Relatos dos dois dias em que o ex-presidente ficou "preso" com seus amigos, assessores, colegas da política e apoiadores
Foto: Ricardo Stuckert
Quando Lula conseguiu, no sábado 7, atravessar a pé a rua João Lotto e enfim entrar na antiga gráfica do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o ex-presidente saiu dos cuidados de sua militância, que há dois dias permanecia no local em vigília contra a prisão do petista, para a custódia da Polícia Federal.
Um dia após o julgamento e a negativa do habeas corpus pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a notícia de que o juiz Sérgio Moro havia determinado a prisão veio no início da noite da quinta-feira 5. O ex-presidente foi direto do Instituto Lula para a sede do Sindicado dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, onde também está sua casa.
A ideia de que Lula ficaria aquartelado no sindicato, blindado não apenas pelos muros do prédio, mas pelos próprios militantes, é defendida pelos metalúrgicos desde a condução coercitiva do ex-presidente em março de 2016, também determinada por Moro. O plano foi posto em prática.
Lula foi rápido. Chegou pouco antes da mídia, que se juntou nos diversos portões do prédio com saída para três ruas diferentes. Na sequência, vieram os sem-teto da ocupação Povo Sem Medo, localizada também em São Bernardo e liderada por Guilherme Boulos,coordenador nacional do MTST e pré-candidato pelo PSOL à presidência. Imprensa, sindicalistas e sem-teto dividiam a madrugada, as ruas e informações desencontradas.
Foto: Carol Score
O clima esquentou naquela noite quando alguns militantes viram imagens vindas do helicóptero da Rede Globo, acompanhadas da narração segundo a qual eles estavam desmobilizados. Um repórter da emissora foi agredido e socorrido pela própria militância, e não se feriu.
Entre amigos íntimos, pessoas ligadas ao sindicato, políticos, família, imprensa, apoiadores e adoradores do "sapo barbudo", como é conhecido entre os metalúrgicos, o prédio de quatro andares foi se enchendo. De quinta a sábado, Lula passava o dia, a noite e uma parte da madrugada em uma sala nos fundos do segundo andar, onde ficam as diretorias.
Devido à emergência do ato, convocado horas após o juiz Sérgio Moro decretar a prisão, quase a totalidade dos presentes no sindicato eram ligados a algum partido ou a movimentos sociais. Os independentes estavam em minoria.
A logística dos militantes para o pernoite de quinta para sexta-feira ficou por conta própria. Muitos dormiram dentro do próprio sindicato, em barracas ou colchonetes. Militantes da Apeosp, sindicato dos professores de São Paulo, dormiram nas vans que os trouxeram, e integrantes do MTST armaram barracas nas ruas adjacentes.
Soldado no quartel quer serviço
Na tarde de sexta-feira 6, qualquer um podia entrar no sindicato e explorar seus andares livremente. O difícil era chegar ao segundo andar, no qual Lula passou o dia recebendo a cúpula do PT, aliados de outros campos da esquerda, amigos e assessores.
O único espaço no andar com circulação de ar era uma varanda, onde militantes fumavam, tinham conversas pessoais e gravavam vídeos. Não havia água corrente no banheiro. Em nota, a Sabesp alegou que o desabastecimento foi causado pelo excesso de consumo. O sindicato afirma que a água foi cortada, e que nunca houve falta do recurso em função de uma grande concentração de pessoas.
A água para consumo direto — e para o café adoçado, disponível em garrafas térmicas em todo o prédio — veio em garrafas de 1,5 litros, trazidas por ajudantes ao longo do dia.
Até chegar à ilha montada com grades móveis que parecia ser o último bloqueio dos populares e da imprensa ao ex-presidente, era preciso furar tantos outros. Mais que crachá e paixão, era importante conhecer e convencer os "guardas", saber onde estavam todas as escadas, entradas e saídas. Não são poucas. A segurança era feita pelos próprios sindicalistas.
