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Precisei de algumas horas para refletir a respeito do que ocorreu em São Bernardo do Campo

10 de Abril de 2018, 8:49 , por Bertoni - | No one following this article yet.
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Creio que agora posso relatar, como testemunha e participante dos atos que tentaram impedir a prisão do Lula. É necessário que os meus amigos entendam o que ocorreu e o que nos moveu a impedir que Lula se entregasse.

Lula 07042018

Por Sandro Caje

Pernoitamos no sindicato na sexta-feira. As pessoas que estavam desde quinta-feira dormiram e fiz parte do grupo que ficou em vigília. Exceto os irmãos do MTST, que são organizadíssimos, não havia nenhuma coordenação orientando os demais. As pessoas não seguiam nenhuma liderança, obedecendo apenas ao comando do próprio juízo. Durante a madrugada as pessoas caminhavam com extremo cuidado para não pisar nas pessoas que dormiam no chão, se cobrindo com blusas. Alguns conseguiam jornal e forravam o chão. Éramos, seguramente, pelo menos três mil pessoas ocupando todos os andares e o entorno do sindicato, durante a madrugada. Pela manhã chegaram mais pessoas. Enquanto acontecia a missa em lembrança ao aniversário de Dona Marisa, dei uma volta no quarteirão e vi que mais gente chegava. Muita gente. Não sei dizer quantas pessoas eram, só sei que era muita gente. Mas a multidão se dispersou após o pronunciamento de Lula. Anunciando que se apresentaria à Polícia Federal, a multidão se desfez em lágrimas e sentimentos, inclusive decepção.

Estou entre os que se decepcionaram. Esperava resistência e luta, mas a personagem que podia unir os políticos progressistas, os partidos de esquerda, os sindicalistas, os movimentos sociais e a população das quebradas estava desistindo de lutar para entregar-se ao inimigo. Entendo que Lula renunciou a um destino de luta e aceitou o calvário. É a escolha dele e respeito, porque só ele pode decidir como conduzir a vida dele. Isso não o minimiza como ser humano, nem sua história. Ele o fez com dignidade. Mas gostaríamos que ele tivesse acolhido o que todos nós que fomos a São Bernardo desejávamos: desafiar os corruptos que hoje operam dentro dos três poderes da república.

No momento em que toda a esquerda do mundo está com os olhos postos em São Bernardo, a negativa de Lula a Moro seria o divisor de águas entre passado e futuro. Todos sabemos que Executivo, Legislativo e Judiciário estão com Romero Jucá, Michel Temer, Aécio Neves e com a Rede Globo/Folha/Abril/Três etc. Era a oportunidade da ruptura com a ilegalidade que sequestrou o país com o golpe e, necessariamente, anunciar que Dilma continuava presidente do Brasil.

Guerra civil? Não haveria. Mas haveria revoltas. E haveria confrontos. Para recuperar a nossa soberania e a democracia, em qualquer tempo, precisaremos lutar. E muito. Não temos a capacidade que o inimigo teve ao produzir um golpe nos iludindo com a ladainha da imparcialidade do judiciário, com a honestidade dos juízes e com o bom senso filosófico dos ministros das cortes mais altas. Fomos enganados e os discursos no STF que assistimos ao vivo mostram claramente que o jogo é "... com o judiciário, com tudo".

Lutamos para que Lula ficasse no sindicato sem a menor dúvida de que chegariam caminhões de policiais com bombas, balas de borracha, balas de verdade, cassetetes, jatos d´água, bombas de gás e spray pimenta. Àquela altura já não importava o que pensavam Lula, os dirigentes do PT, os delegados da PF, o juiz mequetrefe de Curitiba e os ministros do STF. O que importava era sinalizar ao povo e, especialmente para o cidadão engajado na defesa da democracia, que temos o poder de interferir na narrativa política e histórica. Temos condição de agir e mudar. E, contrariando sábios do século XX, somos capazes de discernimento a respeito do que fazemos. Não somos a massa que os intelectuais de Frankfurt, Ortega Y Gasset, Cannetti, Baudrillard e outros diziam ser energia sem discernimento. Somos capazes de agir independentemente de lideranças, compreendendo perfeitamente o que fazemos. E por isso Lula não saiu do sindicato sem resistência.

