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Decanse em paz, Camarada Lúcio Bellentani!

19 de Junho de 2019, 13:49 , por Bertoni - | No one following this article yet.
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Fiquei sabendo pelo Zacharias*, um amigo de Moscou, que o camarada Lúcio Antonio Bellentani faleceu nesta madrugada de 19 de junho de 2019.

Lucio bellentani

Conheci Lúcio na fábrica da Ford Ipiranga, onde ambos trabalhávamos. Ele um ferramenteiro experiente e eu um garoto de SENAI fazendo meu primeiro estágio prático na fábrica. Sem me conhecer, nosso chefe nos colocou para trabalhar juntos. Eu já sabia quem era Lúcio e o que ele estava organizando na fábrica. Ele não me conhecia. E logo no primeiro diálogo o moleque de 15 anos pergunta ao velho ferramenteiro:

- Diz uma coisa, Lúcio, você é prestista, comunista, petista, social-democrata ou eurocomunista. 

Trostskista ou igrejeiro eu já sabia que ele não era.

"Caraio, muleque, que papo é esse?", respondeu Lúcio intrigado com questionamento na lata vindo de um moleque de SENAI.

Discutimos cada um dos conceitos e conversamos horas a fio sobre o que rolava no mundo, no sindicalismo e, claro, sobre o processo de organização e conquista da Comissão de Fábrica dos Trabalhadores na Ford, da qual Lúcio era coordenador e um dos articuladores do movimento que levou os trabalhadores do chão de fábrica a se organizar e conquistar seu instrumento de luta e representação sindical no local de trabalho.

Vivíamos ainda a ditadura militar, em sua fase de distensão, a tal da abertura lenta gradual e segura como diziam os milicos. A mesma ditadura que prendeu e torturou Lúcio Bellentani e que lhe deixou sequelas psicológicas como ele sempre nos contou e conta no vídeo abaixo.

Aprendi muita coisa com Bellentani. Militamos na mesma trincheira durante anos, em 1987 fui eleito secretário da Comissão de Fábrica dos Trabalhadores na Ford na chapa encabeçada por Lúcio e Peninha, respectivamente, coordenador e vice. Juntos organizamos no mesmo ano a primeira greve dos trabalhadores na recém criada Autolatina, quando denunciamos os planos de desindustrialização promovido pelas montadoras Ford e VW, a remessa de lucros para o exterior e a desqualificação da mão-de-obra brasileira com a eliminação de postos de trabalho em áreas que exigiam profissionais altamente qualificados, como a modelação e ferramentaria.

Tivemos divergências. E não poucas. Mas sempre soubemos respeitar os saberes de cada um e lutar pelo objetivo comum da classe.

A visão de futuro e os medos de Lúcio seriam responsáveis pela minha mudança para Moscou, onde conclui o bacharelado e mestrado em Filosofia Social, discutindo com os soviéticos/russos o futuro da organização dos trabalhadores, da indústria e da economia a partir das mudanças que ocorriam no mundo do trabalho devido à aplicação das chamadas filosofias japonesas de administração, tema que aprendi na fábrica e passei a estudar estimulado pelo camarada Lúcio Antonio Bellentani.

O velho também cometia erros e não poucos. Na acima citada greve, convenceu a companheirada a estender o movimento por mais uma semana. Tomamos um preju. Anos mais tarde, tomaria a decisão de deixar a oposição sindical metalúrgica e se juntar à pelegada que controlava o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Divergimos por isso também. Embora tenha prometido, nunca me contou quais foram seus verdadeiros motivos para aquela mudança de lado. Ele sabia que discordava da decisão de se juntar ao pelegos de Sampa, mas não deixamos de debater temas que nos eram importantes. Sempre que nos encontrávamos conversávamos sobre política e sindicalismo.

Anos mais tarde Lúcio seria uma das peças chaves na denúncia contra a VW mostrando que a transnacional alemã colaborou com regime civil-militar brasileiro instaurado em 01 de abril de 1964. Me orgulhava muito em saber que Bellentani e Sebastião Neto estavam trabalhando juntos nesta empreitada, uma prova de maturidade política e de consciência de classe.

O mesmo já não posso dizer de outros que se acham bagaraio, mas não tem a mesma dignidade e companheirismo. Fiquei sabendo da morte do camarada Lúcio através de um amigo de Moscou. Antes de escrever este artigo, chequei meus e-mails, redes sociais, caixas de mensagens e não havia uma só mensagem,  um só recado, avisando sobre a morte de Lúcio. Isso mesmo, não houve um brazuka sequer que se desse ao trabalho de me avisar, para que pudesse me deslocar até São Paulo e prestar as últimas homenagens a Lúcio, afinal não moro mais na República Paulistana. Não fosse o Zacharias, estaria sem saber até o momento. E, claro, um dito muito popular no chão de fábrica não sai da minha cabeça neste momento: "Companheiro é companheiro, feladaputa é feladaputa."

Lucio foi um camarada. Zacharias é outro. Os demais que busquem para si mesmos o adjetivo que lhes pertence.

Obrigado, Zacharias por ter me avisado e possibilitado este artigo.

Obrigado, Lúcio por tudo que me ensinou, por teus erros e acertos, pelas longas conversas e reuniões. Aproveite agora, companheiro, para desfrutar a paz que os milicos te tiraram em 1972. Descanse em Paz.

Seguimos na luta!

Avanti, popolo!

 

* Conheci Zacharias em São Paulo, no inverno de 1990, um pouco antes dele embarcar para Moscou. Nesta época ele não conhecia Bellentani pessoalmente. Conversaríamos muito sobre as oposições sindicais metalúrgica e eletricitária, sobre a organização dos trabalhadores, sobre os pelegos dos sindicatos e sobre a necessidade da organização de base dos trabalhadores. Obviamente, Zacharias não é o nome do companheiro moscovita. É o apelido que lhe demos quando a Moscou chegou. Como ele achava tudo lindo e maravilhoso na decandente URSS, nós o apelidamos assim por causa de um comercial de uma rede de lojas de pneus, cujo bordão era "o Zacharias é uóóóóótimo". E mais uma vez o companheiro Zacharias comprovou que ele é uóóóóótimo. Valeu, parça! #tamojunto

PS.: Estava terminando este artigo quando tocou o meu celular. Era George Patrão, sim este é o sobrenome dele, ex-funcionário da Ford que trabalhou no departamento de treinamento na época que eu estudava no SENAI e anos mais tarde viria a ser gerente de RH da empresa norteamericana. Pois, foi um ex-representante da empresa a segunda pessoa a me avisar da morte de Lúcio Antonio Bellentani...


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