Reação aos ataques de Paris
17 de Novembro de 2015, 9:11Por Marcelo Barros – de São Paulo:
Toda a humanidade consciente se sente ferida e ameaçada pelos ataques terroristas contra a sociedade civil e especificamente pessoas inocentes que, em Paris, andavam na rua, assistiam a um jogo de futebol ou participavam de um show. Além das pessoas mortas e feridas, a pior consequência de atos como esse é o de reforçar um pânico generalizado, legitimar maior rigidez nas fronteiras e marginalização dos imigrantes já discriminados.
Além disso, esses atos acabam suscitando na opinião pública o desejo de uma vingança que toma a forma de novas guerras “preventivas” como a que, depois dos ataques às Torres Gêmeas, legitimou as invasões norte-americanas ao Afeganistão, ao Iraque e a outros países.
Essas guerras massacraram populações civis, causaram milhares de mortos, destruíram a estrutura social e econômica de países inteiros e não deixaram nenhum saldo de paz ou de justiça. Nem mesmo trouxeram segurança ao Ocidente, cada dia mais ameaçado. Ao contrário, só torna o mundo cada vez mais inseguro e perigoso. Infelizmente, o que antes era a guerra contra a Al Qaeda, agora se volta contra o “Estado Islâmico”. Todos sabem que esse grupo terrorista não é um verdadeiro Estado. E são tão islâmico como os deputados fundamentalistas do nosso Congresso Nacional são evangélicos.
Responder a esses ataques de Paris com invasões e atos militares de guerra lançará o mundo em mais uma aventura cruel na qual quem mais sofre é sempre a população pobre dos países escolhidos como alvos.
O que está por trás do terrorismo desses grupos que usam o Islã como pretexto para o seu ódio ao Ocidente é uma ideologia de defesa que se apoia em um determinado fundamentalismo religioso. Não adianta matar um, dez ou 100 fanáticos para acabar com o fanatismo. Não é com foguetes e mísseis nucleares que se transformam mentes e corações.
O mundo nunca terá paz nem segurança enquanto as potências do Ocidente, especialmente os Estados Unidos e a França, não aceitarem rever suas posições e reconhecer erros graves cometidos, em décadas recentes, contra populações do Oriente Médio e da África.
Entre as décadas de 1950 e 1990, a associação entre os EUA e os grupos fundamentalistas esteve no epicentro de alguns fatos históricos. No governo do ditador Sukharno, mais de um milhão de comunistas indonésios foram assassinados pelos militantes do Sarakat-para-Islã, apoiados com dinheiro e armas norte-americanas. Em outras nações, como Síria e Egito, esse mesmo tipo de apoio logístico e militar foi empregado pelos norte-americanos para que os governos de esquerda perdessem seu respaldo.
No ano de 1979, os EUA forneceram armas e treinamento para que grupos afegãos lutassem contra os invasores soviéticos. Em contrapartida, naquele mesmo ano, os iranianos fundamentalistas derrubavam o governo apoiado pelos norte-americanos por meio da revolução. Nas décadas subsequentes, os Estados Unidos financiaram com dinheiro e muitas armas a chegada dos talibãs ao governo do Afeganistão.
Todo mundo sabe que Bin Laden e a sua organização Al- Qaeda nasceram sob o patrocínio político e econômico do governo dos Estados Unidos. Do mesmo modo o tal Estado Islâmico foi armado pelo governo norte-americano, que precisava de um pretexto para invadir a Síria, mas depois perdeu o controle sobre o grupo que armou. No Wikileaks, Julian Assage publicou sobre isso muitos documentos. Em uma entrevista ao Democracy Now, Noam Chomsky declarou que os Estados Unidos financiaram e financiam ainda o EIIL através da Arábia Saudita.
Só recentemente, essa aliança entre o Império americano e os terroristas foi se transformando em relação de ódio em que os “terroristas” confrontavam o poder do “demoníaco império do Ocidente”. Em 2001, essa rivalidade chegou ao seu ápice quando os integrantes da organização Al-Quaeda organizaram o ataque às torres do World Trade Center.
Na ascensão de grupos radicais que se denominam “islâmicos” e em sua luta contra a política externa norte-americana, a questão religiosa tem função quase acessória. A ideia de que o Islamismo em si fomenta essa situação de conflito é falsa, embora na natureza do Islã existam elementos que podem favorecer esse tipo de fanatismo.
Desde os anos 90, a ONU compreendeu que precisa de uma organização inter-religiosa que a ajude em situações de conflito nas quais o elemento religioso esteja presente. Assim nasceu a URI (United Religions Initiative), Iniciativa das Religiões Unidas e outros organismos que a assessoraram em alguns momentos.
A cultura religiosa presente em várias instituições, tanto cristãs como islâmicas, precisa ser revista e modificada para não ser conivente com nenhum ato terrorista ou violento que queira utilizar sua linguagem cultural. Nesse sentido, a ONU precisa de uma assessoria de teor teológico e espiritual que possa atuar em situações de conflito como essa que assistimos nesses dias.
É preciso preparar melhor as religiões para renunciar ao seu dogmatismo e conviver como irmãs em um mundo pluralista.
Marcelo Barros, Monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro.
A intolerância
16 de Novembro de 2015, 14:47Por Antonio Lassance – de Brasília:
A intolerância é a imbecilidade à procura de uma multidão. É o espetáculo da estupidez com entrada franca, mas todos pagam caro ao final, quando as portas são fechadas, uma após outra.
A intolerância é o ofício de trucidar inocentes. Por isso o ódio é um requisito – veneno trazido em embalagem de remédio. O ódio justifica culpar, perseguir, condenar e executar pessoas que não merecem ser tratadas como pessoas, nem mesmo como adversários, e sim como inimigos.
A intolerância é uma seita cultuada e inculta. Com ideias em falta, os xingamentos sobram. A narrativa dos intolerantes não é a de contar histórias, mas a de encontrar culpados. O discurso dos intolerantes não é a conversa e a argumentação, é a ofensa.
Os intolerantes não são burros. Quem dera fossem. Burros são criaturas simpáticas, pacíficas, úteis, laboriosas, respeitadoras. Sequer fazem asneiras, ao contrário do que se lhes atribui. Burros relincham, mas não gritam nem ofendem. Burros cometem erros, mas, nunca, injustiças.
A intolerância é um Mar Morto salgado até trincar. É um monumento granítico impermeável ao bom senso. É a corrupção da alma – por isso, a corrupção é seu assunto predileto.
A intolerância é obscena, pois desconfia que tudo é uma vergonha. A perseguição seletiva apresenta-se como seu principal espetáculo, protagonizado por heróis da repressão.
Os intolerantes fazem sucesso e são notícia, quando não são eles próprios âncoras de programas ou donos dos meios de comunicação – assim se faz da intolerância um modelo de comportamento e um mercado lucrativo.
A intolerância precisa de Estado – do Estado de exceção, do estado de indigência do espírito humano, do estado de mal-estar social.
A intolerância é a inversão de valores básicos, como o respeito ao outro, ao diferente, a ponto de o poeta Goethe nos alertar do risco de quando tolerar é que se torna injurioso. Ser diferente é tido como ameaça coletiva.
Quando se completa a banalização do mal, é sinal de que a intolerância alcançou seu ápice enquanto instrumento de manipulação na luta pelo poder.
A intolerância é um prato de pus oferecido como iguaria. Alguns apreciam. Outros engolem a contragosto. Os que a recusam com coragem e altivez fazem a humanidade ser mais digna desse nome.
Antonio Lassance, é cientista político.
Papa Francisco é uma marca de humildade na Igreja
13 de Novembro de 2015, 14:00Por Mailson Ramos – de São Paulo:
Em 26 de agosto de 1978, os cardeais da Igreja Católica, reunidos na Capela Cistina, em conclave, elegeram o sucessor do Papa Paulo VI: era o cardeal patriarca de Veneza, Dom Albino Luciani, que escolheu ser chamado de João Paulo, em homenagem aos dois papas que o antecederam. Luciani viveu apenas trinta e três dias após sua eleição.
Poderia ser pouco tempo para determinar a importância do pontificado de João Paulo – chamado depois de João Paulo I, porque seu sucessor adotou o mesmo nome –, mas as características de Luciani e a resistência que encontrou no conservadorismo do Vaticano nos remete ao momento em que vive seu terceiro sucessor, o Papa Francisco.
Os romanos se referiam a Luciani como il papa che non vuole essere re (o papa que não quer ser rei). Mesmo vivendo no Palácio Apostólico, no pouco tempo de duração de seu pontificado, João Paulo I dispensou algumas formalidades tradicionais como a coroação papal. Até ali nenhum papa havia rejeitado este cerimonial. Isso causou verdadeiro furor entre os cardeais tradicionalistas. O papa passou a ser ridicularizado em seus discursos, por sua posição muito parecida a de um simples pároco e não do Bispo de Roma.
