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3 de Abril de 2011, 21:00 , por Desconhecido - | 1 person following this article.
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Salvadores e leninas há 59 anos constroem o Dieese

29 de Dezembro de 2014, 12:29, por Bertoni

Por Clemente Ganz Lúcio 1

Observou-se no ano de 1955 uma das piores ondas de frio na história do Brasil. Entretanto, na política, o clima era quente, com muitas mudanças desde o suicídio de Vargas, ocorrido no ano anterior. Café Filho assumira a presidência e o país enfrentava problemas com a inflação e o déficit na balança comercial. Juscelino Kubitschek (JK) lançara-se candidato à presidência pelo PSD. A UDN e os militares articulavam chapa com Juarez Távora, ex-tenentista. PTB, partido de Getúlio, constrói naquele ano uma aliança com PSD e lançam chapa JK/Jango para concorrer às eleições presidenciais. Com apoio do eleitorado paulista Ademar de Barros corre por fora.

Em outubro JK vence as eleições com diferença de 6% dos votos, campanha baseada no desenvolvimentismo e na modernização da indústria nacional. Carlos Lacerda, apoiado por militares e parte da grande imprensa, tenta desqualificar e desarticular a vitória de JK com uma falsa carta que, segundo ele, provaria a intenção de Jango em estabelecer um regime sindicalista, inclusive oferecendo armas aos operários.

Em São Paulo o Pacto de Unidade Intersindical (PUI) ganha cada vez mais corpo e amplia-se, fortalecendo a unidade das categorias e formando a base de grandes mobilizações, lutas e de greves históricas.

Em novembro, após as eleições, o presidente Café Filho se afasta por problemas cardíacos. Carlos Luz, presidente da Câmara, assume e indica novo Ministro da Guerra, no lugar do marechal Lott. Prenuncia-se um golpe. Lott e militares legalistas denunciam manobra e afirmam resistir. Café Filho tem súbita recuperação! Lott desconfia da manobra e entrega a presidência em 11 de novembro a Nereu Ramos, catarinense e presidente do Senado que, em 31 de janeiro de 1956, transmite o cargo à JK.

Em dezembro o clima político ferve com manobras e movimentos nos bastidores da arena política da capital federal, Rio de Janeiro. Em São Paulo os operários se movimentam agitados. O país estava em estado de sítio.

Imagino aquele dia, uma quinta-feira, 22 de dezembro de 1955, e como os fatos podem ter ocorrido: “Tenorinho do Laticínio”, como era conhecido esse pernambucano nascido em 1923, levanta cedo e, depois do gole de café, sai para o Sindicato, dizendo que chegaria tarde, pois teria uma assembleia à noite. Pede para a esposa entregar um envelope ao Prestes, seu padrinho de casamento. Desce do bonde e compra a Folha da Manhã do jornaleiro. Sim! O Corinthians tinha vencido o Linense por 2X1. Na primeira página dois destaques chamam sua atenção: “O estado de sítio é debatido na Câmara dos Deputados” e “Adenauer declara serem vãs os esperanças soviéticas de conquista do mundo inteiro”. Folheia o jornal e bate o olho: “A recente declaração do prefeito municipal, Ademar de Barros, de que autoriza a colocação de mais bancos na Praça da República, traz à baila velho problema: São Paulo é uma cidade com poucos bancos em suas praças públicas e avenidas”. Dobra o jornal e acelera o passo. Sente que o dia seria longo.

Já na sede do sindicato, assina alguns documentos e avisa que vai se encontrar com Salvador Lossaco, presidente do Sindicato dos Bancários, para verificarem os últimos detalhes para a assembleia da noite que teria lugar, às 20:30 horas, na rua São Bento, 405. À noite Lossaco preside a assembleia que Tenorinho secretaria.

Mais de cinquenta anos depois, em depoimento, Tenorinho lembraria:

“O DIEESE passou por todo um sistema de preparação. Ele não surgiu de um estalo, não, ele foi fruto de todo um acúmulo de aprendizagem. Então, nós fizemos o Pacto de Unidade Intersindical, que começou com cinco sindicatos: gráficos, metalúrgicos, marceneiros, têxteis e vidreiros. Ali na rua dos Cerealistas. Então, naquela rua era uma casa baixa de um sócio, onde funcionava o sindicato, que se transformou em sede e dali nós começamos a “mandar brasa” em tudo. E todas as nossas lutas sindicais durante esse período, as lutas reivindicatórias, elas encontravam a barreira de como provar que era aquela percentagem que os trabalhadores reivindicavam, não tinha como, não tinha um aferidor. O único em que a Justiça se baseava – aí vamos chegar no DIEESE – era uma comissão do Ministério do Trabalho, a qual não tinha a nossa presença nem participação, e a Secretaria de Abastecimento de São Paulo, comandada por Ademar de Barros e o Secretário era o João Acioli, até um advogado do Sindicato dos Têxteis.

