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Angola Janga: como os quilombolas de Palmares se referiam ao seu território

3 de Março de 2018, 20:50 , por Bertoni - | No one following this article yet.
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Angola janga capa

O Quilombo dos Palmares, um dos principais do período colonial brasileiro, é descortinado poeticamente no livro Angola Janga, lançado em 6 de novembro. Por meio dos quadrinhos, o ilustrador Marcelo D'Salete desenha e narra a história de personagens negros como Zumbi, Antônio Soares, Ganga Zumba e Ganga Zona. Principal liderança do quilombo, Zumbi morreu em 20 de novembro de 1695. A data é comemorada anualmente como o Dia da Consciência Negra.

Após se dedicar à temática racial em Encruzilhada (2016) e Cumbe (2014), D'Salete revela em sua nova obra como os quilombolas de Palmares resistiram ao sistema da casa-grande. Um tema importante para a afirmação da população negra, pobre e quilombola no atual cenário de ataques às minorias. “Essa não garantia de direitos, ainda mais hoje sob o golpe, mostra mais uma faceta de como a nossa história é violenta. E continua sendo. A gente precisa conhecer, aprender e se organizar contra isso.” Confira a seguir a entrevista com o autor:

CartaCapital: Por que o senhor escolheu o título Angola Janga?
Marcelo D´Salete: O livro é sobre o antigo Quilombo dos Palmares, antes conhecido como Mocambo de Palmares. Eram mais de dez mocambos espalhados na Serra da Barriga. Um dos nomes que eles, os palmaristas, utilizavam para falar de Palmares era Angola Janga, que significa "pequena Angola". Vem de uma língua do tronco banto chamada quimbundo. Este é um livro que fala sobre esses grandes mocambos do Brasil do século XVII e conta um pouco o que aconteceu por lá nas últimas décadas do conflito.

CC: Foram 11 anos de pesquisa. Quais foram os desafios de investigação de imagem e de registro histórico para tratar de uma parte da história repleta de incertezas, e até vítima de certo esquecimento?
MS: Foi importante pesquisar historicamente o período para falar de Palmares em Angola Janga, para recuperar essas histórias. Há algumas descrições interessantes em texto e, quanto à imagem, existem alguns artistas, tais como Frans Post e Albert Eckhout, que estiveram na região de Pernambuco no século XVII e fizeram retratos de pessoas e das paisagens.

Foi muito importante também ter pesquisado no Museu Afro Brasil. Eu trabalhei lá durante um tempo. Conhecer um pouco da história desses povos a partir da fotografia ou de obras de arte ajudou muito a pensar em como criar essa história a partir de imagens. No meio dessa pesquisa, iniciada em 2006, acabaram surgindo outros livros, como Noite e Luz e Encruzilhada, e só comecei a me sentir à vontade para começar a fazer os esboços de Angola Janga por volta de 2010, tudo isso para conseguir ter todo esse apanhado de imagens, de referências, para tornar isso interessante na forma de histórias em quadrinhos.

CC: Estima-se que o Quilombo dos Palmares reuniu mais de 20 mil quilombolas na segunda metade do século XVII. Quais foram os fatores desse crescimento?
MS: Por volta do ano 1600, Palmares cresceu muito. Algumas pequenas expedições que foram até lá lutar contra os palmaristas não conseguiram destruir os mocambos, porque eram vários e estavam espalhados em muitas regiões. A distância era de mais de 30 quilômetros separando um mocambo do outro. Era muito difícil atingir todos. Quando ocorreu a ocupação do Recife e de Olinda pelos holandeses em 1630, muitos desses africanos escravizados aproveitaram o conflito entre portugueses e holandeses para fugir para Palmares.

Entre 1630 e 1654, Palmares cresceu ainda mais, chegando a ter mais de 20 mil habitantes. Macaco, que era o principal Mocambo, a capital de Palmares, tinha cerca de 6 mil pessoas. Incrível se compararmos com o Recife, que, por volta de 1650, tinha algo em torno de de 8 mil pessoas. Era realmente outro Estado quase independente na Serra da Barriga. Milhares de negros escravizados fugiam para conseguir ser livres e ter uma autonomia muito maior para decidir sobre suas próprias vidas. Eram pessoas que estavam procurando outra forma de se relacionar com aquele espaço, muito longe do que seria a lógica colonial da escravidão.

CC: Partindo dessa ideia de nação, quantas Áfricas havia dentro de Palmares?
MS: Eram povos que falavam quimbundo, ovimbundo, umbundo, várias outras línguas que influenciam muito o nosso português. Nossa língua tem uma presença muito forte de palavras de origem do quimbundo e do banto, que muitas vezes a gente não tem consciência, tais como marimbondo, quindim, moleque etc. São palavras que vêm dessas origens, dessa história. Tentei trazer isso um pouco para o livro a partir desses termos de origem banto, tentando relacionar também com algumas coisas que aconteciam na região de Angola naquela época.

