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O que há em comum entre Cuba, Londres e Copenhague?
6 de Fevereiro de 2013, 22:00 - sem comentários aindaPor Jura Passos
Os carrões americanos antigos tornaram-se um dos principais ícones de Cuba, ao lado dos charutos e dos guerrilheiros barbudos e anti-imperialistas.
Mas esse é só mais um dos mitos que rondam a ilha. Claro que eles ainda são numerosos. Em frente ao Capitólio cubano – cópia fiel do americano – pode-se encontrar até um Edsel original em perfeito estado, carrão americano do qual foram produzidas apenas algumas poucas unidades. Mas os carrões estão desaparecendo paulatinamente, pois é cada vez mais difícil – e caro – mante-los funcionando. Os mais reluzentes utilizados como taxis ainda satisfazem a nostalgia dos turistas. Os demais espalham fuligem no ar e vão sendo abandonados à medida que a criatividade dos mecânicos não seja mais capaz de improvisar soluções para seus problemas. Quem disse que o jeitinho é só brasileiro?
As bicitaxis
O veículo mais popular em Cuba é de longe a bicicleta, incluindo aí seu irmão maior de três rodas – o bicitaxi. Dirigidos e movidos a pedal eles são muito populares e estão por toda parte. São disputados tanto por turistas quanto pela população local. Muitos possuem iluminação noturna com luz negra e caixas acústicas trepidando sob o banco. Nem no Soho de Londres (onde também há bicitaxis chamados de “rickshaws”, do japonês jinriksha: veículo a tração humana) tem um luxo desses para chegar na balada em grande estilo…
Em Cuba – e em toda a América Latina – a música está em todo lugar. O único inconveniente é aguentar o reggaeton que substituiu a salsa e o som cubano nas ruas. Além de passageiros, eles também transportam cargas pesadas, como tijolos e sacaria. Seus condutores percorrem até mais de uma centena de quilômetros por dia.
Carregam de tudo
Ainda que por motivos tortos – o bloqueio norte americano e a escassez de petróleo pós União Soviética e pré Chávez – Cuba é ao mesmo tempo o símbolo da decadência da indústria automobilística e da ascensão da bicicleta. Talvez seja o país com a maior diversidade de veículos no mundo. As bicicletas e os bicitaxis convivem com as charretes e carroças, as motocicletas com e sem sidecar, os motociclos a motor e elétricos – cada vez mais comuns e tão silenciosos que você se assusta ao encontrá-los – os caminhões, “guaguas” (paus de arara) e ônibus. Até aí nada muito diferente do que estamos acostumados. A diferença é que eles convivem pacifica e respeitosamente nas ruas e estradas. Ou seja, compartilham o espaço público.
Deixamos a praia de Varadero – eu e o fotógrafo Martim Passos - no final da tarde, atrasados por causa da fila do câmbio no banco. A chegada em Cárdenas à noite foi inevitável. Todo ciclista brasileiro sabe muito bem que pedalar na estrada à noite é tenso. Em Cuba os acostamentos são intransitáveis para bicicletas, o jeito é andar no limite da pista. Eu só tinha lanterna traseira, nada para iluminar o caminho, abri mão da segurança para aliviar alguns gramas e reais da bagagem… Não cometa o mesmo erro! Foi então que um ciclomotor elétrico me ultrapassou em silêncio. Se não fosse pela luz do farol eu não o teria percebido, pois eles não fazem nenhum barulho! Ao invés de deslanchar, porém, reduziu a velocidade e, sem dizer uma só palavra, manteve-se na minha velocidade iluminando o caminho até a cidade. Chegando lá, o encanador que nos escoltava no retorno a casa, perguntou aonde íamos e nos acompanhou até nosso endereço.
Não por acaso, em Cárdenas há um monumento à bicicleta!
Compartilhamento do espaço público é a condição sine-qua-non para viabilizar o transporte por bicicletas. Mas é bom não esquecer que o tal “espaço público” não se restringe às vias de circulação de veículos, inclui as calçadas, os parques, as escolas e universidades, os estacionamentos, o metrô e as ferrovias e até os meios de comunicação, os parlamentos – locais e nacional - e a Justiça. Se em Cuba não há ciclovias exclusivas, nem acostamentos ou leis impraticáveis que obrigam motoristas a manterem uma distância de 1,5 m das bicicletas, existe uma consciência coletiva de que todos têm o direito de se locomover da maneira que puderem, seja como for.