Então esses dois dados nunca conferiam com aquilo que a gente achava que era o custo de vida e nós nos batíamos, e só levávamos alguma vantagem quando fazíamos greves enfrentando polícia, enfrentando todas as dificuldades para fazer uma greve como fizemos em 1953, a chamada “Greve de 700 mil trabalhadores”. Então surgiu a ideia da gente criar o nosso próprio organismo de levantamento de custo de vida. Aí eu, como secretário do Pacto; Salvador Romano Lossaco, presidente do Sindicato dos Bancários – aqui eu rendo a minha homenagem, porque sem ele não “tinha” existido o DIEESE; Remo Forli, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos – eram os dois maiores sindicatos na época, os mais combativos eram esses dois; nós, do Laticínio, que não era numericamente tão expressivo, mas politicamente era peso-pesado; enfim, nós somamos cinco sindicatos e começamos a trabalhar dia e noite. Mas era até meia-noite, uma hora, duas horas da manhã, elaborando, pesquisando, estudando, e um dos homens-chave nisso aí se chama – foi este que já falei - Salvador Romano Lossaco, que não era do Partido Comunista, era um anarquista nato, mas de uma fidelidade de classe e de uma competência para ficar do nosso lado, que era impressionante.

Nós fundamos o DIEESE. Fundamos o DIEESE e pusemos: Departamento Intersindical de Estudos de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Antes era só Departamento Intersindical de Estatística. Aí um jornalista chamado Xavier Toledo - que era um jornalista do Correio Paulistano que trabalhava na Câmara e que acompanhava a gente, era um simpatizante - disse: “Olha, vocês têm que acrescentar, à ‘Estatística’, ‘Estatística e Estudos Socioeconômicos’, porque vocês abrem a perspectiva de se tornarem um instituto.” E nós incorporamos essa sugestão, ficou DI-E-ESE. Foi um negócio muito bonito, uma vitória grande.”

O depoimento continua e é muito bonito, como são bonitas as dezenas de histórias contadas e disponíveis em www.dieese.org.br (dieese memória).

O tempo passou, levado também pelo vento das lutas. As notícias da atual arena repetem manchetes. Hoje, como dantes, sintonizados com o presente e coetâneos com os desafios de futuro, quando o DIEESE completa 59 anos, rendemos nossa homenagem aos milhares de tenorinhos, leninas, salvadores e mônicas, que construíram com seu trabalho militante e compromisso com a justiça e solidariedade, uma instituição a serviço da classe trabalhadora!

1 Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES - Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.



A Terceira Guerra Mundial?

24 de Dezembro de 2014, 18:03, por Bertoni

É uma guerra provocada unilateralmente pelos EUA com a cumplicidade da Europa. O alvo principal é a Rússia e, indiretamente, a China. O pretexto é a Ucrânia.

Por Boaventura de Sousa Santos

Tudo leva a crer que está em preparação a terceira guerra mundial, se entendermos por “mundial” uma guerra que tem o seu teatro principal de operações na Europa e se repercute em diferentes partes do mundo. É uma guerra provocada unilateralmente pelos EUA com a cumplicidade ativa da Europa. O seu alvo principal é a Rússia e, indiretamente, a China. O pretexto é a Ucrânia. Num raro momento de consenso entre os dois partidos, o Congresso dos EUA aprovou no passado dia 4 de dezembro a Resolução 758 que autoriza o Presidente a adotar medidas mais agressivas de sanções e de isolamento da Rússia, a fornecer armas e outras ajudas ao governo da Ucrânia e a fortalecer a presença militar dos EUA nos países vizinhos da Rússia. A escalada da provocação à Rússia tem vários componentes que, no conjunto, constituem a segunda guerra fria. Nesta, ao contrário da primeira, a Europa é um participante ativo, ainda que subordinado aos EUA, e assume-se agora a possibilidade de guerra total e, portanto, de guerra nuclear. Várias agências de segurança fazem planos já para o Day After de um confronto nuclear.

Os componentes da provocação ocidental são três: sanções para debilitar a Rússia; instalação de um governo satélite em Kiev; guerra de propaganda. As sanções são conhecidas, sendo a mais insidiosa a redução do preço do petróleo, que afeta de modo decisivo as exportações de petróleo da Rússia, uma das mais importantes fontes de financiamento do país. O orçamento da Rússia para o próximo ano  foi elaborado com base no preço do petróleo à razão de 100 dólares por barril. A redução do preço combinada com as outras sanções e a desvalorização do rublo agravarão perigosamente o déficit orçamental. Esta redução trará o benefício adicional de criar sérias dificuldades a outros países considerados hostis (Venezuela, Irã e Equador). A redução é possível graças ao pacto celebrado entre os EUA e a Arábia Saudita, nos termos do qual os EUA protegem a família real (odiada na região) em troca da manutenção da economia dos petrodólares (transações mundiais de petróleo denominadas em dólares), sem os quais o dólar colapsa enquanto reserva internacional e, com ele, a economia dos EUA, o país com a maior e mais obviamente impagável dívida do mundo.

O segundo componente é o controle total do governo da Ucrânia de modo a transformar este país num estado satélite. O respeitado jornalista Robert Parry (que denunciou o escândalo do Irã-contra) informa que a nova ministra das finanças da Ucrânia, Natalie Jaresko, é uma ex-funcionária do Departamento de Estado, cidadã dos EUA, que obteve cidadania ucraniana dias antes de assumir o cargo. Foi até agora presidente de várias empresas financiadas pelo governo norte-americano e criadas para atuar na Ucrânia. Agora compreende-se melhor a explosão, em fevereiro passado, da secretária de estado norte-americana para os assuntos europeus, Victoria Nulland: “Fuck the EU”. O que ela quis dizer foi: “Raios! A Ucrânia é nossa. Pagamos para isso”.

