Índio urbano, pintado por Élon Brasil |
Continuando a série Tupi Guarani Nheengatu, também motivado pelos absurdos argumentos que tenho ouvido nos últimos dias, a respeito da Aldeia Maracanã, publico um artigo para a reflexão de todos, livre de preconceitos e clichês que servem aos interesses capitais e exploratórios.
Título: Índios urbanos no Brasil
Autor: Gilvan Müller de Oliveira
Considerações demográficas, educacionais e político-lingüísticas
Introdução
O Brasil é um país de oito milhões e meio de quilômetros quadrados com uma população de aproximadamente 170 milhões de habitantes, dos quais somente 16 milhões vivem no campo. A população rural continuava sendo, no início dos anos 90, a mesma de 1950 (IBGE, Censo de 1991). Os outros 154 milhões vivem hoje em 5.507 núcleos urbanos – cidades – que vem a ser sede de municípios, o que demonstra o rápido processo de uranização por que o país passou nos últimos 50 anos.
A população indígena, assunto deste artigo, constitui uma minoria de cerca de 350 mil pessoas, ou 0,2 % da população total. São os sobreviventes dos aproximadamente quatro milhões de índios que se calcula que viviam no que é hoje o território do Brasil em 1500. As contínuas guerras contra os índios, inclusive até a segunda metade do século XX (Leonardi, 1996) reduziram seu número a uma fração da original. Some-se a isso o conhecido efeito das doenças e da desestruturação da base territorial e econômica dos povos indígenas e que conduziram à essa grande depopulação.
Para estabelecer um termo de comparação, há no Brasil uma população afro-descendente de 62 milhões de habitantes (Censo por Domicílio, 1996), a mais importante população afro-descendente fora da África. Todavía, enquanto os 62 milhões de afro-descendentes são monolíngües em português (em diversas variedades), ou seja, não falem em comunidade nenhuma língua africana (exceto em rituais religiosos), os índios falam cerca de 170 línguas distintas, a maioria delas agrupadas em quatro grandes troncos lingüísticos: Tupi, Jê, Aruak e Karib (Rodrigues, 1986).
A política do estado português, e depois do estado brasileiro que o sucedeu pari passu, foi desde sempre a de integração do índio à sociedade conformada por este mesmo estado. Para ‘integrar’ o índio foi necessário negar-lhe a possibilidade de que permanecesse índio. Indio – ou mais propriamente uma das muitas identidades étnicas específicas que o colonizador chamou por este termo genérico – passou a ser, por esta via, uma categoria provisória, destinada irremediavelmente a desaparecer no processo de construção da nação: ainda há índios, mas chegará o dia em que os índios, integrados à Nação, desaparecerão como grupos étnicos, momento em que haverá somente ‘brasileiros’. Isto está manifesto de forma dispersa na legislação que trata do assunto.
O processo de urbanização, ligado à emergência ou aceleração de outros fenômenos sociológicos aparentemente característicos da atual fase histórica do capitalismo mundial, como as migrações e as transnacionalizações, não atingiu apenas as populações “integradas” às sociedades nacionais, mas também os grupos étnicos minoritários. Embora exemplifiquemos a seguir exclusivamente com o caso brasileiro, populações indígenas de toda a América Latina encontram novos territórios nas cidades. Utilizamos aqui o termo território porque as cidades não são um não-território, fato sobejamente reconhecido pelos geográfos que estudam teoricamente esse conceito, mas são antes novas formas de territorialidade, constituídas, segundo a definição de Rogério Haesbaert, segundo uma lógica reticular:
(...) associamos às concepções de territorialização e desterritorialização os conceitos de território, rede e aglomerados de exclusão.(...) partimos de uma análise geográfica que se concentra em duas “lógicas espaciais” mais amplas, distintas mas indissociavelmente articuladas – uma de caráter mais horizontal ou em superfície, que tenta “preencher” toda uma área interna a determinadas fronteiras; e outra de caráter mais vertical ou em pontos e linhas, que se articula em forma de redes que nunca “preenchem” totalmente os espaços em que se manifestam. Enquanto Berque (1982) denomina a primeira de “lógica areal” e a segunda de “lógica linear”, optamos por denominá-las, respectivamente, lógica territorial e lógica reticular.(Haesbaert, 1994: 12)