Luciani arquitetava também uma reforma administrativa no IOR (Banco do Vaticano), mas no dia 28 de setembro sucumbiria em seu próprio leito, vítima de infarto do miocárdio.
Não se pode dizer que o Papa Francisco esteja vivendo as mesmas pressões que viveu João Paulo I. A Igreja Católica passou pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), e a chegada de Francisco foi o resultado desta abertura à modernidade. Não se pode, contudo, deixar de frisar que a Igreja é a mais antiga instituição do mundo; que muitos dos seus papas foram antes monarcas e não propriamente sacerdotes; que instituições arcaicas costumam caminhar um passo atrás da sociedade.
Os custódios da tradição católica são religiosos muito importantes e que exercem influência direta e indireta sobre o pontífice romano. Esta representação tradicionalista adquire forma na Cúria Romana, formada pelos cardeais, bispos e arcebispos que assistem o papa.
O problema não está na humildade de Francisco; está na opulência de alguns membros da Igreja. Não é coincidência, portanto, o fato de que o Cardeal Tarcisio Bertone surja novamente nas crônicas de corrupção do clero. Isso tudo vai de encontro à personalidade simples do papa.
Um pontífice romano que escolheu viver numa hospedaria dentro do Vaticano (Casa Santa Marta) e que sonha com uma Igreja pobre não deve ser precisamente o papa dos sonhos de um cardeal abastado. O tempo dos príncipes não mais existe. Os cardeais o escolheram justamente para combater a distância entre a Igreja e o fiel, para combater a pedofilia dentro do clero. Francisco deveria mostrar que a Igreja é pobre e para os pobres, um sonho de humildade que remete a instituição aos primórdios de sua fundação.
A condição do Papa Francisco pode ser parecida com os primeiros momentos de João Paulo I. Mas o argentino é um homem forte; ainda que possua alguma debilidade, mesmo física, não a demonstrou. É diferente de todos os seus predecessores. Sua visão social é muito mais ampla.Ele nasceu numa terra de desigualdades e, diferente dos papas europeus, conhece a realidade na pele. Por isso deve ultrapassar as barreiras do tempo e da tradição extremada do Vaticano para garantir ao seu pontificado seu matiz moral que é a humildade dos pobres de espírito.
Mailson Ramos, é colunista do portal Nossa Política, http://nossapolitica.net/
Mensalão tucano, uma história surreal
12 de Novembro de 2015, 9:15Por Altamiro Borges – de São Paulo:
Até a Folha tucana está envergonhada e não tem mais como esconder esta história absurda, surreal. No Brasil, como se fosse uma cláusula pétrea, nenhum tucano de alta plumagem vai para a cadeia! Basta se filiar ao PSDB, que a impunidade está garantida.
Em editorial publicado na semana passada, o jornal criticou a morosidade do Judiciário no julgamento do chamado “mensalão tucano” – que até recentemente o próprio veículo chamava carinhosamente de “mensalão mineiro” para aliviar a barra dos culpados. Vale conferir o artigo, que partindo de onde partiu pode representar um novo capítulo na sangrenta guerra no ninho entre os paulistas e os mineiros que se bicam pelo controle da legenda:
Editorial – 04/11/2015
História sem fim
Publicada por esta Folha, a reportagem “Mensalão tucano segue parado na Justiça” mostra que se tornou real um receio manifestado não só por petistas, mas por todos os que esperam do Judiciário uma atuação imparcial, pouco importando para o desfecho do processo as características pessoais do réu – como sua filiação partidária.
Encontra-se parada há nada menos que 19 meses a ação movida contra Eduardo Azeredo (PSDB), ex-governador de Minas Gerais. Remetido aos tribunais mineiros em março de 2014, o caso tardou um ano até chegar aos cuidados da juíza substituta da 9ª Vara Criminal de Belo Horizonte.
Na última sexta-feira, completaram-se mais sete meses sem novidades. Falta apenas a sentença, mas a magistrada reclama, não sem razão, da extensão da ação penal (são 52 volumes). Afirma que só anunciará a decisão após estudá-la a fundo. É justo.
Pode-se lembrar, todavia, talvez com ainda mais razão, que o processo estava pronto para ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2014. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pedia a condenação de Azeredo a 22 anos de prisão.
Segundo a acusação, Azeredo desviou recursos públicos para bancar sua campanha à reeleição, em 1998, por meio de um esquema montado pelo publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza – anos depois condenado por participação no mensalão petista.
Doze dias após Janot apresentar suas alegações finais, Azeredo renunciou ao mandato de deputado federal. Com isso, abdicou do foro privilegiado, e o STF enviou o processo à primeira instância.
A manobra surtiu o efeito que Azeredo desejava, e o exemplo logo foi seguido pelo empresário Clésio Andrade (PMDB-MG), que renunciou a seu mandato no Senado em julho de 2014. Seu processo também foi remetido à 9ª vara de Belo Horizonte, onde pouco avançou.
Após tantas delongas, o ex-ministro Walfrido dos Mares Guia e o tesoureiro da campanha de 1998, Cláudio Mourão, já se livraram das acusações; Azeredo poderá se beneficiar da prescrição em 2018.
No ritmo manso da Justiça diante do chamado mensalão tucano, já não espantará se todos terminarem impunes – e a maior suspeita incidirá sobre o próprio Judiciário.
O editorial é quase irretocável. A Folha só cometeu um erro. A maior suspeita sobre a impunidade de Eduardo Azeredo não incidirá somente sobre o Judiciário. Ela também recairá sobre a mídia parcial e partidarizada. Durante o triste reinado de FHC, a imprensa privatista, empolgada com a imposição do receituário neoliberal de desmonte do Estado, da nação e do trabalho, evitou cumprir o fictício papel do quarto poder, fiscalizando os tucanos. Houve até denúncias de corrupção, mas elas sempre foram tímidas em função da defesa do projeto maior do neoliberalismo. A privataria das estatais e a compra dos votos para a reeleição de FHC, só para citar dois exemplos, nunca foram investigadas a fundo.
Com o novo ciclo político aberto com a vitória de Lula no final de 2002, porém, a mídia partidarizada mudou radicalmente de postura. Como teorizou a tagarela Judith Brito, executiva da própria Folha e então presidenta da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), a imprensa passou a exercer a “posição oposicionista”. Nos últimos anos, principalmente a partir da operação midiática-judicial do chamado “mensalão petista”, o seu esforço foi para criar no imaginário popular a ideia de que a corrupção foi inventada pelo PT. Na prática, a mídia ajudou a chocar o ovo da serpente fascista, que se expressa nas cenas de ódio de alguns midiotas que rosnam pelo “Fora Dilma” e pela volta dos militares ao poder.
Neste período, o julgamento do “mensalão tucano” – que envolveu exatamente as mesmas figuras que deram origem ao “mensalão petista” – simplesmente foi esquecido. Na sua falsa cruzada moralista, a mídia seletiva preferiu ocultar os tucanos acusados de corrupção – sejam os envolvidos no “mensalão mineiro” ou na construção de “aecioporto”, sejam os metidos nas maracutaias do metrô paulista – que a imprensa até hoje rotula carinhosamente de “cartel dos trens”. Neste sentido, a total impunidade dos caciques do PSDB não é culpa, apenas, do Judiciário. A mídia ajudou a construir esta história surreal.
Em tempo: Outra prova cabal de que os tucanos não vão para a cadeia foi dada no final de outubro. O ministro Teori Zavascki, do STF, determinou o arquivamento do inquérito que investigava a denúncia de que o senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) recebeu R$ 1 milhão do doleiro Alberto Youssef no esquema de corrupção da Petrobras. Ele acolheu parecer da Procuradoria Geral da República, que não apontou elementos para a continuidade das investigações, contrariando a própria Polícia Federal. O ex-governador de Minas Gerais comemorou a decisão: “Serenamente, confiei na Justiça. E agora ela acontece. Agradeço o apoio de todos”. De fato, basta ser filiado ao PSDB para escapar da cadeia!
Altamiro Borges, é jornalista, presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, militante do PCdoB.
A urgência de uma ecologia integral
11 de Novembro de 2015, 9:18Por Leonardo Boff – do Rio de Janeiro:
Uma das afirmações básicas do novo paradigma científico e civilizatório é o reconhecimento da inter-retro-relação de todos com todos, constituindo a grande rede terrena e cósmica da realidade. Coerentemente a Carta da Terra, um dos documentos fundamentais desta visão das coisas, afirma: ”Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos podemos forjar soluções includentes” (Preâmbulo, 3).
O Papa Francisco, em sua encíclica sobre O cuidado da Casa Comum, se associa a esta leitura e sustenta que “pelo fato de que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que leve em conta todos os aspectos da crise mundial” (n.137), se impõe uma reflexão sobre a ecologia integral pois só ela dá conta dos problemas da atual situação do mundo.