Na ponte de Sagua La Grande quatro rodas não passa
O que faz a diferença no trânsito não são os veículos, são os motoristas. E os motoristas brasileiros ainda são muito piores do que a velha sucata americana. Isso não há jeitinho que resolva. Só mesmo uma revolução, que não precisa ser armada, para fazer o espaço público ser compartilhado por todos em igualdade de condições. A praça Castro Alves ainda não é do povo como o céu é do avião.
Convivência pacífica
As fotos que ilustram esta matéria são do fotógrafo Martim Passos
Por trás do discurso maniqueísta da imprensa
5 de Fevereiro de 2013, 22:00 - sem comentários aindaTrata-se, resumidamente, de uma crítica à forma como a imprensa cobre assuntos importantes, deixando vácuos imensos de informação para serem preenchidos pelas opiniões de colunistas. No caso da política, observa o pesquisador, a falta de profundidade se percebe na preferência dos jornais por reproduzir decisões, ações e discursos de políticos eleitos, omitindo os processos por trás desses eventos.
A crítica se encaixa perfeitamente no caso da imprensa brasileira, com a mesma e grave consequência: a demonização do poder político – portanto, da democracia – e o isolamento entre a sociedade e seus supostos representantes.
O exercício da crítica, essência do jornalismo em política, exige mais do que reproduzir acusações contra parlamentares, embora essa seja uma tarefa fundamental. É preciso que o ânimo da crítica vá além dos fatos isolados e penetre na busca das causas de tantos escândalos.
Por exemplo, a acusação que se faz ao novo presidente do Senado, Renan Calheiros, de se haver beneficiado de notas frias para justificar o uso de verbas de representação, precisa ir além do fato em si e mostrar sua conexão com a prática generalizada, que parece comum a muitos parlamentares, de gastar descontroladamente os recursos e depois deixar a justificativa nas mãos de assessores – que fazem qualquer coisa para fechar suas planilhas.
Essa prática, aliás, não é exclusiva dos congressistas. Também é usada por executivos em visita à capital federal, por dirigentes de empresas estatais, prefeitos, lobistas e quem quer que seja obrigado a prestar contas de seus gastos.
Até mesmo jornalistas podem ser vistos pedindo notas fiscais em valor superior ao que foi gasto em restaurantes, para justificar suas despesas de trabalho, mas isso é assunto interno de cada empresa. A imprensa deve estar de olho naqueles que prestam contas de gastos feitos com dinheiro público.
O segundo plano
Evidentemente, tal prática generalizada não pode ser confundida com o desvio de milhões de reais do orçamento para empreiteiras associadas a doadores de campanha, nem com a destinação de verbas para organizações não governamentais de fantasia e consultorias de fachada.
O que se discute aqui é o ânimo da imprensa, que se esgota no primeiro indício, conforme o personagem acusado, e se desvanece quando aparecem os sinais de que a mesma irregularidade permeia todo o sistema. Como diz o sociólogo Herbert Gans, é preciso ir além dos fatos isolados e questionar o modelo da representação política.
Do modo como é feita a cobertura da política nacional, o resultado mais visível não é o desenvolvimento do senso crítico que, teoricamente, levaria o eleitor a fazer escolhas mais adequadas de seus representantes. O que tem resultado da cobertura crítica, porém personalizada, partidarizada e limitada, é o descrédito das instituições republicanas. O discurso da imprensa é maniqueísta.
Expressões como “Sob velha direção – os novos donos do Congresso”, como a estampada na primeira página do Globo de terça-feira (5/2) apenas alimentam essa ojeriza do cidadão contra o político, e podem contribuir para minar os valores democráticos.
Os novos presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, tomam posse sob suspeitas gerais, alimentadas por um noticiário que deveria ir mais fundo. Sem penetrar naquilo que Gans chama de “segundo plano” do processo político, o público tende a considerar que “todo político é ladrão” e que toda acusação tem fundamento.
Alves abre o ano legislativo confrontando o Supremo Tribunal Federal, o que agrava ainda mais o quadro, porque, embora ele estivesse claramente se dirigindo ao público interno, como uma satisfação pelos votos de seus pares, o que passa para a sociedade é a impressão de que uma quadrilha se apossou do Congresso e, de lá, desafia os deuses da Justiça.
Nem toda acusação tem fundamento, nem todos os políticos são desonestos e nem tudo no Judiciário é Justiça.