O terceiro componente é a guerra de propaganda. Os grandes media e seus jornalistas estão a ser pressionados para difundirem tudo o que legitime a provocação ocidental e ocultarem tudo o que a questione. Os mesmos jornalistas que, depois dos briefings nas embaixadas dos EUA e em Washington, encheram as páginas dos seus jornais com a mentira das armas de destruição massiva de Saddam Hussein, estão agora a enchê-las com a mentira da agressão da Rússia contra a Ucrânia. Peço aos leitores que imaginem o escândalo mediático que ocorreria se se soubesse que o Presidente da Síria acabara de nomear um ministro iraniano a quem dias antes concedera a nacionalidade síria. Ou que comparem o modo como foram noticiados e analisados os protestos em Kiev em fevereiro passado e os protestos em Hong Kong das últimas semanas. Ou ainda que avaliem o relevo dado à declaração de Henri Kissinger de que é uma temeridade estar a provocar a Rússia. Outro grande jornalista, John Pilger, dizia recentemente que, se os jornalistas tivessem resistido à guerra de propaganda, talvez se tivesse evitado a guerra do Iraque em que morreram até ao fim da semana passada 1.455.590 iraquianos e 4801 soldados norte-americanos. Quantos ucranianos morrerão na guerra que está a ser preparada? E quantos não-ucranianos?

Estamos em democracia quando 67% dos norte-americanos são contra a entrega de armas à Ucrânia e 98% dos seus representantes votam a favor? Estamos em democracia na Europa quando países da UE membros da NATO podem estar a ser conduzidos, à revelia dos cidadãos, a travar uma guerra contra a Rússia em benefício dos EUA, ou quando o parlamento europeu segue nas suas rotinas de conforto enquanto a Europa está a ser preparada para ser o próximo teatro de guerra, e a Ucrânia, a próxima Líbia?

As razões da insanidade

Para entender o que se está a passar é preciso ter em conta dois fatos: o declínio dos EUA enquanto país hegemônico; o negócio altamente lucrativo da guerra. O declínio do poder econômico-financeiro é cada vez mais evidente. Depois do 11 de Setembro de 2001, a CIA financiou um projeto chamado “projeto profecia” destinado a prever possíveis novos ataques aos EUA a partir de movimentos financeiros estranhos e de grande envergadura. Sob diferentes formas, esse projeto tem continuado, e um dos seus participantes prevê o próximo crash do sistema financeiro com base nos seguintes sinais: a Rússia e a China, os maiores credores dos EUA, têm vindo a vender os títulos do tesouro e em troca têm vindo a adquirir enormes quantidades de ouro; estranhamente, este títulos têm vindo a ser comprados em grandes quantidades por misteriosos investidores belgas e muito acima da capacidade deste pequeno país (especula-se se o próprio banco de reserva federal não estará envolvido nesta operação); aqueles dois países estão cada vez mais a usar as suas moedas e não os petrodólares nas transações de petróleo (todos se recordam que Saddam e Kadafi  procuraram usar o euro e o preço que pagaram pela ousadia); finalmente, o FMI (o cavalo de Troia) prepara-se para que o dólar deixe de ser nos próximos anos a moeda de reserva e seja substituída por uma moeda global, os SDR (special drawing rights).

Para os autores do projeto profecia, tudo isto indica que um ataque aos EUA está próximo e que para este se defender tem de manter os petrodólares a todo o custo, assegurando o acesso privilegiado ao petróleo e ao gás, tem de conter a China e tem de debilitar a Rússia, idealmente provocando a sua desintegração, tipo Jugoslávia. Curiosamente, os “especialistas” que veêm na venda da dívida uma atitude hostil por parte de potências agressoras são os mesmos que aconselham os investidores norte-americanos a procederem da mesma maneira, isto é, a desfazerem-se dos títulos, a comprar moedas de ouro e a investirem em bens sem os quais os humanos não podem viver: terra, água, alimentos, recursos naturais, energia.

Transformar os sinais óbvios de declínio em previsões de agressão visa justificar a guerra como defesa. Ora a guerra é altamente lucrativa devido à superioridade dos EUA na condução da guerra, no fornecimento de equipamentos e nos trabalhos de reconstrução. E a verdade é que, como escreveu Howard Zinn, os EUA têm estado permanentemente em guerra desde a sua fundação. Acresce que, ao contrário da Europa, a guerra nunca será travada em solo norte-americano, salvo, claro, o caso de guerra nuclear. Em 14 de Outubro de 2014, o New York Times divulgava o relatório da CIA sobre o fornecimento clandestino e ilegal de armas e financiamento de guerras nos últimos 67 anos em muitos países, entre eles, Cuba, Angola e Nicarágua. Esta notícia serviu para que Noam Chomsky dissesse em “The Laura Flanders Show” que aquele documento só podia ter o seguinte título: “Yes, we declare ourselves to be the world´s leading terrorist state. We are proud of it” (“Sim, declaramos que somos o maior estado terrorista do mundo e temos orgulho nisso”).

