes nos sacos de lixo não me permitiam usar lápis ou caneta sem tingir meu caderno de sangue. Consegui tantos livros que meu quarto se transformou numa biblioteca. Pelos meus cálculos, eu adquiri mais de três mil livros.
Após muito incentivo dos professores, em 2006, resolvi que queria fazer o curso de Letras. A professora de português me falou sobre o PROUNI, então tripliquei os estudos, estava decidido a deixar o lixão. Fiz o ENEM e o vestibular da UNESP. Após os três dias de prova da Vunesp, tive a certeza que deixaria o lixão. Começava, a partir daí, uma nova etapa da minha vida.
Você afirma que foram os governos Lula e Dilma que transformaram sua vida. Como isso aconteceu? Que políticas desses governos beneficiaram diretamente a sua vida?
Dorival G.S. Filho: Sim, esses governos tiveram e têm um papel fundamental na vida da minha família e na minha. O bolsa família, por exemplo, ajudou a complementar a renda familiar. Minha irmã recebeu esse benefício do governo Lula e isso representou comida na nossa mesa, comida comprada e não restos de comida do lixão.
Para entrar na faculdade, eu me preparei pensando no PROUNI, mas felizmente não precisei usufruir desse programa.
O Brasil passava por uma transformação: meus irmãos tinham empregos e eu estava me graduando.
Para fugir da violência de São Paulo, minha família se mudou em 2010 para Santa Catarina. Nesse mesmo ano, eu terminei o meu curso e me licenciei em Português/Francês.
Hoje, recebo bolsa do doutorado que de 2002 para cá cresceu 187%.
Poderia numerar os diversos benefícios dos governo Lula e Dilma, mas não haveria espaço.
Para o candidato Aécio e antes também presente no discurso da candidata Marina, sair da extrema-pobreza é só uma questão de mérito pessoal. E há muito deste discurso circulando entre os ‘colonistas’ da Veja, por exemplo. O que você tem a dizer aos jovens que repetem este discurso?
Dorival G.S. Filho: Garanto que não é só mérito pessoal. Vivi o governo de FHC e posso afirmar categoricamente que se o PSDB estivesse no poder, eu ainda estaria no lixão. Não havia perspectiva de melhora no governo tucano.
Falando pela minha família, posso afirmar que havia fome, muita fome. O Bolsa Família significou comida na mesa. A última vez que fui a São Paulo, visitei meus companheiros de garimpo. Alguns, infelizmente, já faleceram, outros vivem dizendo que eu sou o orgulho da “família”. Todos são beneficiários do Bolsa Família e uma das garimpeiras tem a sua casa pelo Minha casa, minha vida.
Aos jovens eu só posso dizer uma coisa: você pode ser o mais esforçado, o mais otimista, mas se faltar oportunidade e apoio o esforço será em vão.
Talvez seja mais fácil ser otimista para quem nunca precisou disputar o seu café da manhã com vários urubus, alegrar seus sobrinhos com brinquedos desprezados e doces com validade vencida ou presentear sua mãe com um vestido que alguém não quis mais usar e descartou no lixo.
Hoje, você está fazendo doutorado em uma universidade federal em Santa Catarina, como isso ocorreu? Onde você se graduou, qual foi seu mestrado e onde e como foi fazer o doutorado na UFSC?
Dorival G.S. Filho: Minha graduação foi na UNESP – campus de Assis, interior de São Paulo. Fui com o dinheiro de um mês de aluguel, mas com milhões de esperanças.
Nos quatro anos de graduação recebi ajuda de algumas pessoas e da minha família também. Consegui a bolsa de auxílio que não era suficiente para cobrir os gastos, então, resolvi trabalhar: até às 14:00 trabalhava numa lavanderia, depois junto com um professor, fazia a divulgação do vestibular da UNESP, em seguida ia para a faculdade à noite e, finalmente, exercia a função de cuidador de um senhor idoso. Essa era minha rotina.
Minha família se mudou para Santa Catarina em 2010 e ao terminar a graduação, resolvi também me mudar para cá. Com o diploma nas mãos, comecei a lecionar em escolas públicas, mas eu queria mais. Fiz o exame de seleção de Mestrado pela UFSC e passei. Tive que me mudar para Florianópolis, pois consegui a bolsa na primeira semana de aula. Foram dois anos intensos de estudos até que defendi a minha dissertação em setembro de 2013, em Semântica Cognitiva. O Brasil continuava se transformando e eu também. Eu queria mais. No final de 2013, fiz o exame de seleção de doutorado e aqui estou.
Por que na área de Linguística? Se você fosse fazer uma leitura semiótica do Brasil antes e pós Lula, qual seria o quadro?
Dorival G.S. Filho: Minha mãe sempre foi uma ótima leitora. Lia de tudo e acabou me influenciando. Sempre gostei de ler, mas esse não foi o motivo para eu escolher a área de Linguística.
O termo linguística chamou muito a minha atenção no livro de Francisco da Silva Borba – Introdução aos estudos linguísticos, o primeiro livro que encontrei no garimpo. Mas acredito que essa ciência que investiga a linguagem humana em todas as suas manifestações é, por si só, fascinante e isso me instigou. Claro que não posso esquecer da minha querida orientadora na graduação que me mostrou a ciência linguística. Investigar como a fala é produzida e compreendida sempre me deixa com mais vontade de aprender.
A leitura semiótica do Brasil antes de Lula, pensando em Charles Sanders Peirce, era o da elite dominante. Dos poucos ditando as regras para os muitos, do pobre como coadjuvante, do governo que não enxergava que o país era de todos os brasileiros, do povo que não tinha mais esperança, da falta de perspectiva, do sofrimento.O quadro pós Lula é esse que vivemos. Oportunidades para todos, um país de todos, gigante no tamanho e na força de seu povo que agora tem o papel de protagonista, do catador que um dia pode ser doutor, da mãe que tem seus filhos na faculdade, do pai que tem emprego, da criança que tem escola, da prosperidade.
Um país cinzento antes de Lula e com cores vivas pós lula. Esse é o País que sempre sonhei e é esse país que estou vivenciando.
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