CC: Poderia dar um exemplo?
MS: No Reino de Matamba, por exemplo, no século XVII, lá em Angola, havia conflitos entre portugueses e a rainha Nzinga. Ela enfrentou os portugueses em várias batalhas. Em algumas ela ganhou, em outras perdeu. Temos notícias de que muitos dos guerreiros dessa rainha vieram para o Brasil e podem ter chegado, inclusive, à região de Palmares. Relacionar um pouco essas histórias dos dois lados do Atlântico foi a intenção do livro. E também trazer elementos dessas culturas, principalmente do Congo e de Angola, como os símbolos sona, que são dos tchokwe. Esses são desenhos feitos na areia acompanhados por histórias e provérbios.

CC: Por que contar a história do Quilombo dos Palmares?
MS: Palmares é uma história em que os protagonistas são protagonistas negros. Homens e mulheres procurando ali mais autonomia sobre suas vidas. Isso é muito importante. Essas histórias, essas narrativas com personagens negros em primeiro plano, falando sobre suas angústias, suas procuras, suas dúvidas, ainda é algo não muito visível para grande parte do público brasileiro.

Penso que isso é uma estratégia de discriminação muito forte – não dar identidade para aquelas pessoas. Mesmo no pós-Abolição, a gente viveu um momento de verdadeira subcidadania para grande parte da população negra e pobre do País. E essa subcidadania ocorre muito a partir dessa ideia de não dar, de fato, humanidade para essas pessoas, não compreendê-las como indivíduos. Não entender essas pessoas, de fato, como seres humanos, com suas vontades, com seus medos e seus problemas. Penso que o livro pode fomentar uma discussão sobre o nosso passado, e sobre a história do negro no Brasil.

CC: Além de Zumbi, que outro personagem de Palmares você destacaria?
MS: Um personagem importante em Angola Janga é Antônio Soares, um dos homens de Zumbi. A história é muito contada a partir da perspectiva dele. Existe apenas um documento da época que fala sobre Soares, no fim da saga de Palmares. Ele foi um dos últimos homens próximos de Zumbi. Essa foi uma história interessante de se imaginar.

CC: Como você aborda os conflitos entre o poder colonial e os palmaristas?
MS: Havia tentativas de negociação entre os quilombolas e o poder colonial. Isso aconteceu com Ganga Zumba, antigo líder de Palmares. Em 1678, ele fez um acordo com o poder colonial, com a Coroa. Ganga Zona, que era irmão de Ganga Zumba, foi um grande negociador naquele momento. Houve, então, uma grande cisão entre quem queria ir para Cucaú, os partidários de Ganga Zumba e Zona, e quem permaneceria em Angola Janga, em Palmares. Tentei mostrar um pouco desse conflito no livro, acho que é um elemento interessante para tratar do conflito.

Tentei trazer ali um pouco do objetivo de cada um desses personagens para agirem daquele modo. Palmares também era um espaço extremamente bélico, militarizado. Até porque, anualmente, havia expedições luso-brasileiras tentando destruir aqueles mocambos. Então eles precisavam ser muito articulados e precisavam ser muito aguerridos para lutar contra essas investidas. Trabalhar com esses elementos e tentar construir esses personagens a partir disso foi algo bem interessante e é um pouco do que o livro traz.

CC: Existe alguma relação entre os quilombos de antigamente e os que resistem até hoje?
MS: Penso que sim. Palmares não foi o único quilombo, o único grande mocambo aqui no Brasil. Na verdade, existiram muitos outros, tanto naquele período quanto nos séculos seguintes também. São quilombos com histórias bem diferentes. Mas tem ali um elemento em comum: essas pessoas procuraram se articular em grupo e constituir um espaço onde eles decidem como será o trabalho e como será a divisão desse trabalho. Isso sem esse modo tão hierárquico, e totalmente baseado na violência, que foi a escravidão.

CC: Como o senhor analisa as atuais decisões dos governantes em relação aos quilombos?
MS: Os quilombos contemporâneos estão ameaçados por grandes fazendeiros e empresas. Não à toa, eles tocam em algo que no Brasil é nevrálgico, a divisão da terra. O pós-Abolição não trouxe garantia de que esse libertos teriam terra e trabalho.  Neste ano houve um aumento grande dos conflitos em quilombos e também em aldeias indígenas. E isso acontece por quê? Por causa de um governo ilegítimo e também devido às investidas desses grandes empresários contra essas populações que estão em uma situação mais frágil. Mas, logicamente, enquanto grupo, a gente pode lutar contra isso.

Essa não garantia de direitos, ainda mais hoje, sob o golpe, mostra mais uma faceta de como a nossa história é violenta. E continua sendo violenta. A gente precisa conhecer, aprender e se organizar contra isso.

Leia também:
Mulheres quilombolas e o direito à terra
Quando Zumbi chega

Fonte: CartaCapital


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