Um país em declínio tende a tornar-se caótico e errático na sua política internacional. Immanuel Wallerstein refere que os EUA se transformaram num canhão descontrolado (a loose canon), um poder cujas ações são imprevisíveis, incontroláveis e perigosas para ele próprio e para os outros. A consequência mais dramática é que esta irracionalidade se repercute e intensifica na política dos seus aliados. Ao deixar-se envolver na nova guerra fria, a Europa, não só atua contra os seus interesses económicos, como perde a relativa autonomia que tinha construído no plano internacional depois de 1945. A Europa tem todo o interesse em continuar a intensificar as suas relações comerciais com a Rússia e em contar com esta como fornecedora de petróleo e gás. As sanções contra a Rússia podem a vir a afetar mais a Europa que a Rússia. Ao alinhar-se com o militarismo da OTAN onde os EUA têm total preponderância, a Europa põe a economia europeia ao serviço da política geoestratégica dos EUA, torna-se energeticamente mais dependente dos EUA e dos seus estados satélites, perde a oportunidade de se expandir com a entrada da Turquia na União Europeia. E o mais grave é que esta irracionalidade não é o mero resultado de um erro da avaliação dos interesses dos europeus. É muito provavelmente um ato de sabotagem por parte das elites neoconservadoras europeias no sentido de tornar a Europa mais dependente dos EUA, tanto no plano energético e económico, como no plano militar.

Por isso, o aprofundamento do envolvimento na OTAN e o tratado de livre comércio entre a UE e os EUA (parceria transatlântica de investimento e comércio) são os dois lados da mesma moeda.

Pode argumentar-se que a nova guerra fria, tal como a anterior, não conduzirá a um enfrentamento total. Mas não esqueçamos que a primeira guerra mundial foi considerada, quando começou, uma escaramuça que não duraria mais de uns meses. Durou quatro anos e custou entre 9 e 15 milhões de mortos. 

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Original em Carta Maior



A guerra pelos media e o triunfo da propaganda

19 de Dezembro de 2014, 9:41, por Bertoni

Por John Pilger

Por que tão grande parte do jornalismo sucumbiu à propaganda? Por que a censura e a distorção são a prática padrão? Por que a BBC é tão frequentemente uma porta-voz do poder rapinante? Por que o New York Times e o Washington Post enganam os seus leitores?

Por que não ensinam os jornalistas jovens a entender as agendas dos media e a desafiar as afirmações altissonantes e os baixos objectivos da falsa objectividade? E por que não lhes ensinam que a essência de grande parte do que se publica nos media de referência não tem a ver com informação e sim com poder?

Estas são questões urgentes. O mundo está a enfrentar a perspectiva de uma grande guerra, talvez nuclear – com os Estados Unidos claramente determinados a isolar e provocar a Rússia e finalmente a China. Esta verdade está a ser invertida e posta às avessas por jornalistas, incluindo aqueles que promoveram as mentiras que levaram ao banho de sangue no Iraque em 2003. Os tempos que vivemos são tão perigosos e tão distorcidos na percepção pública que a propaganda já não é, como a denominou Edward Bernays, um "governo invisível". Ela é o governo. Ele domina directamente sem receio de contradição e seu principal objectivo é a conquista de nós próprios: do nosso sentido do mundo, da nossa capacidade para separar verdade de mentiras.

A era da informação é realmente uma era dos media. Temos guerra pelos media; censura pelos media; demonologia pelos media; retaliação pelos media; diversionismo pelos media – uma linha de montagem surreal de clichés obedientes e pressupostos falsos.

O poder de criar uma nova "realidade" tem estado em construção há muito tempo. Quarenta e cinco anos atrás, um livro intitulado The Greening of Americaprovocou sensação. Na capa constavam estas palavras: "Há uma revolução que se aproxima. Ela não será como revoluções do passado. Ela terá origem com o indivíduo".

Eu era correspondente nos Estados Unidos naquele tempo e recordo a elevação ao status de guru do seu autor, um jovem académico de Yale, Charles Reich. A sua mensagem era que dizer a verdade e a acção política haviam fracasso e só a "cultura" e a introspecção podiam mudar o mundo.

Dentro de poucos anos, conduzido pelas forças do lucro, o culto do "eu-ismo" quase havia esmagado nosso sentido de actuação conjunta, nosso sentido de justiça social e de internacionalismo. Classe, género e raça eram separados. O pessoal era a política e os media era a mensagem.

Depois da guerra fria, a fabricação de novas "ameaças" completou a desorientação política daqueles que, 20 anos antes, teriam constituído uma oposição veemente.

Em 2003, filmei em Washington uma entrevista com Charles Lewis, distinto jornalista de investigação americano. Discutimos a invasão do Iraque uns poucos meses antes. Perguntei-lhe: "E se os media mais livres do mundo tivessem desafiado seriamente George Busch e Donald Rumsfeld e investigado suas afirmações, ao invés de canalizar o que se revelou como propaganda bruta?" Ele respondeu que se nós jornalistas tivéssemos feito o nosso trabalho "haveria uma possibilidade muito boa de não termos ido à guerra no Iraque".

Trata-se de uma declaração chocante e que é partilhada por outros jornalistas famosos a quem fiz a mesma pergunta. Dan Rather, anteriormente da CBS, deu-me a mesma resposta. David Rose do Observer e jornalistas e produtores antigos da BBC, que pediram para permanecer anónimos, deram-me a mesma resposta.

Por outras palavras, tivessem jornalistas cumprido a sua tarefa, tivessem eles questionado e investigado a propaganda ao invés de ampliá-la, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças podiam hoje estar vivos, e milhões podiam não terem fugido dos seus lares; a guerra sectária entre sunitas e xiitas podiam não ter sido desencadeada e o infame Estado Islâmico podia agora não existir.