Li nos portais de notícias algumas matérias escritas por gente que não estava em São Bernardo. Gente que seria escorraçada, como ocorreu com um jornalista da CBN. 90% do que foi publicado no UOL é fantasioso, tendencioso e irresponsável. Não é jornalismo, é estelionato contra o leitor. É enganação. Dizem que Lula não saiu porque estava usando-nos para impedi-lo de sair. É mentira! Posso testemunhar em qualquer momento, mesmo sob pena de sanções, que Lula não saiu, como pretendia, porque o impedimos. E nos organizamos para fechar os portões. O deputado Paulo Teixeira e outros dirigentes do PT vieram argumentar, pedir que abríssemos caminho e nós não apenas lhes dissemos que não abriríamos como anunciávamos que o controle da narrativa estava agora no nosso controle. Lula não sairia do sindicato antes das 18 horas e a PF não entraria após as 18 horas; nem antes. Nós, povo, que éramos centenas nos portôes, vimos chegar mais gente que já havia desistido após o pronuciamento e retornava para continuar a vigília.

Sabíamos que chegaria a polícia. Desde quinta-feira houve boatos nas redes sociais de que a tropa de choque estava a caminho de São Bernardo. Um ônibus que acidentalmente pegou fogo em Santo André circulou como notícia falsa atribuindo aos militantes pró-Lula o crime de incendiar o ônibus, mas agora em Santo Bernardo, não onde realmente ocorreu. Muitas mentiras, muita manipulação de informação e até gente infiltrada inventando relatos fantasiosos por meio do celular para as inúmeras redes. O boato de que o sindicato estaria cercado pela tropa de choque foi reforçado, ontem, pelos dirigentes petistas. Do alto de um carro de som, Gleisi Hoffmann, Luiz Marinho e um dirigente do MST disseram que lavariam as mãos caso a polícia chegasse para nos atacar. Olhei em volta e vi pais com crianças, idosos e trabalhadores que nunca tiveram uma experiência de sofrer um ataque com bombas e balas de borracha. Com os dirigentes petistas lavando as mãos e decididos a deixar que Lula se entregasse ao inimigos, foi o momento de refletir. Já era noite.

Dando uma volta no quarteirão, decidi que era melhor ir embora e deixar que as pessoas presentes decidissem com os petistas o que fazer. Estava com um amigo e refletimos. Estávamos entre os que guardavam os portões da rua sem saída. Enquanto dávamos a volta descobrimos duas vans brancas fechando a rua onde fica o estacionamento da TVT, sem interferir no trânsito de pedestres. Essas vans faziam parte dos carros que haviam ido buscar Lula, mas não sabíamos, porque a saída de Lula não havia ocorrido. Descobrimos que não havia nenhum cerco da tropa de choque. Os dirigentes petistas mentiram e distraíram as pessoas que estavam nos portôes, o que favoreceu a saída escoltada de Lula até o estacionamento onde estavam as viaturas da PF, que foram escoltadas por viaturas da PM de São Paulo e as vans brancas, que alguém disse ser também da PF ou da ABIN.

Sabíamos que Lula seria levado em algum momento. Mas o povo entendeu que Lula não devia se entregar. Lula corre riscos, preso num prédio da PF sobre o qual pesam suspeitas de ter agentes ligados à espionagem americana. Entendemos que Lula não deveria obedecer uma ordem de um juiz que pratica crimes e abusos sem que nenhuma instância do judiciário lhe ponha limites. Entendemos que nosso judiciário é tão corrupto quanto os outro poderes da república. Os votos de Fachin, Moraes, Barroso, Weber e Carmen Lúcia são um escárnio contra a humanidade, são um crime contra os direitos de todos os seres humanos do planeta.