Trata-se na verdade não apenas de territórios, cricunscritos e relativamente isolados, mas também de redes, na medida em que se percebe que a sobrevivência (...) depende dos contatos entre diferentes reservas. (...) Se a globalização só se ativa e se fortalece, como vimos, através de um emaranhado de redes cada vez mais amplas e complexas, nem por isso estas desempenham apenas um papel desterritorializador: elas podem muitas vezes, quando subordinadas a determinados limites ou fronteiras, fortelecer a coesão interna de um ou de vários territórios. (idem: 14)
Essa interpretação de território como redes reticulares e do movimento migratório das minorias para as cidades, do novo lugar que ocupam no país e no mundo globalizado ou em globalização, permite compreender um outro fenômeno, qual seja, o da alteração profunda na natureza das reivindicações dos povos indígenas no contexto nacional. É o que demonstra Rainer Enrique Hamel (2001:xx) para o caso dos direitos lingüísticos:
O tema dos direitos lingüísticos surge e adquire força no contexto das profundas transformações que vive o planeta. Nas últimas duas décadas presenciamos dois movimentos que, na aparência, se movem em direções opostas, mas que no fundo formam parte de uma única realidade: por um lado a acelerada globalização que se caracteriza por uma integração cada vez maior dos capitais, o comércio, a divisão mundial do trabalho, as tecnologias e os meios de comunicação; por outro, a crescente afirmação de uma diversidade cultural, étnica e lingüística, que em tempos anteriores parecia sucumbir sob a pressão homogeneizadora dos Estados nacionais. Ambos os processos nos obrigam a repensar nossas escalas de percepção e análise, dado que a tradicional divisão entre o local, o nacional e o global (ou internacional) já não se sustenta (cf. García Canclini, et al. 1994). Observamos o surgimento de terceiras culturasdesterritorializadas como a nova cultura empresarial, a eletrônica, a ecologia e múltiplas expressões de sincretismos e hibridações (cf. Rosas Mantecón, 1993). Seria errôneo, entretanto, entender o surgimento de terceiras culturas como a materialização de uma lógica que aponta somente à homogeneização. Para não cairmos nesse erro temos que abandonar as dicotomias bipolares mutuamente excludentes de homogeneidade-heterogeneidade, integração-desintegração, unidade-diversidade. Ao contrário do que elas expressam, a vertiginosa mundialização nos sugere conceitualizar a cultura global “em termos de diversidade, variedade e riqueza dos discursos, códigos e práticas populares e locais que resistem e contestam (“play-back”) a sistematicidade e a ordem” (Featherstone, 1999)Já não é possível compreender a diversidade como uma tenaz resistência à mudança, como um entrincheiramento das minorias nas suas zonas de refúgio. Hoje em dia as suas reivindicações se formulam em termos dos direitos modernos, tanto em países industrializados como em periféricos, e os movimentos dos subordinados se apropriam cada vez mais dos temas nacionais e globais.
A urbanização da população indígena, processo cada vez mais forte e que chega cada vez mais às cidades ‘centrais’ do país – como São Paulo ou Brasília – cidades já ‘desindianizadas’, mais distantes das terras indígenas mais povoadas – foi interpretada na na chave da integração: índio na cidade já não é mais índio e a integração à nação está completa. A cidade é, assim, o espaço por excelência da nação e portanto donão-étnico:
“O não reconhecimento da população indígena [na cidade de Manaus], decorre do entendimento que perpassa o senso comum de que “na cidade, índio mesmo não tem, é tudo índio manso, domesticado”. Essa visão, como assinala Fígoli, decorre da concepção de que a presença do índio na cidade só é possível a partir de uma completa transformação, que pressupõe a ruptura incondicional com o preexistente configurado com o abandono do lugar. Desligar-se do lugar não significa apenas o afastamento de uma dimensão espacial, representa também o abandono do universo sócio-cultural, e portanto, de sua identidade. Essa postura exerce sobre os indígenas uma pressão ideológica de desvalorização” (Oliveira et allii, 1996,2)
Esta política de integração do índio a uma ‘nação sem etnias’ mudou oficialmente com a Constituição Federal de 1988, que reconheceu a estes povos direitos sobre suas terras, mas também direito a sua cultura e a suas línguas (C.F.B., art. 210 e 231). Os índios passaram a ser vistos, oficialmente, como um elemento constitutivo da sociedade brasileira e não mais como categoria provisória: a sociedade se dá conta, surpresa, que os índios - as sociedades indígenas - estarão aqui no futuro.