Mesmo agora, apesar dos milhões que foram às ruas em protesto, a maior parte do público nos países ocidentais mal faz ideia da escala absoluta do crime cometido pelos nossos governos no Iraque. Mesmo com poucos conscientes disso, nos 12 anos que precederam a invasão, os governos estado-unidense e britânico activaram um holocausto ao negarem meios de vida à população civil do Iraque.

Estas são as palavras do alto responsável britânico pelas sanções ao Iraque na década de 1990 – um assédio medieval que provocou as mortes de meio milhão de crianças com menos de cinco anos, informou a UNICEF. O nome do responsável é Carne Ross. No Foreign Office em Londres ele era conhecido como "Sr. Iraque". Hoje é alguém que conta a verdade sobre como governos enganam e como jornalistas propagam o engano de bom grado. "Nós alimentávamos jornalistas com factóides de inteligência expurgada", contou-me, "ou nós os congelávamos do lado de fora".

O principal denunciante durante este período terrível e mudo foi Denis Halliday. Então secretário-geral assistente das Nações Unidas e o alto responsável da ONU no Iraque, Halliday preferiu renunciar a implementar políticas que descreveu como genocidas. Ele estima que as sanções mataram mais de um milhão de iraquianos.

O que aconteceu a seguir a Halliday foi instrutivo. Ele foi camuflado. Ou foi vilipendiado. No programa Newsnight da BBC, o apresentador Jeremy Paxman sussurrou-lhe: "Não será você um apologista de Saddam Hussein?" O Guardian recentemente descreveu isto como um dos "momentos memoráveis" de Paxman. Na semana passada, Paxman assinou um contrato de £1 milhão para um livro.

Os serviçais do silenciamento (suppression) fizeram bem o seu trabalho. Considerem os efeitos. Em 2013, um inquérito ComRes descobriu que a maioria do público britânico acreditava que o número de baixas no Iraque era de menos de 10 mil – uma minúscula fracção da verdade. Um rastro de sangue que vai desde o Iraque até Londres foi lavado até quase ficar limpo.

Diz-se que Rupert Murdoch é o padrinho da mafia dos media e ninguém deveria por em dúvida o poder acrescido dos seus jornais – 127 ao todo, com uma circulação somada de 40 milhões, e da sua rede Fox. Mas a influência do império Murdoch não é maior do que o seu reflexo da generalidade dos media.

A propaganda mais eficaz não se encontra no Sun ou na Fox News – mas debaixo de um halo liberal. Quando o New York Times publicou afirmações de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, suas provas falsas foram acreditadas porque não era a Fox News; era o New York Times.

O mesmo é verdadeiro em relação ao Washington Post e ao Guardian, ambos os quais desempenharam um papel crítico para condicionar os seus leitores a aceitar uma nova e perigosa guerra fria. Todos estes três jornais liberais adulteraram acontecimentos na Ucrânia como actos malignos da Rússia – quando, de facto, o golpe fascista na Ucrânia foi obra dos Estados Unidos, ajudados pela Alemanha e pela NATO.

A inversão da realidade é tão predominante que o cerco militar de Washington e a intimidação da Rússia não é contestada. Isso não é sequer notícia, mas silenciado por trás de uma campanha de difamação e medo da espécie a que assistíamos durante a primeira guerra fria.

Mais uma vez, o império do mal está a vir apanhar-nos, liderado por um outro Staline ou, perversamente, um novo Hitler. Nomeie o seu demónio e dispare.

O silenciamento da verdade acerca da Ucrânia é um dos mais completos blackouts noticiosos de que me posso lembrar. A maior acumulação militar do ocidente no Cáucaso e na Europa oriental desde a segunda guerra mundial é censurada. A ajuda secreta de Washington a Kiev e suas brigadas neo-nazis responsáveis por crimes de guerra contra a população do Leste da Ucrânia são censurados. Evidências que contradigam a propaganda de que a Rússia foi responsável pelo derrube um avião da Malaysian são censuradas.

E, mais uma vez, os media supostamente liberais são os censores. Sem mencionar factos, sem prova, um jornalista identificou um líder pró Rússia na Ucrânia como o homem que derrubou o avião de carreira. Este homem, escreveu ele, era conhecido como O Demónio. Ele era um homem amedrontador que assustou o jornalista. Essa era a prova.

Grande parte dos media ocidentais tem-se esforçado por apresentar a população de etnia russa da Ucrânia como intrusos (outsiders) no seu próprio país, quase nunca como ucranianos à procura de uma federação dentro da Ucrânia nem como cidadãos ucranianos a resistirem a um golpe orquestrado no estrangeiro contra o seu governo eleito.

O que o presidente russo tem a dizer não tem consequência; ele é um vilão de pantomina que pode ser maltratado com impunidade. Um general americano que encabeça a NATO é um sucessor directo do Dr. Strangelove – um general Breedlove – afirma rotineiramente invasões russos sem nem um fragmento de prova visual. A sua personificação do general Jack D. Ripper, de Stanley Kubrick, é uma caracterização perfeita.

Quarenta mil ruskies estavam a amontoar-se na fronteira, segundo Breedlove. Isso foi suficiente para o New York Times, Washington Post e o Observer – este último tendo anteriormente distinguido-se com mentiras e falsificações que apoiavam a invasão de Blair do Iraque, como revelou seu antigo repórter David Rose.

Há quase a joie d'esprit de uma reunião de classe. Os tocadores de tambor do Washington Post são exactamente os mesmos editorialistas que declararam a existência de armas de destruição em massa de Saddam como "factos indiscutíveis".