(Por Luciano Martins Costa)
Desmascarando a falsa imparcialidade da rede globo
5 de Fevereiro de 2013, 22:00 - sem comentários aindaPoema inclinado para uma época
4 de Fevereiro de 2013, 22:00 - sem comentários ainda A moda,as marcas,
os carros,
as fábricas:
tudo tende
a alguma coisa.
Qual seja,
nos fazer desejar
a nova tendência
que nos faz desejar
a nova tendência...
Das velhas inclinações,
todos querem se afastar.
A tendência da cidade é o caos;
a tendência do capitalismo são as crises;
a tendência do emprego é o desequilíbrio;
a tendência da violência são as violências;
bem como a tendência do ser humano é revidar,
criando mais caos, crises, desequilíbrio, violências, revides;
ainda que em aparência,
no asfalto da obsolescência,
tudo queira ser normal.
A certeza do abismo é a queda e
a tendência da beirada é o empurrão.
Um suicídio com mãos alheias
sussurra nos ouvidos desatentos:
já não há mais direção!
Já não se pode fazer poema
sem qualquer tipo de interrupção.
A vida não é mais contínua e
a luta não é mais opção.
O Lincoln que Spielberg — e os EUA — esqueceram
4 de Fevereiro de 2013, 22:00 - sem comentários ainda Por Vicenç Navarro* | Tradução: Gabriela LeiteO filme Lincoln, produzido e dirigido por um dos diretores mais conhecidos dos EUA, Steven Spielberg, deu nova vida a um grande interesse pela figura de Abraham Lincoln, um dos presidentes que, como Franklin D. Roosevelt, sempre desfrutou, no imaginário estadunidense, de grande lembrança popular. Sua figura política destaca-se como a de quem garantiu a unidade dos EUA, depois de derrotar os confederados que aspiravam a secessão dos Estados do Sul. É também uma figura que ressalta na história dos EUA por ter abolido a escrevidão, e ter dado a liberdade e cidadania aos decendentes das populações imigrantes de origem africana — ou seja, a população negra, que nos EUA é conhecida como a população afroamericana.
Lincoln foi também um dos fundadores do Partido Republicano. Este, em suas origens, era o completo oposto do que é hoje, quando está fortemente influenciado por um movimento — o Tea Party — chauvinista, racista e reacionário ao extremo. O Partido Republicano fundado por Lincoln era, ao contrário, uma organização federalista, que considerava o governo federal como garantia dos Direitos Humanos. Entre eles, a emancipação dos escravos, tema central da película Lincoln, foi aquele ao qual Lincoln deu maior ênfase. Terminar com a escravidão significava que o escravo passava a ser trabalhador, dono de seu próprio trabalho.
Contudo, Lincoln, inclusive antes de ser presidente, considerou outras conquistas sociais como parte dos Direitos Humanos. Entre ela, o direito do mundo do trabalho controlar não só seu trabalho, mas também o produto dele. O direito de emancipação dos escravos transformava-os em pessoas livres assalarianas, unidas — segundo ele — em laços fraternais com os outros membros da classe trabalhadora, independentemente da cor de sua pele. Suas demandas de que o escravo deixasse de sê-lo e de que o trabalhador — tanto branco como negro — fosse o dono, não só de seu trabalho, mas também do produto de seu trabalho, eram igualmente revolucionárias. O segundo tipo de emancipação, no entanto, nem sequer é citado no filme Lincoln. Ele a ignora. E utilizo a expressão “ignora” ao invés de “oculta” porque é muito possível que os autores do filme e do livro em que ele se baseia nem sequer conheçam a história real de Lincoln.
A Guerra Fria do mundo cultural e até acadêmico dos EUA (que continua existindo) e o enorme domínio do que lá se chama a Corporate Class (a classe dos proprietários e gestores do grande capital) sobre a vida, não só econômica, mas também cívica e cultural, explica que a história formal dos EUA que se ensina nas escolas e universidades é muito tendenciosa, isenta de qualquer “contaminação ideológica” precedente dos movimentos de trabalhadores — seja socialismo, comunismo ou anarquismo. A grande maioria dos estudantes norte-americanos, inclusive os das universidades mais prestigiosas e conhecidas, não sabem que a festa do 1º de maio, celebrada mundialmente como o Dia Internacional do Trabalho, é uma festa em homenagem aos sindicalistas de seu país que morreram em defesa da jornada de oito horas de trabalho por dia (no lugar de doze). Sua vitória difundiu-se na maioria dos países do mundo. Nos EUA, tal dia, o 1º de Maio, além de não ser festivo, é o dia da Lei e a Ordem — Law and Order Day — (ver o livro People’s History of the U.S., de Howard Zinn). A história real dos EUA é muito diferente da história formal promovida pelas estruturas de poder estadunidenses.