Esta mudança política, que na atualidade ocorre em muitos países da América Latina e que se faz acompanhar de uma lenta mudança de mentalidade da população dita ‘nacional’ (ou seja, não-indígena) obriga a uma reconsideração sobre o estatuto da população indígena urbana: esta população não deixou de ser índígena porque está nas cidades. Os conceitos utilizados pela Fundação Nacional do Indio (FUNAI) para descrever aos indígenas fora das suas terras tradicionais - índios destribalizados ou desaldeados – já não bastam para a realidade do país. Tornam-se visíveis ‘aldeias urbanas’, onde povos indígenas específicos, com enormes dificuldades econômicas, conseguem manter suas redes de sociabilidade em meio a uma esmagadora maioria não-indígena. Para além do novo conceito de índio urbano, introduziu-se também o conceito de índio citadino para descrever aqueles que, embora não fixados de forma permanente nas cidades, como os urbanos, passam períodos mais ou menos longos na urbe, em uma transumância estável, como é o caso dos Xokléng de Blumenau (xxxxx, 1999).
Uma busca na imprensa revela muitos artigos sobre a população indígena urbana na última década, em cidades como Campo Grande, Manaus, Boa Vista, São Paulo, Cuiabá, Florianópolis e outras, ainda que não existam dados seguros sobre os índios urbanos. Variam os números das estimativas de 26.000 (dados oficiais da Fundação Nacional do Indio) a 50.000 (pelos dados do Departamento de Assistência da mesma Fundação). Pela debilidade da base de dados disponível, entretanto, assume-se que a população indígena urbana pode chegar facilmente a 100 mil indivíduos, ou mais de um quarto da população indígena total, o que bem demonstra a importância desses territórios urbanos e das lutas urbanas no contexto do movimento indígena no país.
No estado de Goiás, segundo dados do IBGE, - em uma situação que é o inverso de outros estados - vivem 2.400 índios nas cidades contra 203 índios em três aldeias: a população urbana é mais que dez vezes a população nas aldeias. Em Manaus variam os dados de 10.000 a 30.000 índios (CIMI). Campo Grande é o lar de cerca de 5.000 índios Terena urbanos. Boa Vista tem uma população indígena de cerca de 12.000 índios, sobretudo Macuxi e Wapixana. Em São Paulo vivem Guarani, mas também Pankararu do nordeste brasileiro, que estão a milhares de quilômetros das suas comunidades originais em Pernambuco. Além da população nas grandes cidades, é importante ainda considerar as comunidades indígenas que vivem em cidades pequenas e médias por todo o país, uma das quais será apresentada de forma mais detalhada neste texto.
Até o momento esta população, entretanto, praticamente não conta com políticas públicas – educação, saúde – atentas à sua especificidade. Enquanto o estado brasileiro formula ou tenta formular políticas públicas, com audiência das comunidades indígenas, para os índios que vivem em territórios indígenas, nenhuma política vem sendo formulada para os indígenas urbanos, já que eles ‘oficialmente’ não existem.
Os índios urbanos e a educação escolar indígena
Observemos o caso específico da educação. Nos anos 90 se instaurou uma nova concepção de educação escolar indígena no país, decorrente da nova postura del estado frente aos povos habitantes deste território. Movimentou-se no sentido de deixar de ser uma educação para o índio, funcionando como um instrumento de imposição de conteúdos ocidentais a partir da perspectiva do estado,para se voltar à possibilidade de ser a expressão dos interesses de cada povo: cada povo tem direito à formulação própria do seu currículo escolar, o que pode fazer da escola expressão dos projetos de futuro destas sociedades, em sua especificidade, dentro da sociedade brasileira. Isso é o mesmo que dizer que a escola se transforma ou pode (logicamente) se transformar em instrumento dos povos indígenas na formulação de suas estratégias de sobrevivência e de luta política (por seus direitos como povos minoritários e historicamente espoliados).