"Se quiser saber", escreveu Robert Parry, "como o mundo poderia afundar numa terceira guerra mundial – tal como aconteceu com a primeira guerra mundial um século atrás – tudo o que precisa fazer é olhar para a loucura que envolveu virtualmente toda a estrutura política e dos media dos EUA sobre a Ucrânia onde uma falsa narrativa de chapéus brancos contra chapéus pretos desencadeou-se a princípio e demonstrou-se impermeável a factos ou à razão".

Parry, o jornalista que revelou o [escândalo] Irão-Contra, é um dos poucos que investiga o papel central dos media neste " game of chicken ", como o chamou o ministro russo dos Estrangeiros. Mas será um jogo? Quando escrevo isto, o Congresso dos EUA vota a Resolução 758 a qual, em poucas palavras, diz: "Vamos nos preparar para a guerra com a Rússia".

No século XIX, o escritor Alexander Herzen descreveu o liberalismo laico como "a religião final, embora a sua igreja não seja do outro mundo mas sim deste". Hoje, este direito divino é muito mais violento e perigoso do que qualquer coisa que o mundo muçulmano vomite, apesar de o seu maior triunfo ser talvez a ilusão da informação livre e aberta.

Nos noticiários, países inteiros são desaparecidos. A Arábia Saudita, a fonte de extremismo e de terror apoiado pelo ocidente, não é notícia, excepto quando ela deita abaixo o preço do petróleo. O Iémen aguentou doze anos de ataques de drones americanos. Quem sabe disso? Quem se importa?

Em 2009, a University of the West of England publicou os resultados de um estudo de dez anos de cobertura da Venezuela feita pela BBC. Das 304 reportagens difundidas, apenas três mencionavam qualquer das políticas positivas introduzidas pelo governo de Hugo Chavez. O programa de alfabetização da história humana mal recebeu uma referência de passagem.

Na Europa e nos Estados Unidos, milhões de leitores e telespectadores não sabem quase nada acerca das notáveis mudanças, vivificantes, implementadas na América Latina, muitas delas inspiradas por Chavez. Tal como a BBC, a reportagens do New York Times, do Washington Post, do Guardian e do resto dos respeitáveis media ocidentais eram notoriamente de má fé. Chavez foi ridicularizado mesmo no seu leito de morte. Como é que isto é explicado, pergunto, nas escolas de jornalismo? Por que é que milhões de pessoas na Grã-Bretanha são persuadidas de que é necessária uma punição colectiva chamada "austeridade"?

Na sequência do crash económico de 2008 revelou-se um sistema apodrecido. Durante uma fracção de segundo os bancos foram alinhados como vigaristas com obrigações para com o público que haviam traído.

Mas dentro de poucos meses – com excepção de algumas pedras lançadas sobre os excessivos "bónus" corporativos – a mensagem mudou. As fotos dos banqueiros culpados desvaneceram-se dos tablóides e algo chamado "austeridade" tornou-se o fardo de milhões de pessoas comuns. Houve alguma vez um truque de prestidigitação tão descarado?

Hoje, muitas das condições básicas de vida civilizada na Grã-Bretanha estão a ser desmanteladas a fim de reembolsar uma dívida fraudulenta – a dívida de vigaristas. Dizem que os cortes da "austeridade" montam a £83 mil milhões. Essa é quase exactamente o montante do imposto evitado pelos mesmos bancos e por corporações como a Amazon e a News UK de Murdoch. Além disso, aos bancos vigaristas é concedido um subsídio anual de £100 mil milhões em seguro gratuito e garantias – um número que financiaria todo o Serviço Nacional de Saúde.

A crise económica é pura propaganda. Políticas extremistas dominam agora a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, grande parte da Europa, Canadá e Austrália. Quem defende os interesses da maioria? Quem está a contar a sua história? Quem está a manter o registo claro? Não é isso o que os jornalistas deveriam fazer?

Em 1977, Carl Bernsein, que ganhou fama com o Watergate, revelou que mais de 400 jornalistas e executivos dos noticiários trabalhavam para a CIA. Neles incluíam-se jornalistas do New York Times, da Time e de redes de TV. Em 1991, Richard Norton Taylor, do Guardian, revelou algo semelhante neste país.

Nada disto é necessário nos dias de hoje. Duvido que alguém pague o Washington Post e muitos outros media para acusar Edwar Snowden de ajudar o terrorismo. Duvido que alguém pague aqueles que rotineiramente enlameiam Julian Assange – embora outros prémios possam ser abundantes.

Para mim está claro que a principal razão porque Assange atraiu tanto veneno, despeito e inveja é que a WikiLeaks destruiu a fachada de uma elite política corrupta mantida a flutuar por jornalistas. Ao anunciar uma era extraordinária de revelações, Assange fez inimigos por iluminar e envergonhar os porteiros dos media, inclusive no jornal que publicou e apropriou-se do seu grande furo de reportagem. Ele tornou-se não só um alvo como uma galinha dos ovos de ouro.

Contratos de livros lucrativos e filmes de Hollywood foram feitos e carreiras nos media lançadas ou avançadas nas costas do WikiLeaks e do seu fundador. Pessoas ganharam muito dinheiro, enquanto a WikiLeaks tem lutado para sobreviver.

Nada disto foi mencionado dia 1 de Dezembro em Estocolmo quando o editor do Guardian, Alan Rusbridger, partilhou com Edward Snowden o Right Livelihood Award, conhecido como o Prémio Nobel da Paz alternativo. O chocante neste evento foi que Assange e a WikiLeaks foram vaporizados. Eles não existiam. Eles eram não pessoas.