Quem chegasse por ali e que tivesse alguma ligação com os metalúrgicos, ganhava uma missão. Apenas na entrada principal, local de maior concentração, havia seguranças profissionais, que tiveram muito trabalho para conter a multidão. Muitas vezes não conseguiram.
O silêncio do ex-presidente, dos advogados e dos mais próximos foi um balde de água fria na esperança da militância de que Lula não se entregaria. Mais gente chegava, e a expectativa era a de que mais hora, menos hora, o ex-presidente fosse ao caminhão de som posicionado do lado de fora para dar seu próprio veredicto.
Xadrez
Cada político que chegava se tornava rapidamente um interlocutor com a imprensa e com a militância. Mas o xadrez ainda não estava montado, e como não havia comunicado oficial, cada um deles defendia sua própria estratégia.
A cena no hall onde estava parte da imprensa e por onde os personagens principais entravam e saíam parecia mais com a cobertura de um jogo de futebol. Senadores e deputados surgiam à beira do campo, apontavam as falhas, tentavam passar uma mensagem de esperança e luta, e saíam sem dizer muita coisa sobre o futuro próximo do ex-presidente.
Lula ainda aguardava do advogado Cristiano Zanin as informações atualizadas do processo, do advogado e deputado federal Wadih Damous e do ex-ministro da justiça José Eduardo Cardozo as tratativas com a PF, e dos conselheiros políticos para saber quantas pessoas ainda iriam se somar a uma eventual resistência no sindicato.
Por volta das 16h da sexta-feira 6, o ex-presidente sentiu que havia base suficiente para negociar um pouco mais e planejava adiar sua entrega à PF.
A essa altura já estavam todos mortos de fome. O restaurante self service da Branca, no quarto andar, virou bandejão. Arroz, feijão, alface, vinagrete e bisteca, além de um foco de churrasco na parte externa, davam conta de alimentar quem quisesse se aventurar no salão, que foi compartilhado por apoiadores, intelectuais, figuras públicas, artistas, sindicalistas, políticos e imprensa. O papo no almoço era o que cada um sabia sobre os próximos passos do ex-presidente. E como cada um imaginava o que deveria ser feito.
Passadas às 17h, a possibilidade de Lula se entregar como Moro determinara já tinha sido descartada. A multidão do lado de fora inflamou. Mais apoiadores chegavam, agora com posições ideológicas muito mais pulverizadas.
Não eram mais os filiados ao PT e os metalúrgicos, mas simpatizadas de Lula, gente que dizia estar ali para defender a democracia, o estado de direito, que não escondiam críticas e a admiração pelo ex-presidente, e que viam na resistência de Lula a esperança de um ponto de virada para a esquerda.
Sempre atento, o segurança e motorista de Lula, Marcos Azevedo, assistia sentado na ponta de uma das escadas, com semblante taciturno, à militância gritar e o dia cair. "De hoje até quarta-feira 11, a vida vai dar uma guinada. Ainda não sei para onde. Só espero que não apareça um fanático estilo o cara que matou o John Lennon, porque com esse pessoal apaixonado é difícil de conversar. E o Lula não tá nem ai. Ele vai se meter no meio do povo se for necessário."
Preso no sindicato, o ex-presidente queria sair e falar com o povo, mas a produção improvisada não conseguia pensar numa maneira de levá-lo até o caminhão. Este foi o momento de maior aglomeração do lado de dentro e de fora.
Com muito esforço, conseguiram levá-lo, através dos corredores internos das salas, de uma ponta do prédio a outra, para uma rápida aparição pela janela. Animou a torcida, mas não satisfez os corações. As palmeiras do sindicato e a janela que não abria por inteiro bloquearam a visão.
Um cordão humano foi feito, por onde a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o senador Lindbergh Farias, e demais parlamentares e lideranças políticas passaram até chegarem, primeiro no estacionamento, depois no caminhão de som. Lula não foi. Não havia segurança suficiente para sair. Seguiu confinado em sua sala improvisada.
