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3 de Abril de 2011, 21:00 , por Desconhecido - | No one following this article yet.
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Pablo Ortellado: Os protestos de junho entre o processo e o resultado

27 de Outubro de 2013, 9:24, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

CartaCapital publica o artigo de Pablo Ortellado (ativista e professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP), parte do livro “Vinte Centavos: A Luta Contra o Aumento”

Os protestos de junho entre o processo e o resultado

Por Pablo Ortellado, Carta Capital

27/10/2013 09:37

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Tânia Rêgo / Agência Brasil. Manifestantes em protesto no centro do Rio de Janeiro do dia 13 de junho, uma das datas retratada no livro “Vinte Centavos: A Luta Contra o Aumento”

Vergnügungs-Reisende. – Sie steigen wie Tiere den Berg hinauf, dumm und schwitzend; man hatte ihnen zu sagen vergessen, daß es unterwegs schöne Aussichten gebe.

[Turistas - sobem a montanha como animais, estúpidos e suados. Esqueceram de lhes dizer que há uma bela vista no caminho.]

F. Nietzsche. Der Wanderer und sein Schatten, 202.

Durante muitos anos, os novos movimentos viveram sob uma tensão entre processo e resultado. A experiência dos protestos de junho deixa dois legados opostos: o da mais extrema dispersão processual e o da fértil conjugação de processo e resultado na luta contra o aumento.

Temos assistido nas últimas décadas ao nascimento de movimentos horizontais na forma de organização e autônomos em relação a partidos e instituições. Esses movimentos frequentemente valorizam mais o processo do que o resultado: é o meio pelo qual atuam, a horizontalidade, a democracia direta, assim como a criatividade das suas ações, que dão a eles sabor e sentido. As lutas são ao mesmo tempo experiências vivas de uma democracia comunitária e espaço de autoexpressão contracultural. Algumas vezes, essa dimensão processual é sobrevalorizada e mesmo contraposta aos resultados práticos da ação política.

Há quase 40 anos Mario Tronti propôs a inversão da máxima leninista de que o movimento agia no curto prazo e o partido no longo. Para Lenin, os trabalhadores deixados à própria sorte se perderiam em inócuas lutas sindicais por aumento de salários que, caso fossem vitoriosas, seriam pouco a pouco revertidas pelo aumento do custo de vida. Era preciso um partido que subordinasse essa luta de curto prazo a um programa de transformação de longo prazo, orientado por um entendimento científico da sociedade. Tronti inverte essa máxima, notando que é o movimento que faz a mudança de longo prazo, ao modificar estruturalmente as relações sociais, e que ao partido político (na sua acepção parlamentar) cabe apenas a luta por conquistas pontuais.

Mais ou menos no mesmo período, Carl Boggs entendia que os novos movimentos caracterizavam-se por um comunismo prefigurativo que tinha como antecedente e modelo os conselhos operários. Nos conselhos operários, a forma de organização assembleísta prenunciava e antecipava a democracia radical que se pretendia – ele a prefigurava. Não se tratava mais apenas de perseguir a meta de uma sociedade livre e igualitária, mas de ver as estruturas internas do movimento como a gênese do futuro socialista. Era o próprio processo de luta que precisava antecipar o novo mundo que se buscava. Os meios prefiguravam os fins.

Em nenhum outro lugar como na assembleia dos novos movimentos as tensões entre processo e resultado são vistas com tanta clareza. Não se trata mais apenas de tomar uma decisão que contemple a pluralidade das perspectivas constitutivas da coletividade, mas também de participar de uma experiência comunitária. A tomada da palavra não busca unicamente contribuir para aprimorar a decisão – busca a autoexpressão e a participação. Tudo o que já foi dito precisa ser dito outra vez por quem ainda não falou. Como observou Cornelius Castoriadis, nenhum dos novos democratas do direito irrestrito à palavra conseguiria sustentar um discurso redundante ou vazio sem receber uma sonora vaia da multidão na Atenas clássica.

A sobrevalorização do processo em detrimento do resultado não é uma característica apenas dos movimentos. A cobertura da grande imprensa (e mesmo a da alternativa – que em geral apenas inverte os sinais do discurso dominante) também só se concentra no processo: é na forma de luta, tanto a da “violência” do vandalismo como a da criatividade da intervenção contracultural, que o olhar se detém. Sobre a reivindicação política à qual supostamente tudo está orientado, pouco se diz.

 II

A tensão entre processo e resultado tem como marco simbólico a Marcha do Pentágono em Washington, em outubro de 1967, quando os modos de ação dos novos e dos velhos movimentos explicitamente divergiram. De um lado, o ato tradicional com oradores pelo fim da guerra contra o Vietnã, organizado pelo Comitê nacional de mobilização; de outro, a tentativa de fazer o Pentágono levitar com milhares de pessoas entoando o mantra “Om”, organizada por Jerry Rubin, Abbie Hoffman e Allen Ginsberg. Os debates sobre a tentativa de fazer o Pentágono levitar opunham, de um lado, os que achavam que se tratava de incompreensível futilidade, algo como desperdiçar anos de trabalho de conscientização contra a guerra e, do outro, aqueles que elogiavam a capacidade mobilizadora da performance contracultural, além da sua potência processual de pura e simples diversão.

A autocompreensão do movimento contra a liberalização econômica (“antiglobalização”) era a de que tinha reunificado o movimento social que se cindira nos anos 1970. Naquela década, as lutas dos negros, das mulheres e dos estudantes tinham se fragmentado, emancipando-se da força unificadora do movimento operário. O neoliberalismo afetava simultaneamente as mulheres, que trabalhavam em más condições nas sweatshops; os trabalhadores, que perdiam direitos para que Estados nacionais pudessem atrair investimentos; e o meio ambiente, que perdia instrumentos legais de proteção para permitir a expansão de empreendimentos econômicos. Esse amplo espectro de efeitos permitia que fosse forjada sobre eles uma unidade de luta que tinha por objetivo barrar o neoliberalismo. No entanto, os instrumentos práticos para atingir esse objetivo eram obscuros porque o processo de liberalização econômica era transnacional e, assim, iniciativas nacionais antineoliberais eram simplesmente minadas pelo deslocamento do capital financeiro para outros mercados. A ausência de uma estratégia clara colaborou para a grande ênfase depositada nos processos.