Emerge daí a posibilidade de uma política lingüística formulada por cada povo indígena (ou fração deste povo, já que povos indígenas não agem necessariamente como uma unidade) em vista do seu projeto de futuro: manter sua língua indígena, transformá-la ou não em uma língua escrita, desenvolver novos campos de uso (no campo lexical ou terminológico, por exemplo), ensinar o português na perspectiva de desenvolver um bilingüismo aditivo, ensinar uma língua estrangeira, etc. As decisões tomadas neste momento, e a competência em formular e executar as políticas lingüísticas e educacionais decorrentes destas decisões podem significar a diferença entre o desaparecimento e a manutenção das línguas indígenas no futuro. Os estados federados, responsáveis legais pela educação escolar indígena, devem então reconhecer as propostas curriculares formuladas e apoiar sua implantação com recursos do orçamento.
Esta política educacional, com sua contraparte em uma política lingüística e em uma política cultural, está sendo gerada em várias experiências de escolas indígenas diferenciadas, bilíngües, interculturais, com professores indígenas, hoje em processo de expansão entre vários povos em diversas regiões do país. São agora, segundo o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (1998), documento do Ministério da Educação do Brasil, 1.591 escolas indígenas com 76.293 alunos. 94% destes alunos estão em uma das quatro séries iniciais de escolaridade (primeira parte do ensino fundamental), e daí se pode deduzir o enorme potencial de expansão do sistema nos próximos anos.
Isso aponta para o desenvolvimento de um modelo de gestão da diversidade étnica, cultural e lingüística, em que o estado não formula um programa para todas as etnias, mas apoia à formulação própria. Mesmo com todas as limitações a que esta política está sujeita pela tradição centralista e impositora do estado brasileiro em geral e do MEC em particular, bem como pela falta de quadros de especialistas – em política lingüística, por exemplo – que tenham compreensão do processo em curso, obteve-se um avanço sobre a forma como se concebia anteriormente o oferecimento deste serviço público aos cidadãos indígenas. Esta política, entretanto, está concebida e parcialmente em execucão nas Terras Indígenas (T.I.) – as antigas ‘reservas indígenas’ – mas não, até o momento, nas cidades.
Alguns fatos apontam para a crescente percepção do fenômeno de urbanização aqui descrito. Um deles, de amplas conseqüências culturais e político-lingüísticas para a educação escolar indígena, foi a aprovação da resolução número 03 do Conselho Nacional de Educação, de 10 de novembro de 1999, que, em seu artigo segundo, abre posibilidades de oferecimento de educação indígena bilíngüe onde estiver a população, seja nas terras indígenas tradicionais seja nas cidades. Diz o artigo 2º:
Art. 2º Constituirão elementos básicos para a organização, a estrutura e funcionamento da escola indígena:I - sua localização em terras habitadas por comunidades indígenas, ainda que se entendam por territórios de diversos Estados ou Municípios contíguos;II - exclusividade de atendimento a comunidades indígenas;III – o ensino ministrado nas línguas indígenas;IV – a organização escolar própria;Parágrafo Único. A escola indígena será criada em atendimento à reivindicação ou por iniciativa de comunidade interessada, ou com a ausência da mesma, respeitadas suas formas de representação.
Mais explícita ainda foi a resolução número 011 do Conselho Estadual de Educação do Amazonas, aprovada em 07 de fevereiro de 2001. O Amazonas é o estado brasileiro em que vive o maior número de povos indígenas – 54 – e foi o primeiro estado a ‘atualizar’ sua legislação para adequá-la à resolução 03 de CNE. Embora o artigo 1º do documento defina ‘Terra Indígena’ e condicione o oferecimento de educação escolar às áreas demarcadas ou em processo de demarcação, as disposições gerais e transitórias apresentam as seguintes possibilidades:
Art. 18 – Em caráter especial, o Sistema Estadual de Educação ou Sistema Municipal de Educação, quando solicitado, assegurarão Educação Básica à população indígena desaldeada, garantindo os mesmos direitos constitucionais vigentes às localizadas em terras indígenas.Parágrafo Único – O cumprimento das condições estabelecidas neste Artigo dar-se-á desde que as comunidades demonstrem interesse, sejam organizadas e possuam população escolarizável de Educação Básica.