Esta interpretação integral e holística ganha uma reforço inestimável dada a autoridade com que se reveste a figura do Papa e a natureza de sua encíclica, dirigida a toda a humanidade e a cada um de seus habitantes. Não se trata mais apenas da relação do desenvolvimento com a natureza, mas do ser humano para com a Terra como um todo e com os bens e serviços naturais, os únicos que podem sustentar as condições físicas, químicas e biológicas da vida e garantir um futuro para a nossa civilização.
O tempo é urgente e corre contra nós. Por isso, todos os saberes devem ser ecologizados, vale dizer, postos em relação entre si e orientados para o bem da comunidade de vida. Igualmente todas as tradições espirituais e religiosas são convocadas a despertarem a consciência da humanidade para a sua missão de ser a cuidadora dessa herança sagrada recebida do universo e do Criador, que é a Terra viva, a única Casa que temos para morar.
Junto com a inteligência intelectual deve vir a inteligência sensível e cordial e, mais que tudo, a inteligência espiritual, pois é ela que nos relaciona diretamente com o Criador e com o Cristo ressuscitado que estão fermentando dentro da criação, levando-a junto conosco para a sua plenitude em Deus (nn.100; 243).
O Papa cita o comovente final da Carta da Terra que resume bem a esperança que deposita em Deus e no empenho dos seres humanos: ”Que nosso tempo seja lembrado pelo despertar de um nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta pela justiça e pela paz e pela alegre celebração da vida” (n. 207).
Outra notável contribuição vem do conhecido psicanalista Carlos Gustavo Jung (1875-1961) que, em sua psicologia analítica, deu grande importância à sensibilidade e submeteu a duras críticas o cientifismo moderno. Para ele a psicologia não possuía fronteiras, entre cosmos e vida, entre biologia e espírito, entre corpo e mente, entre consciente e inconsciente, entre individual e coletivo. A psicologia tinha que ver com a vida em sua totalidade, em sua dimensão racional e irracional, simbólica e virtual, individual e social, terrena e cósmica, e em seus aspectos sombrios e luminosos.
Sabia articular todos os saberes disponíveis, descobrindo conexões ocultas que revelavam dimensões surpreendentes da realidade. Conhecido foi o dialogo em 1924-1925 que Jung manteve com um indígena da tribo Pueblo no Novo México nos EUA. Este indígena achava que os brancos eram loucos. Jung lhe perguntou: por que os brancos seriam loucos? Ao que o indígena respondeu: ”Eles dizem que pensam com a cabeça”. “Mas é claro que pensam com a cabeça” retrucou Jung. “Como vocês pensam”? – arrematou. E o indígena, surpreso, respondeu: ”Nós pensamos aqui”, e apontou para o coração (Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 233).
Esse fato transformou o pensamento de Jung. Entendeu que o homem moderno havia conquistado o mundo com a cabeça, mas que havia perdido a capacidade de pensar e sentir com o coração e de viver através da alma. A mesma crítica fez o Papa quando esteve na ilha italiana de Lampeduza, onde centenas de refugiados se haviam afogado. “Desaprendemos a sentir e a chorar.”
Logicamente não se trata de abdicar da razão – o que seria uma perda para todos –, mas de recusar o estreitamento de sua capacidade de compreender. É preciso considerar o sensível e o cordial como elementos centrais no ato de conhecimento. Eles permitem captar valores e sentidos presentes na profundidade do senso comum.A mente é sempre incorporada, portanto, sempre impregnada de sensibilidade, e não apenas cerebrizada.
Em suas Memórias diz: ”há tantas coisas que me repletam: as plantas, os animais, as nuvens, o dia, a noite e o eterno presente nos homens. Quanto mais me sinto incerto sobre mim mesmo, mais cresce em mim o sentimento de meu parentesco com o todo” ( p. 361).
O drama do homem atual é ter perdido a capacidade de viver um sentimento de pertença, coisa que as religiões sempre garantiam. O que se opõe à religião não é o ateísmo ou a negação da divindade. O que se opõe é a incapacidade de ligar-se e religar-se com todas as coisas. Hoje as pessoas estão desenraizadas, desconectadas da Terra e da anima, que é a expressão da sensibilidade e da espiritualidade.
Se não resgatarmos hoje a razão sensível, que é uma dimensão essencial da alma, dificilmente nos moveremos para respeitar o valor intrínseco de cada ser, amar a Mãe Terra com todos os seus ecossistemas, e vivermos a compaixão com os sofredores da natureza e da humanidade.
Leonardo Boff, é colunista do JB on line e escritor.
Mitos e estereótipos sobre a mulher estuprada
10 de Novembro de 2015, 9:44Por Emanuela Cardoso Onofre de Alencar – de São Paulo:
O Projeto de Lei nº 5.069 de 2013 provoca diversos retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, em especial daquelas que foram vítimas de violência sexual. Um exemplo é o regresso à exigência de exame de corpo de delito e de boletim de ocorrência, caso a mulher resulte grávida de seu estuprador e deseje realizar um aborto legal.
Pela Lei nº 12.845 de 2013, que o projeto visa modificar, a afirmação da mulher de que foi estuprada é suficiente. Isso não quer dizer que realizar um aborto legal no sistema público de saúde seja algo simples, já que uma mulher pode encontrar diferentes barreiras para realizar um aborto legal, seguro e que é um direito seu. O Projeto de Lei nº 5.069 de 2013 representa o retorno de uma barreira que legalmente estava superada. Mas este não é o único retrocesso que acompanha essa proposta. A exigência de comprovação do estupro legitima a percepção de que é fácil para uma mulher afirmar que foi esturprada e de que ela pode simplesmente estar mentido para, por exemplo, realizar um aborto. O mito da mulher mentirosa é um dos mais frequentes sobre as mulheres que sofrem violência sexual.
Os mitos e os estereótipos de gênero em casos de violência sexual contra mulheres, de todas as idades, são frequentes em praticamente todas as sociedades, e decorrem das desigualdades de gênero que, de distintos modos, caracterizam-nas. A subordinação histórica das mulheres, somada aos controles de sua sexualidade, contribuíram para formar determinadas percepções sobre a mulher e o feminino que geram discriminações em diversos espaços sociais. Quando essas percepções estão presentes em diferentes contextos e são aceitas socialmente, é possível que sejam naturalizadas, o que faz com que seu exame crítico e questionamento sejam mais difíceis. Os mitos e os estereótipos de gênero não só podem produzir discriminação, tampouco justificar a violência.
Uma pesquisa recente do IBGE, “Tolerância social à violência contra as mulheres”, apontou como os estereótipos de gênero relacionados com a violência, inclusive a sexual, estão presentes no imaginário social brasileiro. No que se refere à violência sexual, a pesquisa mostrou que 65% das pessoas entrevistadas concordam com a afirmação de que “mulheres que usam roupa que mostram o corpo merecem ser atacadas,” e 58,5% concordou com a ideia de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupro.” O que os resultados da pesquisa revelam é que mais da metade dos entrevistados considera que as mulheres são responsáveis pela agressão que sofrem, e que cabe a elas cuidar de suas atitudes e condutas, do que vestem e por onde andam para não “provocar” a violência. Quando essa percepções são legitimadas pelo Direito, é muito mais difícil combater os atos de discriminação e violência justificados com base em mitos e estereótipos.
Ademais dos destacados na pesquisa do Ipea, é possível apontar outros mitos e estereótipos sobre o estupro de mulheres para ilustrar o problema. São exemplos as percepções de que o estuprador é sempre um estranho, nunca um amigo ou um familiar; de que é mais provável que a mulher tenha consentido em um ato sexual se ela já teve relações sexuais anteriores; de que a mulher sempre lutará para defender sua “honra”; de que a mulher quer dizer “sim” mesmo quando ela diz “não”; de que uma mulher pode ter consentido, mesmo em casos em que houve força, coerção ou ameaça, se ela permaneceu em silêncio.
Esses estereótipos se tornam um problema grave quando são assumidos pelas instituições. Seu uso generalizado em diferentes ámbitos pode naturalizá-los, especialmente quando influenciam na elaboração de normas legais e refletem-se nas atitudes e práticas de agentes do Estado. Seu uso dificulta o exercício de direitos e gera um clima de discriminação e vulnerabilidade, justificando, em alguns casos, atos de violência, o que mantém o status quo de subordinação das mulheres.
As normas legais podem refletir de diferentes modos a aceitação de estereótipos. A forma mais visível é sua inclusão na justificação e no conteúdo de um texto legal. O Projeto de Lei nº 5.069 de 2013 é um claro exemplo. Essa é uma das maneiras mais sérias de perpetuá-los por naturalizá-los e legitimar atos de discriminação. Além das normas, os estereótipos podem influenciar também no modo em que as instituições do Estado (nas áreas de saúde, de segurança pública e de administração da justiça) reagem à vulneração de direitos através de discursos e práticas discriminatórias.