As simpatias ignoradas de Lincoln
Lincoln, já quando membro da Câmara Legislativa de seu Estado, Illinois, simpatizou claramente com as demandas socialistas do movimento trabalhador, não só dos EUA, mas também da cena mundial. Sua defesa dos trabalhadores a controlar o produto de seu labor é revolucionária ainda hoje.
Na realidade, Lincoln considerou que a escravidão era o domínio máximo do capital sobre o mundo do trabalho, e sua oposição às estruturas de poder dos Estados do sul devia-se precisamente a perceber estas estruturas como sustentadoras de um regime econômico baseado na exploração. Daí veio a ideia da abolição da escravatura como a libertação não apenas da população negra, mas capaz de beneficiar também a classe trabalhadora branca — cujo racismo, via o presidente, ia contra seus próprios interesses.
Lincoln também indicou que “o mundo do trabalho antecede o capital. O capital é o fruto do trabalho, e não existiria sem o mundo do trabalho, que o criou. O mundo do trabalho é superior ao mundo do capital, e merece a maior consideração (…) Na situação atual, o capital tem todo o poder e há que se reverter este desequilíbrio”. Leitores dos escritos de Karl Marx, contemporâneo de Abraham Lincoln, se lembrarão que algumas dessas frases eram muito semelhantes às utilizadas por tal analista do capitalismo em sua crítica da relação capital/trabalho sob tal sistema econômico.
Surpreenderá a um grande número de leitores saber que os escritos de Karl Marx influenciaram Abraham Lincoln, tal como documenta em grande detalhe John Nichols, em seu excelente artigo “Reading Karl Marx with Abraham Lincoln: Utopian socialists, German comunists and other republicans” [“Lendo Karl Marx com Abraham Lincoln: Socialistas utópicos, comunistas alemães e outros republicanos”], publicado no Political Affairs (27/11/12), e do qual extraio as citações, assim como a maioria dos dados publicados nesse artigo. Os escritos de Karl Marx eram conhecidos entre grupos de intelectuais que estavam profundamente insatisfeitos com a situação política e econômica dos EUA, como era o caso de Lincoln.
Karl Marx escrevia regularmente no The New York Tribune, o jornal intelectual mais influente nos Estados Unidos naquele período. Seu diretor, Horace Greeley, considerava-se um socialista e um grande admirador de Marx, ao qual convidou a ser colunista no diário. Em suas colunas, incluiu um grande número de ativistas alemães que haviam fugido das grandes perseguições ocorridas na Alemanha daquele tempo — um país altamente agitado, com um nascente movimento trabalhador que questionava a ordem econômica existente. Alguns desses imigrantes alemães (conhecidos naquele momento como os “Republicanos Vermelhos”) lutaram mais tarde contra as tropas sulistas na guerra civil, dirigidos pelo presidente Lincoln.
Greeley e Lincoln eram amigos. Na verdade, Greeley e seu diário apoiaram desde o início a carreira política de Lincoln, sendo Greeley quem o aconselhou a candidatar-se à presidência do país. E todas as evidências apontam que Lincoln era um grande leitor de The New York Tribune. Em sua campanha eleitoral, convidou vários “republicanos vermelhos” a integrar-se a sua equipe. Já antes, como congressista, representante do condado de Springfield no estado de Illinois, apoiou frequentemente os movimentos revolucionários que ocorriam na Europa e muito especialmente na Hungria, assimando documentos de apoio a esses movimentos.
Lincoln, grande amigo do mundo do trabalho estadunidense e internacional
Seu conhecimento das tradições revolucionárias existentes naquele período não era casual, mas fruto de suas simpatias com o movimento trabalhador internacional e suas instituições. Incentivou os trabalhadores dos EUA a organizar e estabelecer sindicados e continuou fazendo-o quando presidente. Vários sindicatos nomearam-no membro honorário. Em sua resposta aos sindicatos de Nova York, sublinhou “vocês entenderam melhor do que ninguem que a luta para terminar com a escravidão é a luta para libertar o mundo do trabalho, ou seja, libertar todos os trabalhadores. A libertação dos escravos no Sul é parte da mesma luta pela libertação dos trabalhadores do Norte”.