Num país com forte tradição formalista e legalista como o Brasil somente as leis levam o aparato oficial de educação (ministério, secretarias estaduais e municipais) a criar e manter programas de ação. Neste sentido, a instituição de uma lei desta natureza aponta para a possibilidade de oferecimento de educação escolar indígena nas cidades, programa com a qual não se tem, entretanto, nenhuna experiência anterior no país.
Sabemos que ocupar espaço na cidade - ter visibilidade na cidade - é importante para a manutenção das línguas indígenas no espaço rural: o prestígio que emana das cidades se transfere para as línguas. A ‘urbanidade’ das línguas indígenas pode lhes conferir renovado prestígio nos seus territórios tradicionais, o que pode frear ou desacelerar os processos de deslocamento pelo português atualmente em curso em um grande número de casos. Apoiar as comunidades indígenas citadinas e a utilização das suas línguas nos espaços institucionais urbanos pode ser uma política lingüística decisiva para os povos indígenas interessados na manutenção das suas línguas e, em última análise, da sua identidade étnica.
As cidades são signos de dominância sobre um espaço geográfico: sua tomada ou ocupação por uma língua, que se torna veicular, vale pelo domínio sobre os nós de comunicação que a cidade controla, pela sua capacidade de impor, sobre o campo, seus hábitos lingüísticos, pelo grau de sofisticação desta comunicação, que fornece aos falantes do campo modelos de conduta (lingüística e não-lingüística). Dominar a cidade é, assim, a operação de constituição de uma dupla hegemonia e talvez signifique mais como dominação do campo subordinado ao núcleo urbano que propriamente pelas relações internas aos muros da urbe. Para além dessa dominância, porém, possível apenas em situações de maioria como a que analisaremos a seguir, a urbanização pode ser um dos elos na constituição de redes territoriais ou de territórios reticulares, na definição de Haesbaert, instrumentos modernos e eficientes para a articulação política das minorias étnicas
São Gabriel da Cachoeira: uma cidade plurilíngüe
São Gabriel da Cachoeira é uma cidade no centro da região mais plurilíngüe do Brasil, o Alto Rio Negro, no estado do Amazonas, nas fronteiras do país com a Colômbia e a Venezuela. O núcleo urbano tem cerca de dez mil habitantes e domina uma região de 112.000 Km², maior portanto que Portugal ou o estado de Santa Catarina, com 409 aldeias nas quais funcionam 165 escolas indígenas bilíngües de ensino fundamental (de 1ª a 4ª séries). É um caso pouco ‘típico’ no país (se se pode utilizar tal conceito) mas que servirá para apresentar um caso concreto de plurilingüismo urbano e para pensar a formulação de políticas públicas nas cidades, incluindo-se aqui também a política lingüística. A seguinte ‘configuração orbital’ no Alto Rio Negro reproduz a relação entre as línguas da região:
Esta primeira figura apresenta algumas das 21 línguas do Alto Rio Negro, incluindo-se nesse número as línguas oficiais dos dois lados da fronteira, o português e o espanhol, em uma configuração orbital como a sugerida por Calvet (1999). O português ocupa, do lado brasileiro da fronteira, o centro do sistema orbital como língua oficial e como língua veicular urbana principal. Outras três línguas, entretanto, destacam-se como línguas de intercomunicação nas bacias dos três rios mais importantes da região: o Nheengatu no rio Negro, o Baniwa no rio Içana e o Tukano no rio Vaupés. Constituem o que poderíamos chamar de ´Sistema Rio Negro’, dadas as fortes relações que estas comunidades lingüísticas mantêm entre si, enquanto que o grupo falante de Yanomami que vive nas montanhas ao norte do território, praticamente isolado desse primeiro sistema, constituiria o que chamaríamos de ´Sistema Pico da Neblina’.