Ninguém levantou a voz pelo homem que foi o pioneiro da denúncia digital e forneceu ao Guardian um dos maiores furos da história. Além disso, foi Assange e sua equipe da WikiLeaks quem efectivamente – e brilhantemente – resgatou Edward Snowden de Hong Kong e enviou-o para a segurança. Nem uma palavra.

O que tornou esta censura por omissão tão irónica, pungente e desgraçada foi o facto de que cerimónia se realizou no parlamento sueco – cujo silêncio covarde sobre o caso Assange tem sido conivente com um grotesco aborto de justiça em Estocolmo.

"Quando a verdade é substituída pelo silêncio", disse o dissidente soviético Yevtushenko, "o silêncio é uma mentira".

É esta espécie de silêncio que nós jornalistas precisamos romper. Precisamos olhar ao espelho. Precisamos prestar contas quanto aos media que não as prestam e que servem poder e [alimentam] uma psicose que ameaça uma guerra mundial.

No século XVIII, Edmund Burke descreveu o papel da imprensa como um Quarto Estado controlando os poderosos. Será que isto era verdade? Ela certamente já não faz isso. O que precisamos é de um Quinto Estado: um jornalismo que monitore, desconstrua, faça contra-propaganda e ensine os jovens a serem agentes do povo, não do poder. Precisamos do que os russos chamavam perestroika – uma insurreição do conhecimento subjugado. Eu chamaria a isto jornalismo real.

Fazem agora 100 anos desde o início da Primeira Guerra Mundial. Repórteres então foram premiados e condecorados pelo seu silêncio e conivência. Na altura da carnificina, o primeiro-ministro britânico David Lloyd George confidenciou a C.P. Scott, editor do Manchester Guardian: "Se o povo realmente soubesse [a verdade] a guerra seria travada amanhã, mas naturalmente eles não sabem e não podem saber".

É tempo de saberem.

O texto acima é a transcrição do discurso de John Pilger no Logan Symposium, "Building an Alliance Against Secrecy, Surveillance & Censorship", organizado pelo Centre for Investigative Journalism, Londres, 5-7/Dezembro/2014.

O original encontra-se em www.globalresearch.ca/war-by-media-and-the-triumph-of-propaganda/5418152

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/



Os brasileiros vivem mais!

18 de Dezembro de 2014, 14:53, por Bertoni

Por Clemente Ganz Lúcio1

O desenvolvimento pode ser interpretado como a capacidade política que tem uma sociedade de distribuir os ganhos do crescimento econômico. Já a qualidade do crescimento pode ser interpretada como a capacidade social de criar os instrumentos para conferir bem-estar material, qualidade de vida, liberdade, justiça e sustentabilidade ambiental.

O Brasil é uma das maiores potências econômicas do planeta e vem construindo, no espaço das suas contradições e conflitos, profundas transformações: a urbanização e industrialização, que colocou mais de 80% da população nas cidades; um mercado de trabalho heterogêneo que envolve quase 100 milhões de trabalhadores; sistemas públicos de proteção e promoção social na saúde, educação, assistência social, segurança, entre outros, bases de disputa do nosso desenvolvimento. Essas transformações têm impactos sobre a vida das pessoas e podem ser medidas, por exemplo, pelo aumento da expectativa de vida dos brasileiros.

Compete ao IBGE produzir os indicadores para medir esse fenômeno. Os dados mais recentes mostram que a expectativa de vida dos brasileiros saltou de 62,6 anos (1980) para 74,9 anos em 2013. São 12,3 anos a mais, um crescimento de quase 4,5 meses por ano. As mulheres têm maior expectativa de vida, passando de 65,7 para 78,6 anos, um acréscimo de 12,9 anos. Para os homens, por sua vez, o aumento foi de 59,6 anos para 71,3 anos no mesmo período, acréscimo de 11,7 anos. Em média as mulheres vivem 7,3 anos a mais que os homens.

Esse fenômeno de crescimento da expectativa de vida se deve à diminuição geral da mortalidade da população, com especial destaque para os menores de um ano e dos idosos. Em 1980, por exemplo, a mortalidade infantil era de 70 por mil nascidos vivos, em 2013 essa taxa caiu para 15 por mil, uma redução de mais de 78%. Estudos mostram que isso se deve ao aumento da escolaridade feminina, ao incremento do saneamento básico (água, esgoto e coleta de lixo), diminuição da desnutrição infanto-juvenil, maior acesso aos serviços de saúde, melhoria no atendimento pré-natal e durante primeiros anos de vida da criança, entre outros fatores.

Mas existem diferenças estarrecedoras, como a da taxa de mortalidade entre homens e mulheres jovens (15 a 24 anos). Em 1980 a estimativa indicava que 23 em cada mil jovens do sexo masculino não completariam 25 anos e em 2013 o total de rapazes que não atingiriam o mesmo patamar reduziu-se para 22. Entre as jovens do sexo feminino, em 1980, de cada mil 12 não completariam 25 anos e em 2013 esse contingente caiu para cinco. Por que essa diferença? Os fatores para essa desigualdade são justificados pelo fato de os jovens do sexo masculino estarem muito mais expostos a causas externas, leia-se, violência, homicídios e acidentes de trânsito.

