A relação de poder entre as forças do capital, por um lado, e as forças do trabalho, por outro, é determinante na distribuição dos rendimentos de um país. A evidência de que isto é assim é esmagadora, contudo, o leitor raramente lê-lo-á nos maiores meios de informação.
As desigualdades na maioria de países dos dois lados do Atlântico norte, na América do Norte e na União Europeia, têm crescido enormemente, atingindo níveis nunca vistos desde princípios do século passado, quando teve lugar a Grande Depressão. Este crescimento tem sido particularmente acentuado nos países conhecidos como PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha), que se convertem em GIPSI quando se acrescenta Itália.
O que justifica este crescimento tão notável?
Existe já toda uma extensa bibliografia que tenta explicar este facto. Uma síntese das diferentes razões apresentadas aparece no discurso que o Prémio Nobel de Economia, James Alexander Mirrlees, deu aquando da sua entrada na Real Academia de Ciências Económicas e Financeiras, que foi publicado no La Vanguardia em 23 de março de 2014. É um resumo do que constitui a sabedoria convencional no conhecimento económico atual. O problema que implica e reproduz este conhecimento hegemónico é que ignora o contexto político, que condiciona e determina o conhecimento económico.
Por exemplo, uma das explicações apresentadas com maior frequência para explicar a diminuição dos salários (uma das maiores causas do crescimento das desigualdades) é a globalização económica, com a mobilidade de capitais que se deslocam para países de baixos salários para embaratecer os seus produtos. Mas esta explicação ignora que os países escandinavos como a Suécia ou a Noruega, por exemplo, estão entre os países mais globalizados do mundo. Isto é, somando as suas exportações e importações atingem-se das mais altas percentagens do PIB de todo o mundo. Devido ao seu pequeno tamanho, a economia destes países está enormemente integrada e globalizada. E, em contrapartida, os seus salários estão entre os mais elevados do mundo. E isso deve-se ao facto de o mundo do trabalho e os seus instrumentos políticos e sindicais serem muito fortes e exercerem uma forte influência sobre os seus Estados.
Estes dados mostram que não é a globalização económica em si, senão a maneira como se realiza tal globalização, que determina o nível salarial. Por outras palavras, são as variáveis políticas (o que se chama o contexto político) que determinam o fenómeno económico (e não o inverso). Esta realidade é constantemente esquecida, inclusive por autores progressistas, como Christian Felber, que, no seu conhecido livro “A economia do bem comum” mal toca o contexto político, reduzindo o seu livro a um tratado de engenharia económica sem considerar as variáveis políticas que fariam possível a sua realização.
Por que os indicadores de desigualdade que se utilizam não nos servem para entender a desigualdade
Esta ignorância ou desconhecimento do contexto político tem levado à criação de umas ciências económicas que nos limitam no entendimento das desigualdades. Comecemos pelo estudo dos indicadores de desigualdade. O mais comum para medir as desigualdades de rendimento é o coeficiente de Gini, que tenta medir o nível de desigualdades mediante um valor que vai de 0 a 1. 0 quer dizer igualdade completa e 1 desigualdade total. Em general, o Gini é mais baixo nos países escandinavos que nos países PIGS ou GIPSI.
Ora, sem negar que este indicador possa nos ser útil, a realidade é que a informação que nos proporciona é muito limitada, pois não nos indica por que este nível está onde está nem por que varia. Para poder entender e, portanto, medir melhor as desigualdades, há que começar por entender de onde procedem os rendimentos. E as duas fontes mais importantes são a propriedade do capital, por um lado, e o mundo do trabalho, por outro. Isto é, a desigualdade na distribuição dos rendimentos depende primordialmente da distribuição da propriedade do capital e da distribuição dos rendimentos do trabalho. A relação de poder entre as forças do capital, por um lado, e as forças do trabalho, por outro, é determinante na distribuição dos rendimentos de um país. A evidência de que isto é assim é esmagadora, contudo, o leitor raramente lê-lo-á nos maiores meios de informação.
Na realidade, este facto é uma das razões que explica a falta de atenção (quando não aberta hostilidade) que o tema das desigualdades tem dentro do que se chamam “ciências económicas”. Como disse há uns anos o Prémio Nobel de Economia Robert Lucas (membro do conselho científico de um dos centros mais importante e prestigiados de investigação económica em Espanha, a Barcelona Graduate School of Economics) “uma das tendências perniciosas e perigosas no conhecimento económico… na realidade, venenosa para tal conhecimento, é o estudo de temas de distribuição” (Robert Lucas, “The Industrial Revolution: Past and Future”. Annual Report 2003 Federal Reserve Bank of Minneapolis, May 2004).
Aos economistas próximos ao capital incomoda-lhes que se pesquisem as causas das desigualdades pois a evidência científica mostra que a principal causa do seu crescimento tem sido, precisamente, o enorme crescimento dos rendimentos do capital à custa dos rendimentos do trabalho, feito que é consequência do grande domínio das instituições políticas e mediáticas por parte do capital, domínio que tem diluído e violado o carácter democrático das instituições representativas dos países onde o crescimento das desigualdades tem tido lugar (ver o excelente livro Capital in the Twenty-First Century, de Thomas Piketty, 2014).