O movimento contra a liberalização econômica discutiu como nunca antes os seus processos. Explicitamente apoiado na ideologia da política prefigurativa, os debates sobre democracia interna e estratégia de luta foram mais centrais do que as críticas contra os efeitos nefastos da desregulamentação dos mercados. “A decisão deixa a desejar, mas o processo foi perfeito”, ironizava com frequência uma influente ativista do Direct Action Network, após assembleias inócuas. Quando os movimentos se reuniram em Seattle para um bloqueio “não violento” da Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio e um grupo dissidente questionou a estratégia da não violência, tudo passou a girar em torno do Black Bloc. “A violência do Black Bloc faz parte do mundo que queremos?”, “A violência da resistência deve ser julgada da mesma maneira que a violência da opressão?”, “Afinal, destruir propriedade é mesmo violento?” Como resultado do debate, emergiu meses depois a doutrina da diversidade de táticas, na qual as formas de luta são todas acolhidas no espírito zapatista do mundo onde cabem muitos mundos. A reunião da OMC foi malograda, muito mais por divergências entre países centrais e periféricos do que pela ação do Direct Action Network e do Black Bloc. Apesar disso, os muros da cidade foram grafitados: “Estamos vencendo!”

Em 2011, a revista canadense Adbusters divulgou um cartaz no qual uma bailarina dançava sobre o touro que simboliza a bolsa de valores de Nova York, convocando ativistas a ocuparem Wall Street. No alto do cartaz, lia-se a instigante pergunta: “Qual é nossa única demanda?” O objetivo da provocação era estimular os futuros ocupantes a mimetizar a mobilização egípcia que tinha tomado a praça Tahir com uma demanda única clara: a saída de Mubarak. Será que a objetividade de propósito dos egípcios poderia inspirar os ativistas dos novos movimentos? As discussões iniciais sobre qual seria a demanda única do Occupy Wall Street giraram em torno da taxa Tobin e da criação de uma comissão presidencial para tratar da dominação do poder econômico sobre o sistema político. Mas nenhuma das sugestões parecia contentar as insatisfações. No quinto comunicado, o movimento anuncia sua única demanda: “Acabar com a pena de morte é nossa única demanda … Acabar com a desigualdade de renda é nossa única demanda … Acabar com a pobreza é nossa única demanda … Acabar com a guerra é nossa única demanda”. Os sonhos dos ocupantes não cabiam em uma demanda única. O movimento decidiu que não queria os seus 20 centavos.

 III

Uma das razões que fazem com que os novos movimentos se concentrem em processos é que a orientação a resultados exige confrontar nosso desconforto com a política – desconforto consolidado por uma exclusão secular da participação na vida pública.

Maquiavel assombrou o seu tempo quando explicitou e defendeu o uso da razão de Estado pelos Médici para realizar a patriótica tarefa de submeter a um só poder o território da península itálica. As observações que recolheu no exercício da vida diplomática indicavam duas lições complementares: o reconhecimento de uma legalidade própria dos negócios de Estado e a compreensão de que o povo miúdo não era capaz de entendê-la. É por esse motivo que o príncipe maquiaveliano deve, simultaneamente, na política, desprender-se das restrições normativas características da vida privada, mas sempre fazer parecer que vive por elas.

Na famosa conferência aos estudantes de Munique, Max Weber quer ressaltar a lição fundamental de Maquiavel para aqueles jovens que ascendiam à responsabilidade política por meio da luta social na revolução alemã. A contraposição didática entre o principismo da moralidade privada e a lógica de resultados da política buscava preparar esse novos atores para os difíceis dilemas que enfrentariam.

Quando, no ciclo de lutas dos anos 1970, a democracia interna dos novos movimentos dá um salto, vem com ela a flagrante incapacidade de fazer política. Não se trata apenas dos difíceis dilemas das mãos sujas que sempre fizeram hesitar até mesmo os homens e mulheres de Estado. Tarefas triviais que podem comprometer um radicalismo de princípios passam a ser sistematicamente evitadas. Falar com a grande imprensa, receber doações ou negociar com o poder público aparecem não como opções táticas a serem julgadas com respeito aos resultados práticos da luta, mas como comprometimento dos ideais anticapitalistas incompatíveis com a imprensa empresarial, o mercado e o Estado. O radicalismo não se define mais pela capacidade ou pelo esforço de atingir uma transformação social profunda, mas pela integridade do idealismo. Entre a imobilidade do respeito aos princípios e o risco da ação política, prevalece a imobilidade. O radicalismo se torna apático.

A ascensão dos novos movimentos indicava um potencial de transformação que permanecia inatualizado pelo principismo daqueles que sempre estiveram afastados da política. Tentativas de enfrentar abertamente esse principismo normalmente resultaram em acusações de pragmatismo leninista. Curiosamente, a história secreta de cada uma das novas lutas é a de lideranças pragmáticas cumprindo, nas costas do movimento, as tarefas necessárias que ninguém quis enfrentar ou discutir. O resultado é paradoxal: movimentos que, por um lado, valorizam e zelam pelo seu processo democrático e que, por outro, arriscam essa democracia por conta da incapacidade que têm de lidar com táticas e estratégias orientadas a resultados.

Se o processo de desenvolvimento das lutas no capitalismo é um processo de aprofundamento da democracia – ou seja, se a luta de alguma maneira prepara o advento de uma sociedade livre e igualitária, então esse processo deve incorporar uma crescente capacidade de fazer política. A valorização da criatividade e da democracia no processo de luta precisa ser combinada com a incorporação de um entendimento maduro de que a política se mede por resultados. A lógica imanente à ação política desvelada por Maquiavel precisa ser dissolvida num processo democrático no qual a dominação e o logro se convertem em estratégia emancipatória transparente. Precisamos de um maquiavelismo difuso, uma filosofia moral para a multidão em antagonismo.

IV

Os protestos de junho deixam dois legados opostos: de um lado, a explosão de manifestações com pautas difusas e sem qualquer orientação a resultados; de outro, a luta contra o aumento conduzida pelo MPL com profundo sentido de tática e estratégia.

Durante os momentos finais da campanha contra o aumento das passagens, a luta foi tomada de assalto pela difusão de pauta. Quando o aumento foi revogado, a agitação permaneceu órfã e a difusão de pauta se apoderou de vez do processo. Estabeleceu-se um ativismo processual muito pouco orientado a resultados. Em relação a fenômenos semelhantes em outros países ele foi mais extremo: não se tratava apenas da dificuldade de encontrar um objetivo exequível comum, como se viu no Occupy Wall Street ou no 15M espanhol, mas da incapacidade de encontrar um horizonte ideológico comum, mesmo que vago. Na ausência de orientação política, o movimento se consumiu em questões processuais, principalmente a respeito dos modos de luta. Não é por acaso que os debates que se viram no final dos anos 1990 em torno do Black Bloc ressurgiram com toda a força, agora na forma de debates sobre os limites entre uma respeitável e cívica mobilização cidadã e uma criminosa ação de vândalos. Sem objetivos claros, os processos foram discutidos numa chave principista e sem referência aos resultados. Sob esse aspecto, junho foi o mês no qual explodiu uma indignação difusa, um enigma a ser decifrado pela grande imprensa e seus analistas.