A apresentação das línguas do ‘Sistema Rio Negro’ em uma ‘grade de Chaudenson’, que aponta a relação entre o status (o prestígio relativo em relação a outras línguas) e o corpus (quantidade de falantes) das línguas, levaria aproximadamente ao seguinte desenho:
A cidade de São Gabriel da Cachoeira recebe uma grande quantidade de migrantes das aldeias indígenas de toda a região, especialmente do grupo linguístico Tukano ou de falantes de outras línguas da família tukano oriental. Brandhuber (1999), estudando as causas das migrações – e da urbanização – dos tukano, ressalta os conflitos internos às aldeias como um dos fatores mais relevantes para esses movimentos, ainda que também a busca de serviços básicos, como a educação escolar para além das quatro séries iniciais e o atendimento de saúde sejam razões fortes para a transmigração para as cidades. Os indígenas são maioria na população do município – constituindo-se em mais de 95% do total – fenômeno que se repete no núcleo urbano.
Ainda que não existam até o momento os instrumentos capazes de dar um diagnóstico sociolingüístico detalhado de São Gabriel da Cachoeira, o estudo de Odile Renault-Lescure (1990) nos traz uma análise de um grupo urbano específico, o dos alunos das escolas urbanas, descrevendo suas práticas lingüísticas domésticas. O estudo toma como universo 457 jovens que estudam da 5ª série do ensino fundamental até o final do ensino médio, ou seja, jovens com idade compreendida entre 11 e 18 anos (mas alguns com mais de 20 anos) nas únicas duas escolas que existiam na época no núcleo urbano da cidade (mas não no município inteiro, já que havia 123 escolas ‘rurais’ em funcionamento).
Sua pesquisa trouxe os seguintes dados sobre o repertório lingüístico dos jóvens de São Gabriel:
Línguas
|
Línguas Faladas
1ª
|
2ª
|
Línguas Compreendidas
|
Português
|
390
|
67
|
-
|
Espanhol
|
1
|
21
|
84
|
Língua Geral
|
27
|
87
|
141
|
Tukano
|
36
|
29
|
62
|
Tuyuka
|
-
|
1
|
-
|
Wanano
|
2
|
1
|
5
|
Desano
|
-
|
-
|
5
|
Piratapuya
|
1
|
2
|
11
|
Kubeo
|
-
|
1
|
2
|
Baniwa
|
-
|
3
|
10
|
Tariano
|
-
|
1
|
4
|
Baré
|
-
|
-
|
1
|
Renault-Lescure, Odile (1990), p.317
Esta tabela aponta para o fato de que 66 alunos (14,44%) falam uma língua indígena como língua primeira, enquanto que 125 (27,37%) falam uma língua regional como segunda língua. Some-se a isto o fato de que 241 (52,73%) têm conhecimento passivo de uma destas línguas. Considerando a estrutura do pluringüismo rionegrino, é de se supor que uma parte dos informantes é monolíngüe em português e que a outra parte fala ou entende duas ou três outras línguas: não está claro o suficiente no trabalho de Renault-Lescure se os falantes podem a mesmo tempo responder que falam uma língua indígena e que têm conhecimento passivo de outra. Por uma interpretação ‘exclusiva’, ou seja, de que são alunos diferentes que respondem em um e em outro caso, teríamos 432 alunos que falam ou entendem uma língua indígena - ou 94,5% - porcentagem demasiadamente alta se consideramos que uma parte dos alunos são filhos de militares e funcionários ou de comerciantes vindos de outras partes do Brasil.