Para aqueles que atingem 60 anos, a expectativa de vida saltou de 16,4 anos para 21,8 anos, no período de 1980/2013. Uma mulher ao atingir 60 anos tem a expectativa de viver até os 83,5 anos e um homem até os 79,9 anos. A diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres vem aumentado a favor destas.

De outro lado, há uma profunda mudança na taxa de fecundidade das mulheres. Em 1960 a taxa média era de 6 crianças/mulher em idade fértil, em 2010 reduziu-se para 1,8 filhos. Isso significa que temos uma taxa de crescimento populacional abaixo da reposição básica: um casal deve ter 2,1 filhos para que a população permaneça do mesmo tamanho.

Transforma-se o padrão demográfico brasileiro com reduções na fecundidade e na mortalidade, ou seja, temos um novo padrão que indica o envelhecimento médio da população. A cada década observa-se uma mudança na relação entre o contingente de crianças/jovens e adultos/idosos, ou seja, tem aumentado a participação relativa dos últimos no conjunto da população. Quais as consequências dessa mudança demográfica para o nosso desenvolvimento? Qual o desafio do crescimento econômico para responder a esta transformação populacional?

1 Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.



Urgentes desafios para uma população que muda.

18 de Dezembro de 2014, 14:50, por Bertoni

Por  Clemente Ganz Lúcio1

A sociedade produz o desenvolvimento, distribuindo os ganhos do crescimento econômico, bem como repartindo o estoque de riqueza gerado. Essa distribuição não é pacífica, o conflito está no cerne das tensões sociais e é objeto permanente de disputa. Porém, para disputar e distribuir, é preciso produzir os bens e serviços capazes de conferir bem-estar material e qualidade de vida para todos. Esse é um enorme desafio: produzir e distribuir para todos!

O Brasil possui uma força de trabalho ativa de quase 100 milhões de trabalhadores que têm o desafio econômico de produzir para sustentar uma vida decente para os quase 200 milhões de brasileiros. Quando a população aumenta, mais pessoas chegam ao mercado de trabalho e cresce a demanda por bens e serviços. Da mesma forma, quando se insere economicamente parte da população excluída do mercado de trabalho e do consumo, amplia-se a demanda que anima a produção e faz crescer a capacidade produtiva das empresas com novos investimentos. Esses dois movimento contribuíram para sustentar o crescimento econômico do país na última década. Nessa dinâmica, jovens e adultos formam uma maioria que impulsiona a capacidade produtiva que, combinada com a inovação tecnológica, é capaz de aumentar a produtividade e a capacidade da economia para atender as demandas da sociedade. Nesse período o contingente de pessoas em idade ativa é maior do que o de crianças, jovens e idosos, estes dependentes da capacidade produtiva daqueles.

O que acontece quando o aumento populacional diminui? O que ocorre quando essa diminuição vem acompanhada do aumento da expectativa de vida? A população envelhece, o que provoca mudanças profundas na população, fenômeno em curso em nosso país2. Segundo dados do IBGE, a expectativa de vida dos brasileiros saltou de 62,6 anos (1980) para 74,9 anos, em 2013. Para aqueles que atingem 60 anos, a expectativa de vida saltou de 76,4 anos para 81,8 anos, no mesmo período. De outro lado, o número de filhos por mulher em idade fértil vem caindo e está em 1,8 filho por mulher, o que indica que, perto de 2040, a população deixará de crescer, caso não se reverta essa tendência ou não ocorra um novo fluxo imigratório que compense essa queda.

O Brasil ainda está em um período considerado auspicioso, pois a população em idade ativa é maior do que a população dependente (crianças e idosos), portanto há capacidade produtiva para gerar um excedente que amplia as condições de bem-estar e qualidade de vida. O desafio - e a grande oportunidade - nesse período é produzir um tipo de enriquecimento que promova o desenvolvimento do país. Isso não é nada fácil, especialmente porque a desigualdade é uma característica estrutural da sociedade brasileira.

O que ocorrerá com a sociedade brasileira se não realizar a tarefa de produzir capacidade econômica para gerar bem-estar e qualidade de vida para todos? Há um alto risco de se consolidar uma realidade de desigualdade estrutural, com déficits econômicos e sociais instransponíveis, com possíveis e graves consequências políticas e culturais.

O tempo é curto: temos uma década. Esse bônus diminuirá progressivamente a partir de 2025. A tarefa que se impõe dramaticamente é fazer todo investimento necessário para aproveitar o que nos resta da janela de oportunidade demográfica: concentrar todo esforço público na promoção da universalização da educação de qualidade, desde a infância, essencial para a consolidação da cidadania e da capacidade cognitiva e econômica para aumentar a produtividade; construir a base material para a vida decente nos espaços urbanos que recepcionam mais de 80% da população; viabilizar a infraestrutura econômica para atender as demandas da produção e infraestrutura social para serviços públicos de qualidade, entre outros.

Trata-se de uma tarefa hercúlea, que exige grande convergência de esforços, alta capacidade política de construir acordos sociais em torno de prioridades produtivas e distributivas. Tempo, neste caso, é um recurso extremamente escasso que, dramaticamente, corre contra esse desafio. O nosso sucesso é o legado que poderemos deixar para as gerações futuras e uma resposta para o sentido das nossas vidas.

1 Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.

2 A este respeito ver a Nota Técnica 127 elaborada pelo DIEESE, “Os desafios à ação sindical decorrentes das mudanças na população”, em www.dieese.org.br



Bertoni