A estratégia do Movimento Passe Livre é um acúmulo de aprendizados de lutas sociais pregressas. Em 2003, os estudantes de Salvador bloquearam as vias da cidade para protestar contra o aumento das passagens de ônibus. A mobilização foi espontânea e horizontal, mas carecia de pessoas ou grupos de referência legitimados pelo movimento para fazer a mediação com o poder público. Na ausência dessas referências, a UNE ocupou o papel e subordinou, de maneira leninista, a pauta dos estudantes pela redução das passagens à sua agenda partidária. O MPL aprendeu com essa experiência que era preciso que o movimento tivesse uma expressão política própria ao mesmo tempo horizontal e contrária ao aumento – em outras palavras, que estivesse de acordo com seu processo e sua meta.

O MPL apreendeu e desenvolveu a lógica imanente às lutas dos jovens e dos estudantes contra o custo das passagens. A evolução da luta pela meia passagem dos anos 1980 para a luta pelo passe livre estudantil dos anos 1990 e dessa para a luta contra o aumento das passagens dos anos 2000 revela uma lógica de luta voltada para a ampliação de direitos que, devidamente desdobrada, remete  à tarifa zero e à desmercantilização do transporte para todos. Esse entendimento não foi imposto por um programa leninista externo, mas foi extraído da própria luta autônoma dos estudantes.

Os aprendizados adquiridos em quase dez anos de movimento social permitiram ao MPL uma notável combinação de valorização de processo e orientação a resultados. Por um lado, ele soube preservar e cultivar a lógica horizontal e contracultural que extraiu tanto da luta dos estudantes contra o aumento como do movimento contra a liberalização econômica, de onde vieram muitos dos primeiros militantes. Por outro, soube estabelecer de maneira tática uma meta objetiva exequível: a revogação do aumento. Essa meta “curta”, no entanto, estava diretamente ligada à meta mais ambiciosa de transformar um serviço mercantil em direito social universal.

A revogação do aumento criou o precedente de reduzir o preço da passagem pela primeira vez – foi assim em Florianópolis em 2004 e em São Paulo em 2013. A redução redirecionou a lógica da tarifa, da ampliação para a redução crescente, até o limite lógico da tarifa zero. Ao conquistar a revogação do aumento, a tarifa zero foi imediatamente lançada no coração do debate político. A dupla vitória de reduzir o custo das passagens e trazer para a centralidade do debate político a tarifa zero por meio de uma ação autônoma com uma estratégica clara é o mais importante legado dos protestos de junho. Ele não é apenas um novo paradigma para as lutas sociais no Brasil, mas um modelo de ação que combina a política horizontalista e contracultural dos novos movimentos com um maduro sentido de estratégia. Esse livro é uma celebração desse legado.

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O artigo de Pablo Ortellado faz parte do livro “Vinte Centavos: A Luta Contra o Aumento” da editora Veneta, que já está nas livrarias. O livro tem como autores ainda Marcelo Pomar (cofundador do MPL e historiador), Luciana Lima (mestre em Estudos Culturais pela USP) e a socióloga Elena Judensnaider. A obra é uma narrativa detalhada dos 11 dias de junho que sacudiram a cena política e social do país, e foi escrito por quem acompanhou todo esse processo de perto.



Boaventura: Apesar de Dilma demonstrar “insensibilidade social”, Marina não é uma alternativa à esquerda

26 de Outubro de 2013, 21:31, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

Nessa questão dos direitos humanos, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?
É uma leitura muito complexa. Há áreas e domínios dos direitos humanos em que tivemos conquistas extraordinárias desde o governo Lula. Eu considero [positiva] toda política de ações afirmativas, do reconhecimento de que há racismo na sociedade brasileira e de que é preciso tomar medidas para que afrodescendentes e indígenas possam ter acesso à educação, numa tradição que vinha desde há muito tempo com Abadias do Nascimento, mas que nunca teve êxito. Também o fato de criar um Brasil mais inclusivo, mais diverso, mais colorido, com mais consciência de sua diversidade étnico cultural. Penso que tudo isso foi um grande avanço.
Onde eu vejo que há retrocesso é em toda a área dos direitos humanos que trouxeram também no seu bojo aquilo que, para um desenvolvimentista, pode ser considerado um obstáculo. (…)

O senhor considera o governo Dilma de direita?
Eu venho da Bolívia, estive no Equador, conheço os outros países [da região]. Alguns deles são muito mais à direita no governo, é o caso do México. E lá estamos assistindo a uma grande vitória de um povo indígena que lutou contra uma barragem, La Parota, e conseguiu efetivamente parar essa barragem.
Eu colocaria a presidente Dilma no mesmo pé em que coloco o presidente da Bolívia [Evo Morales] e o governo do Equador. São governos que eu considero progressistas. Não os considero de direita. Eles, de alguma maneira, fazem muito do que sempre fez a direita: têm o mesmo modelo de acumulação, o mesmo modelo capitalista, o mesmo neoliberalismo, aproveitaram a mesma onda de extrativismo, com a reprimarização da economia.
Mas o que esses governos fazem e que a direita nunca fez na América Latina foi redistribuir esses rendimentos de alguma maneira. Distribuem muito mais que os outros governos. Para muitos grupos sociais, isso não é suficiente. Até porque essa forma de redistribuição é relativamente precária, não é com direitos universais, é algo que pode parar de um momento para outro. Mas há problemas. Os ambientais são extraordinários.

‘Dilma tem grande insensibilidade social’, diz guru da esquerda

RICARDO MENDONÇA, DE SÃO PAULO, Folha

26/10/2013

Referência de militantes de esquerda em todo o mundo, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz que há retrocessos em segmentos dos direitos humanos no Brasil e critica a presidente Dilma por demonstrar “insensibilidade social”.

Segundo ele, isso fica “ainda mais evidente por conta [...] do estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos sociais”.

Para Boaventura, no entanto, Marina Silva (PSB) não representa uma alternativa para a esquerda. Ele diz que sua eleição fortaleceria correntes religiosas conservadoras. Além disso, entende que, na economia, Marina seria um retorno ao que havia antes de de Lula. “Ela é uma cara nova para a direita”, afirma.

Boaventura veio ao Brasil para o lançamento de dois livros: “Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos” e “Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento”, o segundo em coautoria com a filósofa Marilena Chaui.


Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Fabio Braga/Folhapress

Folha – “Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos” é um título provocador. Sugere que o senhor acredita em Deus. E sugere que Deus poderia dar mais importância para os direitos humanos. É isso?
Boaventura de Sousa Santos – De fato, não. O título é provocador. Eu não me comprometo com a existência de Deus. Sou como Pascal [filósofo francês, 1623-1662]: diria que não temos meios racionais para poder afirmar com segurança se Deus existe ou não. O que podemos é fazer uma aposta: apostar se existe ou se não existe. Como sociólogo, o que penso é que há muita gente que aposta na existência de Deus e que organiza sua vida ao redor disso.
Estamos num momento de fortes movimentos sociais em todo o mundo, com protestos, muita indignação, muita revolta. Alguns desses movimentos trazem no seu interior pessoas e grupos que seguem diferentes religiões. Ou que transformam a religião e a existência de Deus no motivo da ação ou num impulso para a ação. Portanto, eu tive curiosidade de analisar. Esse fenômeno é extremamente ambíguo.