Ficou para Lindbergh a função de avisar no carro de som que "Lula, num ato de extrema coragem, havia decidido não se entregar". A multidão respondeu com o grito "aqui está o povo sem medo, sem medo de lutar", que originalmente é usado pela Frente Povo Sem Medo, ligada principalmente ao MTST.
De fato, o ex-presidente não se apresentou à PF no prazo determinado por Moro. Naquele momento, articulava-se, porém, a entrega de Lula ou no sábado após o ato ecumênico para a ex-primeira dama Marisa, ou no domingo, preferência do corinthiano, que queria assistir à final do Campeonato Paulista pela televisão, vencida pelo Timão. Ele acompanhou a partida, mas já preso na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba no domingo 8. Moro permitiu a instalação de uma televisão na cela do ex-presidente.
O grupo confinado no que seria o espaço "VIP" do sindicato, entre eles diversos políticos, jantavam sentados no chão. O menu era composto por pão sem nada dentro e suco processado quente. O ex-ministro de Lula Renato Rebelo, do PCdoB, circulava dizendo "amigos, sem providência não há resistência." As negociações com a PF avançaram, e a cúpula de Lula foi para casa tomar banho e dormir.
O começo da noite da sexta 6 foi quando o ex-presidente recebeu o maior número de visitas pessoais. Entre elas, as dos jornalistas Mino Carta, diretor de redação de CartaCapital, e Ricardo Kosctho, da cientista social Laura Carvalho, e de Frei Beto, com quem gravou um vídeo.
Do lado de fora, a militância permaneceu em grande maioria até o começo da madrugada, aproveitando o encontro com os amigos para colocar o papo em dia, tomar cerveja e comer churrasquinho. Os bares ao redor ficaram completamente cheios. O caminhão de som tocava samba e rap. O clima nesse momento era de solidariedade e um bocado de bom humor.
Foto: Paulo Pinto
Dia D
No sábado, a notícia de que Lula se entregaria à polícia no mesmo dia, ainda que em termos incertos, já havia se espalhado pelo povo na rua. Mas a palavra final era de Lula, o que cultivou na militância a esperança de poder atuar ainda no xadrez sem desfecho.
A aglomeração nas ruas era menor nas primeiras horas da manhã, em maioria de jovens, que tocavam violão, dormiam, buscavam café para os camaradas, se maquiavam. "Estou aproveitando que a missa da dona Marisa ainda não começa para cortar as unhas. No último ato que eu fui com o Lula eu perdi uma", disse Ricardo Bazzil, da União da Juventude Socialista (UJS).
Por volta das 7h, o presidente ainda dormia com os filhos num quartado montado no subsolo. Lá a movimentação era restrita apenas a família e seguranças. Pouco depois das 8h, Lula tomou café e foi se reunir com a cúpula. O ex-presidente dormiu pouco à noite. Não por falta de sono, mas porque mais uma vez mal conseguia se descolar da sala onde recebia amigos e advogados para o quarto improvisado.
Do lado de dentro, os ânimos já estavam exaltados essa hora. A multidão aglomerada
somada a inexistência de um roteiro, cuja a saída de Lula dali não era uma possibilidade, transformou o saguão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em bomba-relógio. Uma cadeira caiu e foi suficiente para um grupo sair correndo, levando mais gente a correr.
Nesse momento, outra equipe da Rede Globo que não estava com crachás e uniformes foi reconhecida e hostilizada. Na confusão uma barreira de vidro se quebrou. A equipe teve de se sair do prédio. Outros jornalistas trabalhavam, porém, sem sofrerem constrangimentos.