Quando o Brasil ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres (CEDAW), comprometeu-se a eliminar, entre outros, os estereótipos que mantêm as mulheres em um espaço de subordinação e justificam a violência contra elas (CEDAW, artigo 5º, 1; Recomendação Geral da CEDAW nº 19, § 11). Caso o Projeto de Lei nº 5.069 de 2013 seja aprovado, o Brasil não só retrocede na proteção dos direitos das mulheres, também legitima um mito sobre a mulher estuprada e vulnera seus compromissos assumidos internacionalmente.
Emanuela Cardoso Onofre de Alencar, é doutoranda na Faculdade de Direito da Universidad Autónoma de Madrid. Membro do Instituto Universitario de Estudios de la Mujer – IUEM-UAM. Pesquisadora, entre outros temas, sobre questões de gênero relacionadas com o Direito.
A volta do mercado de outorgas de água
9 de Novembro de 2015, 14:40Por Roberto Malvezzi, Gogó – de Juazeiro:
Esses dias fui entrevistado pela Folha de São Paulo sobre uma nova investida da Agência Nacional de Águas para a criação do “mercado de outorga de águas”. O assunto é antigo e, vez em quando, se mexe no túmulo.
A proposta vem do Banco Mundial e FMI para a criação do mercado de águas como a melhor forma de gerir a crescente crise hídrica global. Como no Brasil a água é um bem da União (Constituição de 1988) ou um bem público (conforme a lei 9.433/97), então ela não pode ser privatizada e nem mercantilizada.
Acontece que há tempos o grupo que representa o pensamento dessas instituições internacionais no Brasil – e das multinacionais da água – busca brechas na lei para criar o mercado de águas, pelo mecanismo de compra e venda de outorgas. Já que a água não pode ser um bem privado, então que se tenta criar o mercado das outorgas (quantidades de água concedidas pelo Estado a um determinado usuário), podendo ser vendida de um usuário para outro.
Hoje o mercado de outorgas é impossível. Quando um usuário que conseguiu uma outorga não utiliza a água demandada, ela volta ao poder do Estado e não pode ser transferida de um usuário para o outro, muito menos ser vendida. A finalidade é óbvia, isto é, evitar que se crie especulação financeira em torno de um bem público e essencial, evitando a compra e venda de reservas de água.
A lei já tem uma aberração, que é a outorga preventiva, isto é, uma empresa pode reservar para si um determinado volume de água até que seu empreendimento possa ser implantado. Essa outorga preventiva pode ser renovada mesmo quando o prazo foi expirado e nenhuma gota d’água utilizada.
Onde o mercado de águas – sob todas as formas – foi criado o fracasso foi mortal, literalmente. Na Bolívia gerou a guerra da água, na França, depois de alguns anos, o serviço voltou ao controle público. Assim em tantas partes do mundo.
Mas o Brasil é tardio e colonizado. Muitos de nossos agentes públicos também o são.
Pela nossa legislação existe uma ética no uso da água, isto é, em caso de escassez a prioridade é o abastecimento humano e a dessedentação dos animais. Portanto, prioridades como essas, estabelecidas em lei, não podem ser substituídas pelo mercado. Em momentos críticos como esse é exigida a intervenção do Estado através do organismo competente para determinar a prevalência das prioridades sobre os demais usos.
Se prevalecer o mercado, então uma empresa de abastecimento de água, para ganhar dinheiro, pode vender parte – ou totalmente – de sua outorga para uma empresa de irrigação, por exemplo. Nesse caso, sacrificaria as pessoas em função do lucro e da empresa que pode pagar mais pela água.
Portanto, não é só uma questão legal, é antes de tudo ética, humanitária e zeladora dos direitos dos animais. A proposta inverte a ordem natural e dos valores, colocando o mercado como senhor absoluto da situação, exatamente em momentos de escassez gritante.
Roberto Malvezzi, Gogó, é músico. filósofo e teólogo, robertomalvezzi@hotmail.com
Brasil-EUA: a submissão, a “cooperação” e a soberania
8 de Novembro de 2015, 20:19Por Mauro Santayana – do Rio de Janeiro:
A vocação para submissão de parcelas do Judiciário e da área de segurança brasileiras às autoridades norte-americanas é impressionante.
Como exemplo, temos a “colaboração” prestada pelo Ministério Público e pela Operação Lava-a-jato a procuradores norte-americanos que estão recolhendo provas contra a Petrobras e oferecendo acordos de delação premiada a presos brasileiros submetendo-se colonizada, e alegremente – nas barbas do Ministério da Justiça – às autoridades de um país estrangeiro, como se elas tivessem jurisdição em território nacional, em uma causa que envolve uma empresa de controle estatal que pertence não apenas aos seus “investidores” diretos, mas a todos os cidadãos brasileiros.
Depois, temos a romaria de procuradores e juízes aos EUA, para receber “homenagens” relacionadas a assuntos internos nacionais, e a recente presença de ministros da Suprema Corte em reuniões do Diálogo Interamericano – uma espécie de Foro de São Paulo às avessas – nos EUA. Já imaginaram um procurador norte-americano se deslocando para o Brasil para ser premiado por sua atuação, na investigação, digamos, de corrupção na General Motors, ou na AMTRAK, uma das maiores empresas estatais dos EUA – tradicionalmente deficitária – com mais de 20 mil funcionários, e presente nos 48 Estados da Federação?
Como se não bastasse, agora, chega a vez do Rio de Janeiro tomar a iniciativa de anunciar a próxima abertura de um escritório da agência norte-americana de controle de drogas no Estado, a pretexto de prestar, às autoridades fluminenses, “consultoria” no combate ao tráfico e ao contrabando de armas.
Perguntar não ofende.
Considerando-se que as áreas de defesa e de relações internacionais são prerrogativa da União, e o fato de a agência norte-americana ser federal e não estadual, não seria o caso desses convênios e acordos passarem antes pelo crivo e aprovação do Itamaraty, do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça e da Comissão de Defesa e Relações Externas da Câmara dos Deputados?
Quando é que o Brasil vai começar a impedir ou a controlar as atividades de agentes norte-americanos de inteligência – espiões, leia-se, porque de outra coisa não se trata – em nosso território?
Essas áreas, tão solícitas em implorar o prestimoso “auxílio” norte-americano, e em aparecer nos Estados Unidos, em eventos mais “sociais” do que outra coisa, já ouviram ou conhecem o significado do termo reciprocidade, aplicado à relação entre estados soberanos?
Já se imaginou a Polícia Federal brasileira abrindo um escritório nos EUA, para prestar “consultoria” à polícia nova-iorquina no combate ao tráfico de armas?
Isso nunca ocorreria, pelo simples fato de que a população, a imprensa, o Judiciário e o Congresso dos EUA não o aceitariam, porque, ao menos nesse aspecto, eles têm vergonha na cara.
Vergonha, em nosso lugar, com esse tipo de atitude, não é outra coisa que países latino-americanos – com exceção do México, cada vez mais um estado norte-americano – vão sentir ao saber dessa notícia.
Vergonha, em nosso lugar e não outro sentimento, é o que vão ter nossos parceiros do BRICS, ao saber dessa notícia, já que todo o mundo sabe como os EUA agem: primeiro abrem um escritório em uma determinada área, depois um monte de escritórios de “cooperação” em várias outras áreas, e, depois, dificilmente dão o fora, sem criar problemas, a não ser que sejam derrotados e escorraçados, como ocorreu ao fim da guerra do Vietnam.
Ou alguém aqui imagina a Rússia, a Índia e a China convidando a polícia e os órgãos de inteligência norte-americanos a instalar escritórios e operar em seus respectivos territórios?
Não.
Eles não fazem isso, assim como não admitem que imbecis, em seus comentários de internet, em portais russos, indianos ou chineses, preguem a entrega de suas empresas ou de seu país aos EUA, ou encaminhem petições de intervenção à Casa Branca, como comumente ocorre, nestes tempos vergonhosos que vivemos, em portais e sites brasileiros.
Talvez por isso, a Rússia, a China e a Índia, sejam potências espaciais, militares e atômicas, enquanto nós estamos nos transformando, cada vez mais, em um ridículo simulacro de província norte-americana, apesar de sermos, com mais de 250 bilhões de dólares emprestados, o terceiro maior credor individual externo dos EUA.
Em tempo: em sua comunicação com a imprensa, o governo do Rio de Janeiro conclui dizendo que não pode dizer quando vai começar a operar o escritório norte-americano em território fluminense.
O anúncio oficial da instalação não será feito por nenhuma autoridade brasileira.
Ele será feito – incrível e absurdamente – como se estivesse ocorrendo em território norte-americano, pelo próprio governo dos EUA.
Nesta toada, conviria começar a pensar, com urgência, na realização de um plebiscito para a entrega do Brasil aos Estados Unidos.
Com isso, os bajuladores poderiam exercer seu amor aos gringos sem precisar de visto, ou de se deslocar para Miami ou Nova Iorque.