Além disso, o protagonismo do capital financeiro (e muito em particular da banca) dentro do capital, juntamente com a diminuição dos rendimentos do trabalho, gerador da redução da procura, explica o comportamento especulativo desse capital, origem da enorme crise, tanto financeira como económica (e, portanto, política), que estamos a viver. O leitor pode assim entender por que o Sr. Lucas e um grande número de economistas próximos ao capital não querem nem sequer ouvir falar de temas de desigualdades, porque, por pouco que se olhe, vê-se claramente a origem de tanto sofrimento que as classes populares estão a padecer, que não é outro senão o enorme domínio que o capital tem sobre as instituições do Estado.
A concentração do capital
Permitam-me que me estenda nestes pontos. É bem sabido que a propriedade do capital está bem mais concentrada que a distribuição dos rendimentos. Assim, os 10% da população, na sua maioria de países da OCDE (o clube de países mais ricos do mundo), têm mais de 50% da propriedade do capital. Em Espanha, um dos países com maior concentração, tem ao redor de 65% (tabela 7.2 no livro de Piketty). Por outro lado, a metade da população no seu conjunto não tem nenhuma propriedade: em realidade, está endividada. Desta concentração deriva-se que quanto maior é a percentagem dos rendimentos que derivam do capital, maior é a desigualdade na distribuição dos rendimentos. Costuma-se dizer que quanto maior poder tem a classe capitalista (termo que já não se utiliza por ser considerar “antiquado”), maiores são as desigualdades num país.
Naturalmente que estas desigualdades entre o mundo do capital e o do trabalho não são as únicas que explicam as desigualdades de rendimentos num país. Mas são as mais importantes. Seguem-lhes as desigualdades dentro do mundo do trabalho, que se refletem predominantemente na extensão do leque salarial. Mas inclusive estas dependem das forças provenientes do capital. Quanto maior é o poder da classe capitalista, maior é a dispersão salarial, feito que a economia convencional atribui à sua ênfase em estimular a eficiência económica, ainda que a evidência científica mostre que não há nenhuma relação entre dispersão salarial e eficiência económica. Na realidade, algumas das empresas mais eficientes (como as cooperativas do grupo Mondragón) são as que têm menor dispersão salarial. O objetivo desta dispersão não é económico senão político: o de dividir e, portanto, debilitar o mundo do trabalho.
Esta observação, na realidade, explica as limitações daqueles autores que cingem a definição do problema ao 1% da sociedade, slogan gerado pelo movimento Occupy Wall Street e que tem sido importado para Espanha. O sistema económico é sustentado precisamente pelos 9% que se encontram no escalão de rendimentos seguinte, que obtém os seus rendimentos do trabalho, mas cujo poder e permanência dependem da sua vassalagem ao 1%. Os grandes gurus mediáticos, por exemplo, recebem salários elevadíssimos cuja quantia não decorre da sua competência ou eficiência, senão de sua função reprodutora dos valores que favorecem os interesses de 1%.
Em conclusão, as causas das desigualdades são políticas e têm que ver predominantemente com o grau de influência política que os proprietários do capital têm sobre os Estados. Quanto maior é a sua influência, maior é a desigualdade social. O facto de estas tenham crescido enormemente desde os anos 80 deve-se à mudança política realizada pelo Presidente Reagan e a Sra. Thatcher – a revolução neoliberal –, que foi e é a vitória do capital sobre as forças do trabalho, vitória que continua devido à incorporação dos partidos de centro esquerda governantes no esquema neoliberal promovido pelo capital. A cada uma das políticas neoliberais (cortes da despesa pública e transferências sociais, a desregulação do mercado de trabalho, o debilitamento dos sindicatos, a descentralização e individualização das convenções coletivas, a redução de salários e outras medidas) repercute no benefício do capital e na sua concentração às custas dos rendimentos do trabalho. São políticas claramente de classe que não se definem com este termo por se considerar “antiquado”. É precisamente resultado da enorme influência do capital que tal terminologia se considera antiquada. É previsível que os porta-vozes do capital assim o apresentem, mas é suicida que os porta-vozes das esquerdas, em teoria próximas às classes populares, também considerem estes termos antiquados. Confundem antigo com antiquado. A lei da gravidade é antiga mas não é antiquada. Se tem dúvidas, é fácil comprová-lo: salte de um quarto andar e vê-lo-á. E isto é o que está a ocorrer com grande número das esquerdas dirigentes em Espanha e na Europa. Estão a cair do quarto andar e ainda não se deram conta do porquê. Agradeço ao leitor que lhes envie este artigo.
(Por Vicenç Navarro no diário PÚBLICO em 27 de março de 2014)
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Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
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