Não demorou muito para começar o ato ecumênico em homenagem ao aniversário de 68 anos de Marisa Letícia, esposa de Lula morta em 2016. A celebração fundiu a celebração religiosa, comandada pelo bispo católico Dom Angélico Sândalo, com o ato político de Lula, que era acompanhando dos músicos Xênia França, Thaíde, Tulipa Ruiz, Alia e Renegado, Leci Brandão e Edu Brechó.
Entre uma fala e outra, os músicos tocaram Asa Branca, Deixa a Vida Me Levar, Zé do Caroço, Maria Maria, entre outras. Pouco antes a multidão já cantava espontaneamente em coro outras músicas, como Nego Drama, dos Racionais MC`s. "É o Lulapalooza", brincou um dos presentes ao carro de som.
O último discuso de Lula lembrava um comício, mas tinha tom de despedida. Chorava-se muito, e não apenas os militantes do PT. "O que mata a gente é a sensação de injustiça. A verdade é que ele personificou a nossa esperança. Hoje estou exausta, mas amanhã vai ser outro dia. Não acaba aqui não", disse a professora Marlene Carlos, que veio de Belho Horizonte para o ato.
O choro geral deu trégua quando o próprio Lula pegou, enfim, no microfone. Os manifestantes começaram a pedir: "não se entrega". Eles estavam dispostos a convencê-lo de que fariam a resistência. Lula não colocou em votação, como fazia nas assembleias dos metalúrgicos. Informou monocraticamente que irá cumprir o mandado judicial, e saiu do caminhão a caminho do seu QG da única maneira que a multidão permitiria: por cima.
A grande maioria dispersou em menos de duas horas após o fim do ato. Restou o mistério de como Lula sairia do prédio para entrar no carro da Polícia Federal. Um grupo expressivo afirmava que não permitiria sob nenhuma condição que o petista deixasse o sindicato. Esses apoiadores não eram, de modo geral, militância do PT e nem ligados ao sindicato.
Eles primeiro se juntaram em frente ao portão de carros do subsolo, por onde o ex-presidente sairia. Depois, "abraçaram" o sindicato fechando todas as saídas possíveis. No começo da noite, na iminência de Lula sair, quebraram o portão do subsolo, inviabilizando que qualquer carro saísse por ali.
O ex-prefeito de São Bernardo Luiz Marinho e Gleisi Hoffmann tentaram dialogar com a militância, pedindo que a decisão de Lula fosse respeitada, e apelando para a negociação anteriormente feita com a PF. Lembravam ainda que a Polícia Militar e Tropa de Choque já estavam posicionadas para dispersá-los. Marinho pediu para que pensassem juntos, e a militância entoou o coro dizendo "não é assembleia".
Na rua paralela, na entrada da antiga gráfica do sindicato, três carros da PF e duas vans do COT (Centro de Operações Táticas) permaneciam estacionados com os motores ligados. A militância que aguardava ao redor - em menor número da que a que tentava impedir a passagem na rua de cima - não tinha acesso aos policiais, que permaneciam dentro do automóveis com vidros pretos.
Um vendedor de pé-de-moloque bem que tentou contato, mas conseguiu ver apenas um sinal de joia vindo de dentro.
Para poder cumprir o acordo com a PF, restou a Lula o que o motorista Azevedo tanto temia: ir a pé até o portão da antiga gráfica, localizada do outro lado da rua, e com acesso a uma saída pela rua paralela. A multidão foi para cima. Uma parte para agarrá-lo, outra para deixá-lo ir, outra que já não sabia mais como agir. Muitos para protegê-lo.
Dentro da gráfica, a passagem da custódia da militância para a PF foi feita. Lula saiu rapidamente já em poder da PF rumo à Lapa, em São Paulo, e depois para Congonhas, onde embarcou para o Paraná. Ao cruzar esse "portal", deixou uma multidão de militantes órfãos de sua maior liderança. A eles, só restou confiar na promessa do ex-presidente em seu último discurso antes da prisão: "Quanto mais dias eles me prenderem, mais Lulas nascerão".