Aprenderíamos o inglês como primeira língua, sem necessidade de pagar as mensalidades do curso de idiomas.
E todos nós receberíamos em dólares, trabalhando e descansando quando Deus nos permitisse, já que nos EUA não existe sequer a obrigação de pagar férias remuneradas, por exemplo.
A questão é saber, se, juntamente com as riquezas e o território brasileiros, os EUA, tão ciosos de sua nacionalidade – aceitariam receber, sob sua bandeira, a “estirpe” de invertebrados morais, hipócritas, entreguistas, submissos e antipatrióticos em que estamos nos transformando.
Mauro Santayana é jornalista.
Publicado, originariamente, em seu site.
Não basta acabar com Lula, é preciso destruir sua obra
8 de Novembro de 2015, 12:18Por Osvaldo Bertolino – de São Paulo:
Como nos tempos de Getúlio Vargas, nunca se viu tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir um homem.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é desses personagens da história capazes de encher livros e livros sem que a sua real dimensão seja devidamente avaliada. Vejamos, por exemplo, o furor que ele está causando somente por ter aventado a possibilidade de ser candidato ao cargo que já ocupou. Na dúvida, a direita tenta fuzilá-lo para evitar que mais um ciclo progressista seja engatado no que termina em 2018. E o jogo é sujo, torpe, rasteiro.
Não se está aqui dizendo que Lula será o franco favorito nas eleições presidenciais. Desde que o mundo é mundo, prever o futuro tem sido um desafio constante. Da cigana que lê a mão aos videntes e futurólogos de todos os matizes, ainda não se conheceu ninguém que fosse capaz de predizê-lo regularmente e com precisão. Seria demasia, portanto, esperar que nestes tempos de horizontes turvos surgissem um gênero diferenciado e mais eficaz de pitonisas. Convenhamos, as bolas de cristal talvez poucas vezes estiveram tão turvas.
Mas a direita não quer correr o menor risco. Como a tática de “sangrar” a presidenta Dilma Rousseff parece ser a que vai restando diante da reação ao golpismo, os direitistas raciocinam com um olho no presente e outro no futuro. Tática, aliás, que tentaram usar contra Lula, quando ele era presidente, assim como o impeachment, tido pelos golpistas como similar à bomba atômica, mostrada para assolar, não para detonar e matar, segundo o ex-presidente neoliberal Fernando Henrique Cardoso (FHC). E assim vão regulando o fogo do denuncismo de acordo com suas conveniências.
Moeda corrente
Quem acompanha o mundo político, mesmo que à distância, vê diuturnamente que nesse espetáculo circense os atores têm papéis bem definidos. É um ato em que os líderes da oposição nem precisam aparecer — os ataques são feitos por prelados da mídia, economistas de direita e adivinhos profissionais que vendem seus serviços como “analistas”. O objetivo — ou o mais adequado seria dizer desejo? — é ver o governo imobilizado.
As votações parlamentares, por exemplo, estão praticamente paralisadas. Não se pode, evidentemente, desconsiderar a grande parcela de culpa do governo nisso, que manteve uma relação política com o Congresso Nacional marcada por vacilações e equívocos. Faltou vontade política necessária para deflagrar e sustentar um processo político de continuidade das mudanças. Mas o fundamental é o jogo rasteiro da oposição.
Formalmente, temos uma democracia robusta, dizem por aí. A questão é que o conceito de democracia baseia-se, em poucas palavras, na aceitação das regras do jogo tidas como razoáveis para todos. Há, no entanto, um fato decisivo a se considerar: no jogo eleitoral da direita, as torpezas são moeda corrente. As primeiras manchetes do que viria a ser a sórdida onda de ataques a Lula, por exemplo, representou uma espécie de ordem unida para o avanço da direita. Ou seja: soou a voz do dono.
Criança órfã
Desde então, o que se viu foi a repetição da sordidez outrora usada contra o próprio Lula e contra Getúlio Vargas. Como naqueles idos, nunca se viu tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir um homem. Desde a fúria contra Vargas, nunca se viu tanto ódio, tanta torpeza, tantos insultos contra uma pessoa que nada fez para merecer isso tudo.
O que está se passando com Lula é ignóbil. Dia a dia, ultrajam-no mais. Nem a sua família lhe poupam. A mídia já cometeu todos os desmandos, ultrapassou todos os limites, rompeu todas as convenções. Nada ficou de pé. E a cada um dos desatinos parece que a única preocupação é superar os anteriores. Seus “analistas” têm o único objetivo de criar um coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas. O objetivo confesso é fazer Lula parecer uma criança órfã, desamparada de pai e mãe.
Para tanto, se aproveitam de suas próprias criações, como é o caso da corrupção eleitoral, para vender a ideia de que o país precisa de um salvador da pátria. E assim criam dificuldade para o eleitorado definir o voto, inclusive nas eleições municipais do ano que vem. Avaliam bem a composição de forças que definirão o futuro do país e definem os alvos para os ataques sem trégua. E despejam munição pesada. Parafraseando Joaquim Nabuco, o abolicionista, não basta acabar com Lula; é preciso destruir sua obra.
Osvaldo Bertolino, é editor do Portal Grabois, pesquisador da Fundação Maurício Grabois.
Discurso de Francisco aos participantes do 2º EMMP
6 de Novembro de 2015, 9:53Por Frei Marcos Sassatelli – de São Paulo:
Neste 5º artigo sobre o 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares destaco o quarto ponto marcante do Discurso do Papa Francisco: “unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça” (que é a segunda grande tarefa proposta por Francisco aos Movimentos Populares). O Papa Francisco começa dizendo: “Os povos do mundo querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz para a justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e tradições religiosas sejam respeitados”.
E ainda: “Nenhum poder efetivamente constituído tem direito de privar os países pobres do pleno exercício da sua soberania e, quando o fazem, vemos novas formas de colonialismo que afetam seriamente as possibilidades de paz e justiça, porque ‘a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do ser humano, mas também no respeito pelos direitos dos povos, sobretudo o direito à independência’” (cita o“Compêndio da Doutrina Social da Igreja” do Pontifício Conselho ‘Justiça e Paz’, 157). Francisco lembra: “Os povos da América Latina alcançaram, com um parto doloroso, a sua independência política e, desde então, viveram já quase dois séculos duma história dramática e cheia de contradições, procurando conquistar uma independência plena”.
E constata: “Nos últimos anos, depois de tantos mal-entendidos, muitos paíseslatino-americanos viram crescer a fraternidade entre os seus povos. Os Governos da região juntaram seus esforços para fazer respeitar a sua soberania, a de cada país e a da região como um todo que, de forma muito bela como faziam os nossos antepassados, chamam a ‘Pátria Grande’”.O Papa faz, pois, um pedido aos Movimentos Populares: “Peço-vos, irmãos eirmãs dos Movimentos Populares, que cuidem e façam crescer esta unidade. É necessário manter a unidade contra toda tentativa de divisão, para que a região cresça em paz e justiça”.Francisco reconhece: “Apesar destes avanços, ainda subsistem fatores que atentam contra este desenvolvimento humano equitativo e limitam a soberania dos países da ‘Pátria Grande’ e doutras latitudes do Planeta. O novo colonialismo assume variadas fisionomias. Às vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro: corporações,credores, alguns tratados de nominados ‘de livre comércio’ e a imposição de medidasde ‘austeridade’ que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres”. O Papa lembra ainda: “Os bispos latino-americanos denunciam-no muito claramente, no Documento de Aparecida (66), quando afirmam que ‘as instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez maisimpotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações’”.
Como um verdadeiro profeta, Francisco denuncia: “Noutras ocasiões, sob onobre disfarce da luta contra a corrupção, o narcotráfico ou o terrorismo – gravesmales dos nossos tempos que requerem uma ação internacional coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que pouco têm a ver com a resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as coisas piores”.
E continua: “Da mesma forma, a concentração monopolista dos meios decomunicação social, que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural, é outra das formas que adota o novo colonialismo. É o colonialismo ideológico. Como dizem os bispos da África, muitas vezes pretende-seconverter os países pobres em ‘peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigante’” (cita a Exortação Apostólica pós-sinodal “Ecclesia in Africa” de São JoãoPaulo II, 52). O Papa conclui dizendo: “Temos de reconhecer que nenhum dos graves problemas da humanidade pode ser resolvido sem a interação dos Estados e dos povos a nível internacional. Qualquer ato de envergadura realizado numa parte do Planeta repercute-se no todo em termos econômicos, ecológicos, sociais e culturais. Até o crime e a violência se globalizaram. Por isso, nenhum Governo pode atuar àmargem duma responsabilidade comum. Se queremos realmente uma mudança positiva, temos de assumir humildemente a nossa interdependência. Mas interaçãonão é sinónimo de imposição, não é subordinação de uns em função dos interesses dos outros”.