Por que decidimos manter Lula o quanto fosse possível no sindicato? Porque precisávamos sinalizar para o mundo que mesmo com o mínimo direito ou poder de participar da narrativa histórica e política, temos a obrigação moral de interferir e intervir quando percebermos necessário. Mantivemos Lula preso porque não concordamos com os petistas e também não concordamos com ele. Enquanto ele e os petistas estavam preocupados com o agravamento da pena e com a punição de não poder concorrer à eleição de 2018, estávamos preocupados com a democracia e com os direitos de todo e qualquer cidadão. Se não concordamos com a prisão de Lula, não concordamos com a prisão de pessoas inocentes. Mais do que o direito de concorrer em uma eleição, o que nos move é o direito de viver em paz numa sociedade em que um policial, um delegado, um promotor, um juiz ou um ministro de tribunal superior não tenham o direito de prender ou matar alguém porque se consideram no direito de fazê-lo e uma constituição lhes permite. Foi esse o resultado do julgamento do Habeas Corpus de Lula no STF: os ministros afirmaram a si o direito de mandar prender um inocente. Mas esse inocente não é especificamente Lula: é todo cidadão brasileiro. Qualquer um de nós pode ser preso se um juiz assim determinar, mesmo que seja inocente, mesmo que não tenha cometido nenhum crime. Basta que o juiz justifique "tecnicamente": "... mandei prender o cidadão Fulano da Silva porque suspeita-se que esteja envolvido em crime de tráfico e corrupção, posto que chega a nosso conhecimento fotografia do mesmo celebrando premiação sorrindo desbragadamente com um conhecido traficante e corrupto que enriqueceu mediante carreira criminosa praticada durante décadas de usufruto de foro privilegiado".

Não é possível conceber, sob qualquer juízo e em perfeita sanidade espiritual e mental, que um inocente possa ser preso por ordem de um magistrado. A liberdade de um inocente é sagrada na democracia e só corre risco sob o regime do fascismo e da escravidão. O voto dos ministros que negaram o habeas corpus a Lula explicitam que qualquer inocente pode ser preso. Discordo e creio que todos os meus amigos e cidadãos que estavam em São Bernardo também discordam disso. Estávamos lá por Lula porque neste momento Lula está submetido a uma sanção que pode atingr cada um de nós. Não somos lulistas, nem somos militantes de partido político. Somos professores, operários, artistas, esportistas, ativistas, estudantes, ricos, pobres, classe-média, favelados, sem-teto, sem-terra, sem ninguém.

Temos consciência de que atrasando a prisão de Lula sinalizamos para o Brasil e para o mundo a necessidade de lutar e resistir contra o fascismo, contra a corrupção e contra a desinformação que hoje afeta uma parcela da população brasileira sensível às narrativas do fascismo. É entristecedor ver pessoas alfabetizadas que fazem o papel ridículo e ao mesmo tempo trágico de apoiar mentiras que ganharam consistência trágica na Alemanha nazista. Falta discernimento e falta conhecimento histórico dos fatos e das suas decorrências.

Estamos vivendo um período dramático e é possível que novamente o fascismo prospere e vença novamente. Se isso acontecer, em 20 anos o Brasil será um país branco. Não se iludam com Joaquim Barbosa e Luislinda Valois. O Brasil nunca foi, não é e não será um país para negros, indígenas e mestiços. A prisão de Lula sinaliza poder para punir quem se atreva a desafiar o projeto de embranquecimento e de dominação política do Brasil. A reduzidíssima elite do Brasil e seus lacaios farão tudo o que for necessário para a manutenção do Estado Colonial, que dominam e controlam com mão de ferro e sem mostrar a cara. Gente das trevas da história, povo que se move na escuridão. Mas que sairá à luz quando o primeiro proletário arremessar suas tochas nos seus covis.

Que o Brasil prospere. Que a justiça não falhe.

Nota desta edição: Este texto foi sugerido por @pdralex no twitter e decidi reproduzi-lo aqui, pois infelizmente o Sandro Caje o publicou naquela rede norteamericana envolvida no vazamento de dados pessoais de centenas de milhões de usuários


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