Quando surgiu a curiosidade?
Eu já tinha notado desde o Fórum Social Mundial de 2001, onde vi que havia movimentos sociais e organizações de diferentes partes do mundo com vivências religiosas, como a Teologia da Libertação e outros. Tinham uma dinâmica de grupo onde o elemento religioso, espiritual, era forte. Havia movimentos indígenas, para quem o elemento da religiosidade é sempre forte. Essa dimensão do transcendente é que me fascinou, pois eu venho de uma cultura eurocêntrica, que há muito tempo tenho criticado, mas sou filho dela, por assim dizer. Essa cultura tinha resolvido o problema através do que chamamos de secularismo, que é expulsar a religião do espaço público.

A presença da religião na política está crescendo?
A religião nunca saiu verdadeiramente da política. Temos sociedades que são laicas, mas cujos estados não são. É o caso da Inglaterra, por exemplo. E temos sociedades onde a convivência é mais laica do que outras. Tanto assim que hoje a gente faz distinção entre o secularismo e a secularidade. Secularismo é uma atitude mais radical, de deixar que a religião fique exclusivamente no espaço privado, na família, na vida. Secularidade é aquela que permite que haja expressões [religiosas] no espaço público como afirmação da própria liberdade de todos os cidadãos.
Mas é evidente, a gente sabe, a maneira com que a Europa resolveu a questão da separação da igreja e do Estado no século 17, depois de uma guerra enorme, nunca foi uma separação total. A igreja continuou a ter uma grande influência. Foi assim no esforço da colonização. Continuou com grande influência, ainda tem, nas agendas que o papa Francisco disse recentemente que são as agendas da cintura para baixo (risos), acerca das orientações sexuais, aborto, divórcio. Obviamente são questões de interesse público.
O que parece é que a crise do Estado secular trouxe uma maior presença da religião no espaço público. No mundo árabe, no mundo indiano e também no mundo ocidental. Começou a emergir nas televisões religiosas, cada vez mais e sobretudo com as correntes evangélicas e pentecostais. É uma presença pública muito mais forte, mas também um interesse em influenciar a vida pública, a vida dos Congressos, dos parlamentos. É o que acontece hoje no Brasil.

No Brasil isso parece mais evidente a partir da eleição de 2010, quando o assunto chegou a dominar o debate eleitoral. Como tem sido no resto do mundo?
Na Europa não é tão forte quanto aqui ou nos Estados Unidos. Mas encontramos no próprio mundo islâmico, por outro lado, diferentes formas de afirmação religiosa que não são todas fundamentalistas. Algumas são bastante moderadas. Mas que também se recusam a pensar que sua dimensão espiritual e religiosa não têm nada a ver com suas lutas.
Então o mundo hoje é mais diverso, e dessa diversidade, no meu entender, faz parte uma maneira muito diversa de ver a religião na vida pública. Isso está surgindo por todo lado, com formações bem distintas.
Algumas continuam na base da sociedade, como acontecia com a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Mas temos nos últimos anos, no Brasil muito claramente, a influência [religiosa] na própria cúpula do Estado, na estrutura política do Estado. Isso é novo.
Era uma corrente que já vinha dos anos 80 dos Estados Unidos. Uma corrente muito conservadora. Um dos grandes líderes dessa corrente nos Estados Unidos fez uma previsão que praticamente se confirmou. Ele disse assim: “quando um dia não houver uma grande diferença entre democratas e republicanos, e se forem todos mais ou menos conservadores, podemos começar a jogar golfe tranquilamente, pois significa que cumprimos a nossa missão”.

E a esquerda com isso? Seu livro é uma espécie de ajuste?
O pensamento crítico da esquerda, de uma sociologia crítica, sempre foi muito renitente em analisar o fenômeno religioso. Pois qualquer análise que não seja simplesmente dizer que religião é o ópio do povo fica como suspeita.
Minha experiência no Fórum Social Mundial fez-me crer que, se eu mantivesse essa atitude pouco complexa, eu deixaria fora da minha análise muita gente que genuinamente luta contra a desigualdade, a injustiça, a discriminação, a opressão. Não é gente alienada. É gente que realmente luta por um mundo melhor e que, no entanto, tem uma referência religiosa. Eu não posso considerar que isso é alienante. Então escrevi esse livro também para fazer as contas comigo mesmo.

Qual é a sua conclusão?
Termino dizendo que não há um Deus. Há dois: o Deus dos oprimidos e o Deus dos opressores. Enquanto a sociedade for dividida e houver tanta desigualdade social, penso que o Deus que estiver do lado dos oprimidos não se reconhece num Deus que esteja do lado dos opressores.

O outro livro é sobre direitos humanos, que parece refluir na medida em que aumenta a influência religiosa. Alguns políticos têm como principal plataforma o ataque aos direitos humanos. Quais são as relações entre as duas coisas?
É obviamente uma estratégia religiosa. É uma dimensão de todas as correntes conservadoras, de direita, que existiram ao longo do tempo. Houve, de fato, uma igreja progressista, de esquerda, que achou que sua missão era a missão evangélica do sermão da montanha, de estar com os pobres. Os pobres não estão no parlamento, estão nos bairros, nas favelas. E é para aí que os missionários devem ir. Mas há toda uma outra corrente que nunca aceitou que igreja ficasse fora do governo. Alguns deles entendem que a Bíblia, literalmente, dita o direito para os Estados e que, portanto, os direitos humanos não pertencem a esse direito bíblico. É como no mundo islâmico, onde há conceitos muito hostis aos direitos humanos.
Então, de vários lados, estamos a assistir a um ataque aos direitos humanos. Esse é o tema do meu outro livro, escrito por um sociólogo que se considera um cidadão ativista dos direitos humanos.
Eu também faço uma crítica aos direitos humanos. Mas uma crítica progressista: os direitos humanos são pouco. Então eles são criticados por mim por serem poucos. E a direita critica por serem muito. Eu digo pouco porque acho que a grande maioria dos cidadãos do mundo não são sujeitos de direitos humanos, são objeto de discurso de direitos humanos. São violados constantemente.
Agora, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, em que as narrativas socialistas caíram em desuso, pelo menos até agora, o que ficou de luta por uma sociedade melhor foram os direitos humanos. Se o socialismo estivesse na agenda política, eu tenho certeza que essa direita religiosa incidiria completamente contra o socialismo.