Durante a campanha eleitoral, Lincoln posicionou-se contra a escravidão, indicando explicitamente que a libertação dos escravos permitiria aos trabalhadores exigir os salários que lhes permitissem viver decentemente e com dignidade.
Marx, e também Engels, escreveram com entusiasmo sobre a campanha eleitoral de Lincoln, em um momento em que ambos estavam preparando a primeira Associação Internacional dos Trabalhadores. Em umas sessões, Marx e Engels propuseram à Internacional que enviasse carta ao presidente Lincoln, parabenizando-o por sua atitude e postura. No documento, a Primeira Internacional parabenizava ao povo dos EUA e seu presidente por, ao terminar com a escravidão, haver favorecido a libertação de toda a classe trabalhadora, não só estadunidense, mas mundial.
O presidente Lincoln agradeceu a nota e respondeu que valorizava o apoio dos trabalhadores do mundo a suas políticas. Seu tom cordial certamente criou grande alame entre os establishment econômicos, financeiros e políticos dos dois lados do Atlântico. Estava claro que, como assinalaria mais tarde o dirigente socialista estadunidense Eugene Victor Debs, em sua própria campanha eleitoral, “Lincoln foi um revolucionário e por mais paradoxal que pudesse parecer, o Partido Republicado teve em suas origens uma tonalidade vermelha”.
A revolução democrática que Lincoln iniciou e que nunca se desenvolveu
Não é preciso dizer que nenhum desses dados aparece no filme Lincoln, nem é amplamente conhecido nos EUA. Mas, como bem observam John Nichols e Robin Blackburn (outro autor que escreveu extensamente sobre Lincoln e Marx), para entender o ex-presidente há que entender o período e o contexto em que ele viveu. Lincoln não era um marxista (termo sobreutilizado na literatura historiográfica e que o próprio Marx denunciou). Nem era sua vontade acabar com o capitalismo, mas sim corrigir o enorme desequilíbrio existente, neste sistema, entre o capital e o trabalho. Mas, sem dúvida foi altamente influenciado por Marx e outros pensadores socialistas, com os quais compartilhou seus desejos imediatos, levando sua postura a altos níveis de radicalismo em seu compromisso democrático.
Não há duvida de que Lincoln foi uma personalidade complexa com muitos claro-escuros. Mas as simpatias estão escritas e bem definidas em seus discursos. Na realidade, a maior influência sobre Lincoln foi a dos socialistas utópicos alemães, muitos dos quais se refugiaram em Illinois, fugindo da repressão europeia.
O comunalismo que caracterizou tais socialistas influenciou a concepção democrática de Lincoln, que interpretava a democracia como a governança das instituições políticas por parte do povo, no qual as classes populares eram maioria. Sua famosa frase (que se converteu no esplêndido slogan democrático mais conhecido do mundo) — Democracy for the people, of the people and by the people[Democracia do povo, para o povo e pelo povo] — mostra claramente a impossibilidade de haver um governo do povo para o povo sem que seja realizada pelo mesmo povo. Daí vieram a libertação dos escravos e do mundo do trabalho como elementos essenciais de tal democratização. Seu conceito de igualdade levava inevitavelmente um conflito com o domínio das instituições políticas pelo capital. A realidade existente nos EUA, que detalho em meu artigo “O que não foi dito na mídia sobre as eleições nos EUA” (Publico, 13/11/12) é uma prova disso. Hoje a Corporate Class controla as instituições políticas daquele país.
Repito que nenhuma dessas realidades aparece no filme. Spielberg não é, afinal de contas, Pontecorvo, e o clima intelectual estadunidense ainda está estancado na Guerra Fria, o que o empobrece intelectualmente. “Socialismo” continua sendo uma palavra mal vista nos círculos do establishment cultural daquele país. Na terra de Lincoln, o projeto democrático que ele sonhou nunca se realizou, devido à enorme influência do poder do capital sobre as instituições democráticas. E o paradoxo doloroso da história é que o Partido Republicano tenha se convertido no instrumento político mais agressivo a serviço do capital hoje existente.
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Vicenç Navarro é catedrático de Ciencias Políticas y Políticas Públicas. Universidad Pompeu Fabra, y Profesor de Policy Studies and Public Policy. The Johns Hopkins University