Esta amostra de Renault-Lescure é importante porque nos dá dados de um universo particularmente adverso às línguas indígenas: os falantes das línguas rionegrinas estão sub-representados entre a população escolarizada urbana (ou em escolarização), ou dito de outra forma: está sobre-representada nesta amostra a população ‘branca’ sem raízes locais. Na cidade de forma general, portanto, as línguas indígenas, especialmente o Nheengatu e o Tukano, devem ser mais faladas e entendidas que na porcentagem apresentada pela pesquisa citada. O Nheengatu foi já a língua veicular de São Gabriel da Cachoeira (e de toda a Amazônia brasileira) e atualmente recua ante o domínio crescente do português na região, que é o seu último bastião, enquanto que o Tukano é uma língua em expansão, seja sobre os territórios tradicionais das outras línguas rionegrinas no alto curso dos rios (por exemplo o rio Tiquié) seja em territórios de ocupação nova, como o Balaio, na rodovia que liga São Gabriel da Cachoeira com a localidade fronteiriça de Cucuí, seja ainda na cidade mesmo, como pode ser deduzido de rápida ênquete realizada num bairro novo de São Gabriel em julho de 2000, dez anos depois da investigação de Renault-Lescure.
Ainda que a população indígena esteja dispersa por toda a área urbana, três bairros podem ser considerados essencialmente indígenas: o Dabaru, o Areial e o Tirirical. O último não é propriamente um bairro – não tem estatuto jurídico de bairro – mas um ‘enclave’ indígena entre o rio e terras da Força Aérea Brasileira, que tolera esta ocupação. Os outros dois são fruto da política pública de doação de ‘lotes’ a indivíduos – sem distinção de qualquer natureza, se índígenas ou não-índígenas – por parte da prefeitura municipal, fato que possibilitou a expansão da cidade e a urbanização de centenas de famílias indígenas que, de outra forma, não teriam podido vir, já que não teriam tido recursos para comprar um terreno. A ocupação do Dabaru é do começo dos anos 90 e a do Areial começou em 1997.
O plurilingüismo regional se reproduz nestes bairros. A distribuição aleatória de terrenos, entretanto, sem critérios étnicos ou de procedência, cria novas ‘vizinhanças’ de línguas, diferentes das ‘vizinhanças’ lingüísticas nas terras tradicionais. A amostra apresentada a seguir, do bairro do Areial, aponta para práticas de continuidade lingüística entre as famílias do bairro, cada uma mantendo sua língua (a língua paterna) na comunicação com a família nuclear. É necessário dizer, entretanto, que as famílias chegaram das suas comunidades há não mais que dois anos, algumas há apenas alguns meses e que ainda não houve tempo suficiente para que possamos falar de uma verdadeira ‘integracão’ à cidade. Não é possivel ainda sabermos se estas práticas linguísticas sobreviverão ou perecerão na cidade.
Duas famílias foram focalizadas para exemplificar a situação lingüística no bairro Areial.
Neste caso o entrevistado é um tukano que fala em casa a língua Tukano (a casa central do desenho) e que está há um ano meio em São Gabriel da Cachoeira. Tem oito filhos, dos quais seis vivem com ele, e cinco netos com idade de 11, 8, 5, 4 e 2 anos. Segundo ele, todos sabem falar Tukano, como em geral ocorre com as crianças do bairro (alguns raros falaríam somente português). Seu vizinho à esquerda é baniwa e fala Baniwa em casa, tal qual ocorre com o vizinho de trás (à direita), enquanto que o da direita é um tuyuka ‘tukanizado’, isto é, um tuyuka casado com uma mulher tukano, segundo as regras da exogamia lingüística e que se utiliza desta importante língua veicular na sua comunicação doméstica. Este é também o caso do vizinho de trás (à esquerda), um desano ‘tukanizado’. Do outro lado da rua, um vizinho ‘caboclo’ se utiliza do Português como língua do lar e o outro, indígena da etnia carapanã, fala castelhano com sua família. As três casas indicadas em cor mais escura utilizam, ademais da língua indicada, também o Nheengatu, o que pode significar que são originárias, provavelmente, do baixo curso dos rios Içana (no caso baniwa) e Vaupés (no caso Desano), regiões de alcance máximo do Nheengatu.