Nessa questão dos direitos humanos, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?
É uma leitura muito complexa. Há áreas e domínios dos direitos humanos em que tivemos conquistas extraordinárias desde o governo Lula. Eu considero [positiva] toda política de ações afirmativas, do reconhecimento de que há racismo na sociedade brasileira e de que é preciso tomar medidas para que afrodescendentes e indígenas possam ter acesso à educação, numa tradição que vinha desde há muito tempo com Abadias do Nascimento, mas que nunca teve êxito. Também o fato de criar um Brasil mais inclusivo, mais diverso, mais colorido, com mais consciência de sua diversidade étnico cultural. Penso que tudo isso foi um grande avanço.
Onde eu vejo que há retrocesso é em toda a área dos direitos humanos que trouxeram também no seu bojo aquilo que, para um desenvolvimentista, pode ser considerado um obstáculo.
Os direitos humanos trouxeram consigo o reconhecimento dos direitos coletivos. E os direitos coletivos do povos indígenas estão protegidos, internacionalmente, por convenções, aliás, que o Brasil assinou, sobretudo o convênio 169 [da Organização Internacional do Trabalho], que obriga consulta prévia, livre, informada e de boa fé. E de boa fé! E que, hoje em dia, depois da declaração das Nações Unidas de 2007 sobre os direitos dos povos indígenas, firma-se na jurisprudência da Corte Internacional de Direitos Humanos que sempre que estejam em causa a própria sobrevivência de um povo, seja uma barragem, seja um projeto de mineração, a consulta deve ser vinculante. Bem, nesse caso, eu tenho que dizer que tem havido retrocesso.
Não é só na demarcação de terras. Tem ainda a questão de saber se a concessão de novas terras são atribuição do parlamento e não do Executivo, o que seria a mesma coisa que dizer que nunca mais haverá qualquer concessão.
Então eu acho que a presidente Dilma está a perder uma batalha, está realmente com uma grande insensibilidade ao movimento indígena camponês, que foi uma grande forma de transformação em toda América Latina.

O senhor considera o governo Dilma de direita?
Eu venho da Bolívia, estive no Equador, conheço os outros países [da região]. Alguns deles são muito mais à direita no governo, é o caso do México. E lá estamos assistindo a uma grande vitória de um povo indígena que lutou contra uma barragem, La Parota, e conseguiu efetivamente parar essa barragem.
Eu colocaria a presidente Dilma no mesmo pé em que coloco o presidente da Bolívia [Evo Morales] e o governo do Equador. São governos que eu considero progressistas. Não os considero de direita. Eles, de alguma maneira, fazem muito do que sempre fez a direita: têm o mesmo modelo de acumulação, o mesmo modelo capitalista, o mesmo neoliberalismo, aproveitaram a mesma onda de extrativismo, com a reprimarização da economia.
Mas o que esses governos fazem e que a direita nunca fez na América Latina foi redistribuir esses rendimentos de alguma maneira. Distribuem muito mais que os outros governos. Para muitos grupos sociais, isso não é suficiente. Até porque essa forma de redistribuição é relativamente precária, não é com direitos universais, é algo que pode parar de um momento para outro. Mas há problemas. Os ambientais são extraordinários.

Qual o senhor citaria?
É certo que o Congresso é outra coisa. Mas eu fico espantado como é que é possível, estando a frente do país alguém como Dilma Rousseff, como é possível abrir uma discussão sobre a semente Terminator no Congresso. É a semente que fica estéril, a suicida. Isso está suspenso. É ilegal para o mundo inteiro. É um escândalo, se aprovar. Ela foi suspensa no âmbito da convenção de biodiversidade exatamente porque coloca os camponeses nas mãos da Monsanto e das outras três ou quatro empresas que têm a patente. Isso é o fim da agricultura camponesa.
Em muitos países é a agricultura camponesa que alimenta as populações, pois a grande indústria produz soja e outros produtos de exportação. A diversidade da produção agrícola é feita por pequenas propriedades, a agricultura familiar, a camponesa. Portanto isso significa arrogância dessas empresas transnacionais que têm acesso ao parlamento para ditar sua lei. E se você olhar bem, há uma aliança entre os religiosos evangélicos e os ruralistas. Então aqui há uma convergência de forças, uns que vêm da tradição ruralista, outros que vêm de uma tradição religiosa de direita, que se armou contra o comunismo e contra a revolução na América Latina.
Então não considero a presidente Dilma um governo de direita por sua capacidade de distribuição, agora há uma grande insensibilidade, que não vem de agora.

Onde mais há problemas?
Basta ver quantas vezes foram recebidas a CUT e outras entidades antes desses protestos: zero. Portanto significa que a presidente Dilma tem uma grande insensibilidade social, que se tornou ainda mais evidente por conta da posição do Lula, ao estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos sociais. Isso perdeu-se. Eu considero uma perda muito grave.

A ex-ministra Marina Silva tem um discurso mais próximo desses segmentos que o senhor mencionou, meio ambiente, indígenas. Ela serve para a esquerda?
Eu penso que não. Sou amigo da Marina Silva, estive em vários painéis com ela e comungo com ela muitas causas ambientalistas. Mas acho que não porque a influência religiosa no país iria nitidamente continuar a desequilibrar. A dimensão religiosa que está por trás dela é uma dimensão que, no meu entender, tem mais um potencial conservador do que um potencial da Teologia da Libertação. Portanto é um potencializador de uma interferência conservadora na sociedade.
Isso pode ter outras dimensões para os direitos das mulheres, dos homossexuais, para as diversidades sexuais.
Por outro lado, sua política econômica, por aquilo que tenho visto e pelos apoios que ela recorre, é realmente uma tentativa de, com uma cara nova, uma mulher, repor o sistema que estava antes. Seria desacelerar ainda mais as políticas de redistribuição social que foram aquelas que, no meu entender, mais caracterizaram o período Lula.
Não penso que a Marina Silva esteja muito sensível a isso tudo. Então eu penso que ela é uma cara nova para a direita. Não é uma cara para a esquerda, no meu entender.

Milhares de pessoas foram às ruas no Brasil para protestar por diversas causas. Tudo muito rápido e inédito. O senhor tem alguma reflexão sobre o que ocorreu no país?
Analiso os diversos movimentos que surgiram no mundo desde 2011: a primavera árabe, o ocuppy [Wall Street, nos EUA], o dos indignados no sul da Europa e na Grécia, o movimento “Yo soy 132″, que é contra a fraude eleitoral no México, o movimento estudantil do Chile em 2012 e também os protestos no Brasil.
Considero que 2011-2013 é um daqueles momentos no mundo como nós tivemos em 1968, 1917, 1848. São momentos de movimentos revolucionários.
O que os caracterizam fundamentalmente hoje? São sinais de que, em muitos países, estamos a entrar num processo de guerra civil de baixa intensidade: uma grande agitação social porque as instituições não funcionam propriamente. Na Europa, a rua é o único espaço público que não está colonizado pelo capital financeiro. Nos EUA, a mesma coisa. Há uma deterioração das instituições, uma ideia de que a democracia foi derrotada pelo capitalismo. No sul da Europa isso parece muito claro, e as ruas e as praças são os únicos espaços onde o cidadão pode se manifestar.