Sempre com muito realismo, Francisco afirma: “O colonialismo, novo e velho, que reduz os países pobres a meros fornecedores de matérias-primas e mão de obra barata, gera violência, miséria, emigrações forçadas e todos os males que vêmjuntos… precisamente porque, ao pôr a periferia em função do centro, nega-lhes o direito a um desenvolvimento integral. Isto é desigualdade, e a desigualdade geraviolência que nenhum recurso policial, militar ou dos serviços secretos será capaz dedeter”. Quanta clareza e quanta sabedoria nas palavras de Papa! Meditemos! Diante dessa realidade desumana e antievangélica, Francisco convida-nos a tomar uma posição clara, sem meios termos e sem ambiguidades: “Digamos NÃO às velhas enovas formas de colonialismo. Digamos SIM ao encontro entre povos e culturas. Bem-aventurados os que trabalham pela paz”.
Por último, o Papa diz: “Aqui quero deter-me num tema importante. É que alguém poderá, com direito, dizer: ‘quando o Papa fala de colonialismo, esquece-se decertas ações da Igreja’. Com pesar, vo-lo digo: Cometeram-se muitos e graves pecados contra os povos nativos da América, em nome de Deus. Reconheceram-noos meus antecessores, afirmou-o o CELAM e quero reafirmá-lo eu também. Como São João Paulo II, peço que a Igreja ‘se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão pelos pecados passados e presentes dos seus filhos’” (cita a Bula “Incarnationismysterium” de São João Paulo II, 11). E afirma: “Digo-vos que quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: Peço humildemente perdão, não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América. Peço-vos também a todos, crentes e não crentes, que se recordem de tantos bispos,sacerdotes e leigos que pregaram e pregam a Boa Nova de Jesus com coragem emansidão, respeito e em paz; que, na sua passagem por esta vida, deixaram impressionantes obras de promoção humana e de amor, pondo-se muitas vezes aolado dos povos indígenas ou acompanhando os próprios Movimentos Popularesmesmo até ao martírio”.
Francisco declara: “A Igreja, os seus filhos e filhas, fazem parte da identidade dos povos na América Latina. Identidade que alguns poderes, tanto aqui como noutros países, se empenham por apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária, porque anossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro”. Irmãos e irmãs, reparem a radicalidade evangélica dessas palavras: “a nossa fé é revolucionária”, “a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro”! Como cidadãos e cidadãs, cristãos e cristãs, o Papa nos provoca, nos faz refletir e nos impele a tomar atitudes firmes.
Com muita dor no coração, Francisco reconhece: “Hoje vemos, com horror,como no Médio Oriente e noutros lugares do mundo se persegue, tortura, assassina a muitos irmãos nossos pela sua fé em Jesus. Isto também devemos denunciá-lo: dentro desta terceira guerra mundial em parcelas que vivemos, há uma espécie de genocídio em curso que deve cessar”. Mais uma vez, irmãos e irmãs, reparem as palavras:“terceira guerra mundial em parcelas”. Não dá para sermos indiferentes diante dessa realidade! O Papa termina essa parte de seu discurso expressando sua solidariedade deirmão aos povos indígenas: “Aos irmãos e irmãs do movimento indígena latino-americano, deixem-me expressar a minha mais profunda estima e felicitá-los porprocurarem a conjugação dos seus povos e culturas segundo uma forma deconvivência, a que eu chamo poliédrica, onde as partes conservam a sua identidade construindo, juntas, uma pluralidade que não atenta contra a unidade, mas fortalece-a. A procura desta interculturalidade, que conjuga a reafirmação dos direitos dos povos nativos com o respeito à integridade territorial dos Estados, enriquece-nos e fortalece-nos a todos”.
Quanta sensibilidade, quanta ternura e quanta sintonia com os desafios do mundo de hoje nas palavras e nas atitudes do nosso irmão Francisco! E nós cristãos ecristãs – em nossas Pastorais Sociais e Ambientais – temos essa mesma sensibilidade, essa mesma ternura e essa mesma sintonia? Pensemos!
Fr Marcos Sassatelli, Frade dominicano, é Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP),Professor aposentado de Filosofia da UFGE-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Mitos fundantes
5 de Novembro de 2015, 9:48Por Frei Betto – do Rio de Janeiro:
Há instituições e processos sociais que asseguram sua unidade e coerência sobre um mito fundante. Exemplo óbvio é a figura do papa à frente da Igreja Católica. Fosse o papado suprimido, a Igreja seria um corpo sem cabeça. Cada bispo se julgaria no direito de proceder como lhe conviesse e logo irromperiam conflitos e rupturas.
Uma instituição ou processo social sem mito fundante é como um navio sem capitão ou aeronave sem piloto. Exemplo é o PCB (Partido Comunista Brasileiro) quando Prestes se afastou de sua direção. Nunca mais o partidão foi o mesmo. Nenhum de seus sucessores tinha carisma suficiente para manter a coesão partidária. Aos poucos, o PCB perdeu seu vigor.
O que seria do PT sem Lula? Nenhum de seus líderes tem, como ele, o brilho da estrela. São como astros que giram ao redor do sol e carecem de luz própria.
O que será de Cuba sem Fidel e Raúl? Os dois se encontram em idade avançada. Deixarão sucessores capazes de, como eles, manter o povo cubano confiante nos rumos da Revolução?
As grandes religiões se segmentaram em tendências conflitantes após a morte de seus fundadores. Após Jesus, a Igreja conheceu tendências heréticas e, no século XI, rachou-se entre os patriarcados do Oriente e do Ocidente; no século XVI, Lutero abriu um novo caminho para a fé cristã de costas para Roma.
O mesmo ocorreu entre os muçulmanos após a morte de Maomé. Dividiram-se entre sunitas e xiitas e, hoje, em países árabes, combatem entre si com armas nas mãos. Até mesmo os discípulos de Francisco de Assis assumiram caminhos divergentes, divididos entre frades menores e capuchinhos.
Inútil argumentar contra o culto à personalidade, como se as pessoas aderissem a um partido político ou religião após tomarem conhecimento de seu programa ou de sua doutrina, ainda que seus líderes sejam corruptos. Na nossa cultura, o exemplo pessoal fala mais alto do que propósitos enunciados em discursos e projetos. Talvez o culto à personalidade seja um mal necessário.
A dificuldade, hoje em dia, em tempos de evasão da privacidade, é encontrar quem sirva de exemplo, como é o caso do papa Francisco. Estamos todos sujeitos ao olho panóptico do Big Brother. Nada escapa à transparência facilitada pelas novas tecnologias. Não há mais segredos invioláveis. Como demonstrou Snowden, até o sistema de segurança dos EUA é vulnerável. E hackers são capazes de invadir os mais protegidos computadores.
Soma-se a isso a inversão de valores. Minha geração admirava pessoas solidárias, movidas por ideais humanitários, como Gandhi, Luther King, Che Guevara e Mandela. Quem são os ídolos dos jovens de hoje? A maioria se mobiliza pela ambição de riqueza, beleza, fama e poder. Estaria disposta a se engajar na construção de um mundo de justiça e paz?
O que me deixa otimista é o fato de o planeta ter se tornado uma pequena aldeia. Todas as fronteiras estão ameaçadas, as territoriais e as que segregam pessoas.
Frei Betto, é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.
Depois da ponte
4 de Novembro de 2015, 9:32Por José Luís Fiori – do Rio de Janeiro:
“Se se tiver em conta as civilizações, como principais personagens da história, será preciso forçosamente distinguir as guerras “internas” desta ou daquela civilização, das guerras “exteriores” entre estes universos hostis. De um lado, as Cruzadas e as Jihads, do outro, as guerras internas da Cristandade ou do Islã, porque as civilizações queimam-se a si mesmas em intermináveis guerras civis, fratricidas: o Protestante contra o Romano, o Sunita contra o Xiita…”
F. Braudel, 1995 (1966), “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo”, Vol II, p: 206 Publicações Dom Quixote, Lisboa.
Escrevo estas linhas num Café de Sarajevo. Seu nome, sua decoração, e sua elegância, lembram Viena, e o período da dominação austro-húngara da Bósnia-Herzegovina, entre 1878 e 1918. O Café está situado a poucos metros da Ponte Latinska, sobre o rio Miljaka, o lugar exato em que o estudante sérvio Gavrilo Princip, de 19 anos, matou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austríaco, no dia 28 de julho de 1914, dando início – sem saber, nem pretender – a uma guerra devastadora que destruiu quatro impérios, mudou a geografia da Europa e redesenhou a história e geopolítica mundiais. Ao mesmo tempo, na frente do Café Vienense, uma placa convida para visitar um museu com filmes e fotografias sobre a última grande guerra europeia do século XX, que também passou pela Bósnia e Sarajevo, entre 1992 e 1995, e pelo Kosovo, em 1998/9, incluindo o massacre de Srebrenica, em julho de 1995. Durante esta última guerra, a cidade Sarajevo sofreu o mais longo cerco da história militar moderna. Durante três anos, Sarajevo sofreu um bombardeio sistemático que deixou um “passivo” de 12 mil mortos e 50 mil feridos, sendo 85% civis. Uma história terrível, que transformou o nome desta cidade, Sarajevo, em sinônimo de guerra e destruição, através de todo o Século XX, e para todas as gerações futuras.