Quem é esse cidadão?
É um cidadão diferente dos [cidadãos dos] processos anteriores. Um erro do pensamento político foi pensar em cidadãos organizados que fazem essas revoltas. De fato, não é assim. Essas revoltas são feitas, normalmente, por jovens que nunca participaram de movimento social, de partidos, que nunca votaram, nunca estiveram em nenhuma ONG. E de repente estão na rua. Isso não foi só aqui. Foi no Egito, na Europa, nos EUA. São movimentos que surgem a partir de momentos em que as instituições parecem não dar respostas às aspirações populares. Obviamente são diferentes. Não se pode pôr a primavera árabe ao lado do Brasil ou do occupy. São coisas distintas.
O movimento do Brasil tem uma genealogia, uma história, semelhante ao movimento dos indignados de Portugal, da Espanha e da Grécia. São jovens democracias onde houve uma expectativa de uma social-democracia, uma democracia com fortes direitos sociais, de educação, saúde, transporte. Havia uma expectativa de uma sociedade mais inclusiva. Essa era a promessa. A democracia não é simplesmente mero voto e a representação política, mas se traduz em direitos sociais e econômicos. Portanto nesses casos [Brasil e indignados], os movimentos surgem da ruína dessas aspirações. Democracias suficientemente jovens para ainda acreditar que eles têm esses direitos.
Os occupy já nem têm sequer essa ilusão, pois a democracia americana é cada vez mais restringida e eu nem acho mais que é uma democracia a sério nos EUA; eu vivo lá metade do ano, como você sabe, e conheço o país.

Uma crise da democracia?
Aqui [no Brasil], a juventude se dá conta que aquela democracia que ela acreditou não funciona, está sendo derrotada pelo capitalismo. Os países dão mais atenção aos mercados internacionais, aos grandes grupos transnacionais, do que dão aos seus cidadãos. Na Europa isso é muito claro. O meu governo [Portugal] está mais atento à agência de classificação Standard & Poor’s, sobre o que ela dirá amanhã sobre a taxa de rating do crédito português, do que as demandas dos portugueses, as reivindicações. E quanto mais as pessoas vão para as ruas, mais abaixa a nota do crédito internacional. Ou seja: a democracia está sendo usada contra os cidadãos. A democracia é exercida hoje contra o bem estar. Tinha-se a ideia que caminhávamos para um estado de bem estar. De alguma maneira, hoje, o Estado é um Estado de mal estar. O que aconteceu no Brasil, no meu entender, é essa frustração.
Compartilha com os outros movimentos essa espontaneidade. E o fato de não ser ideologicamente unitária, é o mais diverso possível. E com demandas contraditórias. E com uma característica também comum em todos eles: prevalece o negativo sobre o positivo. Esses grupos, que eu nem chamo de movimentos sociais, chamo de presenças coletivas, sabem o que não querer, mas não sabem bem o que querem. Podem ter uma demanda, como foi o caso do Movimento Passe Livre, mas essa é uma demanda que rapidamente pode ser superada por grandes demandas de superação do Estado. Como aconteceu na Tunísia. O moço que se imolou na Tunísia queria apenas que legalizassem o seu comércio de rua, e de repente aquilo era uma luta contra a ditadura.
O que todos estão a dizer? Estão a dizer que o mundo está escandalosamente desigual. Essa não é uma questão da pobreza. É que nos países, internamente, a diferença entre ricos e pobres nunca foi tão grande. Em meio aos maiores sacrifícios da sociedade portuguesa, com cerca de 50% dos jovens até 25 anos sem emprego, o número de ricos aumentou em Portugal nos últimos anos. E os ricos ficaram ainda mais ricos.

Essa descrição não coincide exatamente com o que ocorreu no Brasil. A distribuição de renda brasileira medida pelo índice Gini ainda é uma das piores do mundo, mas melhorou.
Sim, está reduzindo [a desigualdade de renda], nunca tinha acontecido antes, isso é preciso reconhecer. O que nós temos que ver, isso é minha leitura, é que as políticas que foram criadas para essa redução ocorrer –e por isso que eu digo que [Dilma] não é um governo de direita– são as que eu chamo de políticas de primeira geração. A segunda geração é que essa gente que agora come bem, agora que tem algum apoio, quer evoluir, quer ir para a universidade, quer outra qualidade dos serviços públicos. E aí estancou.

O senhor disse que esses grupos sabem dizer o que não querem, mas não sabem dizer bem o que querem. No Brasil, entre as coisas que eles diziam não querer estavam os partidos políticos. Teve até hostilidade, violência. O senhor vê isso com preocupação?
Sim, evidentemente. Mas ao mesmo tempo compreendo o que está ocorrendo. É aquilo que eu disse, que a democracia representativa liberal foi dominada e vencida pelo capitalismo, pela corrupção, pela presença do dinheiro nas eleições, nas campanhas eleitorais. Isso faz com que os representantes estejam cada vez mais distantes dos representados. É aquilo que a gente chama de patologia da representação: os representados não se sentem representados por seus representantes.
É um processo conhecido, pois há anos discute-se no Brasil a necessidade de se fazer uma reforma política, uma reforma do sistema eleitoral, do financiamento dos partidos. E todas essas reformas têm sido bloqueadas. Então essa negação não é propriamente a negação da democracia representativa. São duas ligações importantes: esta democracia participativa não serve, o dinheiro não pode ter o poder que tem hoje nas eleições; e a democracia representativa nas sociedades complexas não chega, ela precisa ser complementada pela democracia participativa.
Eu acho extraordinário que, no caso da primavera árabe –jovens de vários países que não tiveram democracia propriamente– a grande bandeira é a democracia real. Portanto quando dizem que há luta contra os partidos, não é que eles estejam dizendo que, em princípio, eles não têm nenhuma validade. É esta forma de democracia, a do poder do dinheiro, que está derrotada. E se ela não se alterar, temos altos riscos para a sociedade. É por isso que eu digo, escrevi dois artigos sobre isso, que há uma grande oportunidade: a oportunidade de uma reforma política. Esse é grande tema com o qual o PT chegou ao poder, não podemos esquecer.

Mas nos protestos ninguém levantou uma plaquinha sequer pedindo reforma política.
(risos) É por isso que eu digo: as pessoas não sabem o que querem, sabem o que não querem. Como é que se faz formulação política? Para sair daquilo que elas não querem, é preciso uma reforma política. Obviamente. E é por isso que temos partidos.

Eu acho que cabe à classe política encontrar as soluções. Os jovens não têm que saber [como fazer]. Nem dá para exigir que eles saibam. Como é que vai fazer um serviço unificado de saúde suficientemente robusto? Não têm que saber. Há técnicos e há políticos que vão fazer isso. A reforma política é a mesma coisa. E a presidente Dilma deu uma certa esperança quando falou nas cinco medidas que seriam tomadas e incluiu a reforma política, mas, infelizmente, os poderes conservadores do Congresso…

Foi nesse contexto que surgiram os grupos “black blocs”, com a tática de causar danos materiais para fazer suas denúncias. Eles aparecem em tudo, da greve de professores à ação para libertar cachorros de um laboratório de pesquisa médica. Qual é a opinião do senhor sobre esses grupos?
Esses grupos nasceram nos anos 70 na Alemanha, na luta contra a energia nuclear. Na década de 80, adquiriram uma ideologia autonomista. A ideia de que “temos que criar na sociedade espaços de autonomia que não dependem do capitalismo e que, portanto, podem oferecer outra maneira de viver”. Tiveram muita repercussão.
No momento em que começam os protestos contra a globalização, Seatle (EUA) é o marco, eles começaram a assumir duas características de sua tática: de um lado a ideia de violência contra propriedades símbolos do capitalismo, que pode ser um McDonald’s, um banco; de outro lado, a defesa dos manifestantes. Eles assumiram isso. Em muitas mobilizações, foram eles que, diante da violência policial, defenderam mais eficazmente os manifestantes pacíficos. Então a violência policial, no meu entender, é uma das grandes responsáveis pelo protagonismo “black bloc”. Eles enfrentavam. E a notícia muitas vezes passava a ser o enfrentamento entre os “black blocs” e da polícia.
Um terceiro fator que complica, principalmente a partir do ano 2000, isso está documentado, é que a polícia infiltra o “black bloc” para depois justificar sua violência. Isso está demonstrado em vários países. E este é o contexto em que nós estamos.

Mas como entender o “black bloc”?
Não são grupos de extrema-direita. Eu penso que, acima de tudo, temos que entender por que surgem esses movimentos. E encontrarmos, através do diálogo, formas de ver se estas são as melhores formas de luta. No meu entendimento, como já disse, estamos num momento político daquilo que chamo de guerra civil de baixa intensidade. Numa guerra assim, queremos que cada vez mais gente venha para a rua. No meu entender, para fazer pressão pacífica sobre os Estados.
Quando o capital financeiro será cada vez mais influentes, quando as Monsantos conseguem pôr no Congresso a [semente] Terminator, quando os evangélicos dominam a agenda política, quando os ruralistas dominam a agenda política, os governos, mesmo que tenham uma orientação de esquerda, precisam ser pressionados de baixo. A partir de baixo. E essa pressão tem de ser pacífica. E tem de ser inclusiva. E para ser inclusiva tem de trazer para a rua as pessoas que nunca foram para a rua, os chamados despolitizados, as avós, os netos.
Ora bem, se é esse o objetivo, o “black bloc” é uma força contraproducente. As pessoas querem ir para a manifestação, mas com medo que haja violência, com medo da brutalidade e violência policial, dizem ao final “não vamos”. Penso, portanto, que o “black bloc” deve analisar em que contexto nós estamos.

O ex-presidente Lula fez uma crítica direta ao uso das máscaras. Disse que participou de muita manifestação de rua, mas que nunca usou máscara porque não tinha vergonha do que fazia.
Eu acho que é uma posição legítima, mas não sei se é a única resposta que se pode dar. As pessoas têm suas formas de representação. Exemplo disso é o governo do Peña Nieto, o [partido] PRI, no México, que eu considero de direita. Nas últimas manifestações, o protesto de professores no México, teve a presença dos “black blocs” com as máscaras negras. E chegou ao ponto também em que o governo está para promulgar uma lei que proíbe as máscaras. Sabe qual foi a reação? Os homossexuais começaram a usar máscaras pink. Foram para os protestos com máscaras cor-de-rosa, máscara homossexual. Então a polícia vai prender? Eles não praticam nenhuma violência, usam máscara agora para afirmar a diversidade sexual.
Isso é para ver como a coisa é complicada. Criou-se uma solidariedade entre os homossexuais e o “black bloc”. Então, por vezes, as autoridades se excedem na forma. Eu penso que essa não é a forma. Penso que a forma é de dialogar, de trazer para uma mesa de conversa. Obviamente é uma discussão muito difícil, mas é uma discussão que é preciso ter.

*BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS Sociólogo português, 72 anos. Doutor pela Universidade de Yale (EUA), professor da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Wisconsin (EUA). LIVRO RECENTE “Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos” (Cortez Editora)



Foucher: Pré-sal brasileiro: batida na porta de um grande futuro

26 de Outubro de 2013, 14:54, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

Pré-sal brasileiro: batida na porta de um grande futuro

 Por Marilza de Melo Foucher,  Correio do Brasil, via Página 13

25/10/ 2013 

O petróleo do pré-sal, por pouco não fica com as empresas norte-americanas.

O petróleo do pré-sal, por pouco não fica com as empresas norte-americanas.

A matéria a seguir, não expressa sobre vários temas nossa posição, mas publicamos por entender que contribui com o debate. 

A presidenta Dilma Rousseff demonstrou em seu discurso sobre o pré-sal brasileiro e na sua ação governamental, uma visão pragmática ao encarar o futuro do Brasil. Em geral, a maioria dos governantes não planeja o futuro, governam em função do presente e dos jogos políticos.

Dilma antecipa desta forma o futuro e demonstra uma visão moderna na gestão do papel do Estado. Ou seja, quando o Estado estabelece uma parceria com empresas multinacionais européias e chinesas, esta parceria se estabelece através de um contrato de objetivos bem definidos. Isto significa uma mudança considerável de governabilidade, onde o Estado assume a defesa da soberania da Nação na gestão das riquezas naturais, ao mesmo tempo que define regras de parcerias com empresas multinacionais de larga experiência no domínio.

A presidenta, que é economista, desenvolve uma visão Keynesiana melhorada do papel do Estado na Economia. Faz lembrar a abordagem que fez o economista Keynes sobre a socialização do investimento, quando ele explica que o Estado deve estar sempre presente na coordenação das relações entre o investimento público e privado. (Ver a entrevista que fiz com o economista e analista político Luiz Gonzaga De Mello Belluzzo, no Correio do Brasil ).

O Estado junto com Petrobras deterão a maioria da produção e dos recursos gerados. Além disso, o Estado vai estimular paralelamente o desenvolvimento tecnológico de infra-estruturais necessárias à exploração do pré-sal. Além de estimular a indústria brasileira na inovação necessária para enfrentar este grande desafio. A área industrial diante de tamanho desafio, terá que realçar seu espírito inventivo; além de melhorar a qualidade e a durabilidade dos equipamentos futuros. Terá, ainda, que formar quadros altamente especializados. Para enfrentar este desafio podem também contar com o apoio da União.  Trata-se, aí, de uma relação baseada na reciprocidade e responsabilidade onde todos saem ganhando.