No entanto, Sarajevo poderia ter sido apenas uma cidade de montanha alegre e acolhedora, se a história não a tivesse colocado numa encruzilhada por onde circularam e onde se instalaram vários povos e etnias. Mais do que isto, onde se criou um espaço de convivência e confronto quase permanente entre as duas principais civilizações/religiões que contribuíram decisivamente para a transformação do Mediterrâneo no berço do mundo moderno: o islamismo e o cristianismo, com seus vários povos e divisões internas. Tudo começou, de alguma forma, com a Batalha de Poitiers, no ano de 732 D.C., quando o exército de Charles Martel derrotou e deteve a expansão muçulmana, perto dos Pirineus, estabelecendo uma espécie de primeira e definitiva fronteira entre o mundo cristão europeu e o mundo islâmico arábico.
A partir dali, e durante os últimos 1,3 mil anos, estes povos e estas duas civilizações-religiões estabeleceram entre si uma relação indissolúvel, de guerra e complementariedade, de admiração e ódio. Foi esta relação que funcionou como a grande fonte energética que moveu o poder dos homens e de sua capacidade produtiva na direção do mundo moderno, do sistema interestatal e do capitalismo que começou pelo Mediterrâneo e acabou sendo liderado pelos europeus. Nesta longa trajetória, os europeus foram periferia econômica e politica dos impérios muçulmanos, até o século XVI, mas o mundo islâmico acabou se transformando numa periferia da Europa, nos últimos 300 anos. Sarajevo foi criada pelos islâmicos, em 1461, no auge do Império Turco-Otomano e foi a cidade mais importante do Império, na região dos Balcãs. Só no fim do século XIX, a Bósnia e Sarajevo passaram para o domínio austro-húngaro, já em pleno declínio do império otomano.
Com o fim da I GGM e o retalhamento do antigo Império Otomano, os europeus conquistaram uma vitória militar e política estrondosa com relação ao mundo islâmico, mas esta vitória não eliminou a relação essencial entre estes dois pedaços do mesmo universo que mudou uma vez mais sua forma, mas manteve sua relação essencial até o fim da Guerra Fria. Por isto, não é de estranhar que tenha sido nos Balcãs, e na própria Bósnia-Herzegovinia – depois no Kosovo – que tenham sido, de novo, travadas as últimas guerras do século XX, envolvendo cristãos ortodoxos, romanos e islâmicos. E que tenha sido nesta guerra “local” que tenha começado a se desenhar a nova ordem mundial imposta pelos ganhadores da Guerra Fria, no momento em que eles decidiram fazer a primeira intervenção militar direta da OTAN, fora do seu território original, exatamente nos Balcãs.
As “guerras balcânicas”, dos anos 90, provocaram um êxodo populacional de 2,5 milhões de refugiados, muito maior do que o que está ocorrendo, neste momento, com esta nova procissão de refugiados que vem atravessando os Balcãs na busca da proteção dos seus próprios algozes. Só no século XXI, já houve 5 guerras “externas” ou intervenções “ocidentais”, e 9 guerras civis ou religiosas, do lado do mundo islâmico. O problema é que do outro lado deste mesmo universo, a Europa também está se dividindo e desintegrando, social e politicamente, assediada pela estagnação econômica, pelo desemprego, pela crise financeira dos seus estados, pelo fechamento das suas fronteiras internas, pelo aumento da prepotência alemã, e pelas manifestações cotidianas da mais alta desumanidade, com relação a este novo êxodo de povos sobretudo islâmicos.
Foi neste momento que o garçom se aproximou da mesa e me perguntou sobre o que tanto eu escrevia. Expliquei e ele me disse: “pois então anote senhor, que haverá uma nova guerra em breve, muito breve.” Como lhe perguntasse por quê, respondeu: “Porque isto aqui são os Balcãs, isto aqui é uma ponte, senhor.” Depois se afastou, e me deixou meditando sobre suas palavras, e sobre sua certeza de uma guerra próxima. Seja como for, a verdade é que quando se olha hoje, desde aqui, para este “universo Mediterrâneo” que conquistou e moldou o mundo no último milênio, fica-se com a impressão, quase certeza, de que ele já perdeu sua energia criadora e está se apagando como uma “estrela de nêutrons”, consumido por suas guerras civis e religiosas infindáveis, por suas divisões e ódios cada vez mais profundos, e por suas agressões e intervenções “humanitárias” cada vez mais ineficientes, irracionais e catastróficas. O que foi uma relação conflituosa e criativa, através da historia do último milênio, está se transformando num “abraço de morte”. E pensar que tudo isto começou – de alguma forma – nesta ponte, aí na frente deste Café.
José Luís Fiori, é cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A religião pode fazer o bem melhor e também o mal pior
3 de Novembro de 2015, 9:32Por Leonardo Boff – do Rio de Janeiro:
Tudo o que é sadio pode ficar doente. Também as religiões e as igrejas. Hoje particularmente assistimos a doença do fundamentalismo contaminando setores importantes de quase todas as religiões e igrejas, inclusive da Igreja Católica. Há, às vezes, verdadeira guerra religiosa. Basta acompanhar alguns programas religiosos de televisão especialmente, de cunho neopentecostal, mas também de alguns setores conservadores da Igreja Católica, para ouvir a condenação de pessoas ou de grupos, de certas correntes teológicas ou a satanização das religiões afro-brasileiras.
A expressão maior do fundamentalismo de cunho guerreiro e exterminador é aquele representado pelo Estado Islâmico que faz da violência e do assassinato dos diferentes, expressão de sua identidade.
Mas há um outro vício religioso, muito presente nos meios de comunicação de massa especialmente na televisão e no rádio: o uso da religião para arrebanhar muita gente, pregar o evangelho da prosperidade material, arrancar dinheiro dos fregueses e enriquecer seus pastores e auto-proclamados bispos. Temos a ver com religiões de mercado que obedecem à lógica do mercado que é a concorrência e o arrebanhamento do número maior possível de pessoas com a mais eficaz acumulação de dinheiro líquido possível.
Se bem repararmos, para a maioria destas igrejas midiáticas, o Novo Testamento raramente é referido. O que vigora mesmo é o Antigo Testamento. Entende-se o porquê. O Antigo Testamento, exceto os profetas e de outros textos, enfatiza especialmente o bem estar material como expressão do agrado divino. A riqueza ganha centralidade. O Novo Testamento exalta os pobres, prega a misericórdia, o perdão, o amor ao inimigo e a irrestrita solidariedade para com os pobres e caídos na estrada. Onde que se ouve, até nos programas católicos, as palavras do Mestre: “Felizes vocês, pobres, porque de vocês é o Reino de Deus”?
Fala-se demais de Jesus e de Deus, como se fossem realidade disponíveis no mercado. Tais realidades sagradas, por sua natureza, exigem reverência e devoção, o silêncio respeitoso e a unção devota. O pecado que mais ocorre é contra o segundo mandamento: ”não usar o santo nome de Deus em vão”. Esse nome está colado nos vidros dos carros e na própria carteira de dinheiro, como se Deus não estivesse em todos os lugares. É Jesus para cá e Jesus para lá numa banalização desacralizadora irritante.
O que mais dói e verdadeiramente escandaliza é usar o nome de Deus e de Jesus para fins estritamente comerciais. Pior, para encobrir falcatruas, roubo de dinheiros públicos e de lavagem de dinheiro. Há quem possui um empresa cujo título é “Jesus”. Em nome de “Jesus” se amealharam milhões em propinas, escondidas em bancos estrangeiros e outras corrupções envolvendo bens públicos. E isso é feito no maior descaramento.
Se Jesus estivesse ainda em nosso meio, seguramente, faria o que fez com os mercadores do templo: tomou o chicote e os pôs a correr além de derrubar suas bancas de dinheiro.
Por estes desvios de uma realidade sagrada, perdemos a herança humanizadora das Escrituras judeo-cristãs e especialmente o caráter libertador e humano da mensagem e da prática de Jesus. A religião pode fazer o bem melhor mas também pode fazer o mal pior.
Sabemos que a intenção originária de Jesus não era criar uma nova religião. Havia muitas no tempo. Nem pensava reformar o judaismo vigente. Ele quis nos ensinar a viver, orientados pelos valores presentes em seu sonho maior, o do Reino de Deus, feito de amor incondicional, misericórdia, perdão e entrega confiante a um Deus, chamado de “Paizinho” (Abba em hebraico) com características de mãe de infinita bondade. Ele colocou em marcha a gestação do homem novo e da mulher nova, eterna busca da humanidade.
Como o livro dos Atos dos Apóstolos o mostra, o Cristianismo inicialmente era mais movimento que instituição. Chamava-se o “caminho de Jesus”, realidade aberta aos valores fundamentais que pregou e viveu. Mas na medida em que o movimento foi crescendo, fatalmente, se transformou numa instituição, com regras, ritos e doutrinas. E aí o poder sagrado (sacra potestas) se constituiu em eixo organizador de toda a instituição, agora chamada Igreja. O caráter de movimento foi absorvido por ela. Da história aprendemos que lá onde prevalece o poder, desaparece o amor e se esvai a misericórdia. Foi o que infelzmente aconteceu. Hobbes nos alertou que o poder só se assegura buscando mais e mais poder. E assim surgiram igrejas poderosas em instituições, monumentos, riquezas materiais e até bancos. E com o poder a possibilidade da corrupção.
Estamos assistindo a uma novidade que cabe saudar: o Papa Francisco nos está resgatando o Cristianismo mais como movimento do que como instituição, mais como encontro entre as pessoas e com o Cristo vivo e a misericórdia ilimitada que a férrea disciplina e doutrina ortodoxa. Ele colocou como Jesus, a pessoa no centro, não o poder, nem o dogma, nem o enquadramento moral. Com isso permitiu que todos, mesmo não se incorporando à instituição, podem se sentir no caminho de Jesus na medida em que optam pelo amor e pela justiça.
O remédio não é amargo
30 de Outubro de 2015, 14:52Por Marcel Franco Araújo Farah – de São Paulo:
Cada vez mais as riquezas do mundo se concentram em poucas mãos. A população mundial hoje é de 7 bilhões de pessoas, destas, segundo estudos da Oxfam, em 2016 1% da população terá mais da metade da riqueza do mundo. Ou seja, a cada 10 pessoas uma será mais rica que outras 9 juntas. E este processo está se aprofundando e a riqueza se concentra mais ano a ano.
O Brasil é uma das engrenagens deste imenso mecanismo de concentração de riquezas. O país já foi o mais desigual da América Latina. Conseguiu reverter este processo de forma tênue nos últimos 12 anos. O índice de gini que mede a desigualdade ficou abaixo de 0,5 pela primeira vez (o índice vai de 0 a 1 sendo que o 1 representa a maior desigualdade possível, em que uma pessoa deteria toda a riqueza). Hoje somos o quarto mais desigual deste continente com 20 países.
Elogiado por alguns e criticado por outros o ajuste fiscal força o debate sobre a questão do financiamento do Estado. E aqui encontramos a maior causa da nossa desigualdade.
O sistema tributário brasileiro é muito aderente ao ritmo da economia, se a economia cresce a arrecadação cresce, se a economia retrai a arrecadação retrai. Isso ocorre devido ao sistema ser baseado principalmente na tributação sobre produtos e não sobre a riqueza e a renda. Os produtos vendem muito em uma economia crescente e pouco em uma economia em queda.
Quem é mais atingido neste processo são as pessoas que gastam a maior parte de seus rendimentos em produtos, como alimentos, vestuário, eletroeletrônicos, etc. Ou seja quem paga esta conta são trabalhadores e trabalhadoras em geral, e não os ricos.
Estas pessoas que gastam todo seu salário consumindo para sobreviver são aquelas que mais necessitam dos gastos estatais, dos programas sociais, da política de valorização do salário mínimo, de direitos trabalhistas etc.
A piada é que o discurso hegemônico reproduzido pela imprensa compara o orçamento público com uma casa. Dizem: se gastar menos sobra mais. Mas vamos pensar, se o Estado gasta menos, desestimula a economia, assim a arrecadação cai. Se já enfrentamos uma crise internacional que faz a arrecadação cair mais ainda (pois outros países também compram menos nossos produtos, como a China), a arrecadação cai mais do que o que economizamos. No final das contas o Estado gasta menos e sobra menos dinheiro. O efeito é inverso.
Portanto, não há como prosperar um ajuste fiscal em momento de decrescimento da economia. Neste período, para segurar a onda, o Estado precisa gastar mais e aumentar um pouquinho a dívida, como foi feito para enfrentar a crise internacional em 2008. Assim, empregos seriam preservados, gastos sociais não seriam cortados.
A luta pela igualdade é também a luta contra a crise.
Marcel Franco Araújo Farah, é educador popular.
Jogos Mundiais Indígenas: sufoco e desorganização
23 de Outubro de 2015, 15:04Por Egon Dionísio Heck, – de Mato Grande do Sul:
Na semana de abertura dos jogos, correria e custos adicionais. Ainda está muito vivo na memória das populações das cidades que sediaram jogos da Copa do Mundo, no ano passado, os transtornos, sufocos e o festival de obras inacabadas. Tudo indica que desta vez também não será diferente.
Obras permanentes prometidas e projetadas, como um museu do índio e piscina olímpica, ficaram apenas na promessa. Fica no ar a pergunta: será que o dinheiro fugiu, algum ralo se abriu, alguma conta bancária engordou? Ou será que foi mesmo blefe, com total desconsideração para com os povos indígenas e a população da cidade sede dos jogos, iludidos com os inúmeros benefícios?
Apesar dos Jogos Mundiais Indígenas terem sido adiados duas vezes, mesmo assim a infraestrutura, que ficou por conta da prefeitura de Palmas, parece ter sido adiada até os últimos dias antes dos jogos. São melancólicas, para não dizer tétricas, as paisagens do ambiente dos jogos, cheia de tocos de árvores arrancadas que nada tem a ver com a mensagem de vida e respeito à natureza que os povos indígenas trazem para o mundo e o planeta Terra.
Nos bastidores
Começam a circular, no calor de Palmas (na chegada o copiloto anunciou que a temperatura na capital do Tocantins era de 42 graus), as denúncias com relação ao tratamento dispensado aos voluntários indígenas. Segundo essas informações, dos 550 voluntários cadastrados, 250 estão em Palmas. Esses informes dão conta de uma generalizada desorganização, falta de atenção e consideração para com os voluntários. Atribuem a responsabilidade pelos desmandos à prefeitura que os colocou em local inadequado para hospedagem e carestia de alimentação.
“Tem voluntários indígenas que chegaram sem ter pra onde ir e dormir. Eles negaram a estes voluntários que ficassem hospedados com os parentes das delegações que participarão dos jogos (que vão ficar numa área restrita que nem eles como voluntários poderão acessar)… e nesse jogo cada um está jogando pra cima do outro, prefeitura, Comitê, PNUD… Só estando aqui para acreditar nisso”.
Membros da União dos estudantes indígenas estão muito insatisfeitos.
Muitas reclamações com relação ao descaso e tratamento com que a prefeitura de Palmas dispensou a voluntários: “Chegamos aqui e a prefeitura (que ficou responsável pela gestão dos recursos do Ministério dos Esportes para aplicar na infraestrutura, inclusive para os voluntários) colocou a gente num camping que não dava para dormir (muito calor, sem árvore nenhuma e em cima de asfalto) e que sequer tinha água nos banheiros… Fora a alimentação, que ontem conseguimos ter uma reunião com a secretaria e eles vão dar mais de uma refeição pra gente… Eles disseram que se a gente quisesse mais de uma refeição a gente teria que trabalhar em mais de um turno… difícil, né”.
“Também somos indígenas”
O slogan visto na placa não condiz, portanto, com a realidade constatada.
Quiçá seja esse um momento para iniciarmos um processo de mudança de mentalidade, superando preconceitos, racismo, descolonizando mentes.
Com os povos indígenas do mundo façamos a solene declaração do Conselho Mundial dos Povos Indígenas, de 1975:
“Nós, povos indígenas do mundo, unidos numa grande Assembleia de Homens Sábios, declaramos a todas as nações:
Quando a terra-mãe era nosso alimento
Quando a noite escura formava nosso teto,
Quando o céu e a lua eram nossos pais,
Quando éramos irmãos e irmãs,
Quando nossos caciques e anciãos eram grandes líderes,
Quando a justiça dirigia a lei e sua execução,
Aí outras civilizações chegaram!
Com fome de sangue, de ouro, de terra e de todas as suas riquezas, trazendo numa mão a cruz e na outra a espada, sem conhecer ou querer aprender os costumes de nossos povos, nos classificaram abaixo dos animais, roubaram nossas terras e nos levaram para longe delas,
Transformando em escravos os “filhos do sol”.
Entretanto não puderam nos eliminar;
Nem nos fazer esquecer o que somos,
Porque somos a cultura da terra e do céu, somos de uma
Ascendência milenar e somos milhões,
E mesmo que nosso universo inteiro seja destruído,
Nós viveremos.
Egon Dionísio Heck, é assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) no Mato Grosso do Sul.