O destaque maior deste investimento nacional é que grande parte dos benefícios gerados na extração de produtos naturais, serão repartidos de modo a garantir o futuro da geração dos jovens brasileiros, isto é traduzido na prioridade dada à educação e pesquisa. Esta é uma das iniciativas mais importante na história do Brasil, onde a educação passa a ser motor de um futuro melhor. Além disso, a saúde é também um setor priorizado, este setor até então nunca foi prioritário para a população de baixa renda.

Vale, porém, chamar atenção do governo brasileiro para não se esquecer dos riscos ambientais que podem representar este Mega investimento, tendo em vista sua inovação cientifica – tecnológica suis generis. Dai é importante que o governo brasileiro tenha o poder de antecipação no domínio dos riscos ambientais, e possa desde agora contribuir na formação de profissionais, além de reforçar a área da pesquisa cientifica ambiental. Para desta forma começar a estudar todos os riscos possíveis e analisar todos os impactos que tal investimento pode provocar. Tratando-se de algo que é novo, o Brasil pode dar exemplo de gestão ambiental dos riscos, para evitar a improvisação que sempre ocorre quando acontece qualquer catástrofe natural.

Outro risco, estar ligado mais na concorrência internacional quanto a propriedade intelectual. Como por exemplo, garantir que as empresas chinesas e européias não se apropriem desta propriedade intelectual da Petrobras.  Na certa os Estados Unidos que não estão diretamente implicados na exploração, já espionaram suficientemente a Petrobras para se apropriar de certos conhecimentos… Não se trata de paranóia, mas hoje os serviços de espionagem industrial, tecnológica é mais importante que as espionagens políticas na época da guerra fria.

Quanto a oposição cega, sectária, que pensa somente nos resultados eleitoreiros a curto prazo, ela é logicamente contra este grande investimento. Pelo menos, ela poderia ter mostrado certo senso de responsabilidade, se ela tivesse sido mais propositiva ao estudar os objetivos do grande projeto. Por exemplo, verificando se existem certas falhas, dando-lhe sugestões para melhorá-lo. A critica irracional foi sempre a arma dos políticos medíocres.

Um bom político é aquele que mergulha nas falhas encontradas no projeto do adversário, não somente para denunciar junto a grande imprensa, mas, para esclarecer seus próprios eleitores e o povo brasileiro as razoes de sua oposição. Se ele é um político que defende o interesse coletivo, ele vai demonstrar certo discernimento face ao desafio que representa o Pré-Sal no desenvolvimento do Brasil, apontando o que falta para que este projeto seja mais viável e o mais eficaz e ecologicamente compatível.

A respeito dos leilões, ao contrário do que foi feito na época do governo de Fernando Henrique, estes foram amplamente discutido e bem pensado. O governo Fernando Henrique decidiu de modo monárquico ao fazer licitações para privatizar varias empresas estatais e nacionais. As licitações foram feitas sem explicar para a população as razoes das privatizações. A única imagem que o governo queria construir junto à opinião publica era a da falência do Estado como regulador econômico e social. Esta era a mensagem ditada pela governança mundial, o FMI, Banco Mundial, União Européia do qual o Presidente Sociólogo Fernando Henrique e seus aliados aderiram e obedeciam sem reclamar. A ideologia neoliberal ditava a conduta do Estado, que deveria ser um Estado Empresarial e não um Estado Protetor. Basta, se o leitor quiser refrescar a memória, buscar as recomendações do FMI para o Brasil, e sua concepção sobre o ajustamento estrutural no final dos anos 80/90.

Viu-se como foi feita a privatização da Vale do Rio Doce e da própria Petrobras. Esta ultima, se não fosse a pressão popular estaria hoje completamente privatizada. Imaginem senhores e senhoras críticos da ação do governo Dilma, se a Petrobras estivesse hoje privatizada como seria administrado o Pré-Sal brasileiro? Como agiria o Estado brasileiro diante desta grande descoberta? Na certa, estaria completamente desarmado para negociar um projeto de tamanha envergadura como o PRE SAL.

*Marilza de Melo Foucheré doutora em Economia, jornalista, correspondente em Paris.

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Mesas de Pondé e Magnoli na FLICA canceladas

26 de Outubro de 2013, 14:33, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

Agora a dupla Pondé-Magnoli escreverão um monte de artigos sobre a “Intolerância”.

Da Página Oficial da FLICA

26/10/2013

Devido à manifestação que aconteceu durante a 1ª mesa deste sábado, “Donos da Terra? – Os Neoíndios, Velhos Bons Selvagens”, com Demétrio Magnoli e Maria Hilda Baqueiro Paraíso, foi preciso fazer algumas alterações na programação do evento. Foram canceladas a mesa citada e a de 20h, “As Imposições do Amor ao Indivíduo”, com Jean-Claude Kaufmann (França) e Luiz Felipe Pondé. Os organizadores da festa não conseguiriam garantir a integridade física dos autores alvos do protesto, Demétrio Magnoli e Luis Felipe Pondé.

A programação vespertina segue normalmente e a peça Alvoroço foi transferida para às 20h com transmissão on-line: www.ibahia.com/flica

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A chance de um jovem negro ser assassinado no Brasil é 3,7 vezes maior, em comparação com um branco



A chance de um jovem negro ser assassinado no Brasil é 3,7 vezes maior, em comparação com um branco

25 de Outubro de 2013, 16:53, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

Porcentagem de assassinatos de negros é 8 pontos maior que o de brancos no Brasil

Agência EFE (Espanha), via IPEA

Tradução, Victor Farinelli

17/10/2013

Em uma estimativa que aponta mais de 60 mil pessoas assassinadas no Brasil a cada ano, a possibilidade de um negro ser a vítima é 8% maior que a de um branco, segundo um informe publicado hoje pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Segundo os autores do estudo – que compara a situação dos cidadãos negros com as de pessoas de outras raças, nas mesmas condições socioeconômicas -, o fato de ser negro no Brasil significa “pertencer a um grupo de risco”, já que os mesmos são vítimas de dois de cada três assassinatos.

No caso de adolescentes, dos 226 municípios brasileiros com mais de cem mil habitantes, nos quais foram realizadas as entrevistas, a possibilidade de um homicídio contra um jovem negro (grupo no qual também foram incluídos os mulatos) é 3,7 vezes maior, em comparação com um branco.

No total, estima-se que em todo o Brasil são assassinadas mais de 60 mil pessoas por ano, pelo qual a morte por homicídio é considerada como um risco grande, segundo afirma o relatório do IPEA
A investigação também conclui que os cidadãos negros sofrem mais agressões por parte de agentes policiais que os brancos.
Ainda assim, o relatório assegura que, em 2010, cerca de 6,5 % dos negros entrevistados pela investigação sofreram agressão policial ou de algum agente de segurança privada, situação que sucede com somente 3,7% dos brancos.

Por isso, os autores da pesquisa concluem que a democracia brasileira “está incompleta” e se perguntam se existe um “racismo institucional” que explique essa tendências verificadas nas mortes por homicídios.