Um segundo exemplo de descrição utilizou já uma notação um pouco mais detalhada, que informa a etnia da mulher, e não somente a da família, dada sempre pela etnia do homem, como em todas as sociedades tradicionalmente patrilineares:
Este segundo caso igualmente aponta para uma vizinhança plurilíngüe. A casa central é de um homem bará casado com uma mulher tukano, família que utiliza em casa somente o Tukano, como seus vizinhos à esquerda e à direita, desano ‘tukanizados’ casados com mulheres tukano. A família focalizada está na cidade faz menos de um ano, tem seis filhos, com idade de 20, 18, 16, 12, 10 e 4 anos, todos falantes de Tukano, ademais do português. As casas de trás utilizam o Tukano em um caso e as famílias baniwa utilizam os idiomas Nheengatu / Português no primeiro caso e a língua Baniwa no segundo. Adiante, do outro lado da rua, uma família ‘cabocla’ (baré) fala o Nheengatu e o português domesticamente.
Renault-Lescure (1990:322), no mesmo texto já citado, analisa as condições de reprodução das duas línguas mais faladas pelo conjunto de 457 alunos que pesquisou, o Nheengatu (Língua Geral) e o Tukano e conclui:
Assim, aparece uma descontinuidade na transmissão das línguas: se as mães se mostram mais ligadas às línguas indígenas que os pais, somente 28% delas, no caso da Língua Geral [Nheengatu] e 47% delas no caso da língua Tukano as utilizam nas trocas verbais com os filhos. Em relação ao pai, apenas 13% e 27% respectivamente, as utilizam em suas trocas com os filhos.O uso do português imposto pelos pais corresponde a uma vontade de integração à sociedade nacional, a um desejo por parte dos pais de ver os filhos escapar à discriminação étnica. (...) A língua portuguesa aparece como a chave da integração e o domínio da língua indígena como uma marca de vinculação ao mundo dos ‘não-civilizados’ do qual precisa se afastar: também implantou-se nas escolas das Missões a idéia de que falar uma língua indígena é um obstáculo no processo de aprendizagem do português.
Sua conclusão aponta para o deslocamento lingüístico das línguas indígenas pelo português, dada a baixa reprodução lingüística intergeracional dos adultos aos jovens. É uma conclusão esperável também de uma análise sobre a situação macro-político-lingüística do país, que nos obriga a reconhecer que mesmo as línguas indígenas mais faladas são línguas ameaçadas. Três pontos, entretanto, merecem nossa atenção:
Em primeiro lugar é importante ressaltar um dado da própria autora, segundo o qual mais filhos falam a seus pais e mães em Tukano e Nheengatu (as duas línguas indígenas mais faladas pelos alunos na região) que o inverso, isto é, que os pais e mães aos seus filhos:
Língua Doméstica
|
Pai com filho
|
Mãe com filho
|
Filho com Pai
|
Filho com Mãe
|
Nheengatu
|
13%
|
28%
|
16%
|
35%
|
Tukano
|
27%
|
47%
|
34%
|
55%
|
Renault-Lescure, O. (1990:319 e 321)
Ainda que a diferença em alguns casos seja muito pequena (3%), em outros casos é de 7 - 8%, o que pode funcionar como indício para a necessidade de investigar outros fatores de pressão para a reprodução lingüística que não somente os familiares: sabemos desde Calvet (1994)) que as línguas das ruas exercem uma pressão mais forte sobre o repertório lingüístico dos falantes que família mesma. Neste sentido o estudo sociolingüístico intrafamiliar é somente um dos indicadores da manutenção ou do deslocamento lingüístico em uma determinada comunidade.
Em segundo lugar, como dito, sua amostra concentra-se nas escolas centrais da cidade, território por definição do ‘não-indígena’ e da imposição do monolingüismo em português. É muito discutível se esta conclusão pode ser generalizada para toda a cidade o se os fenômenos de deslocamento se dão na mesma direção e com uma intensidade comparável nos bairros não-centrais. Mais importante: os novos e importantes contingentes indígenas que chegam à cidade depois de 1995 compensam amplamente, por assim dizer, as perdas numéricas (ou quantitativas) das línguas indígenas, sobretudo do Tukano, numa situação semelhante a do castelhano nos Estados Unidos (Hamel, 1999). Lá também a perda intergeracional do espanhol é importante, ao contrário do que se acreditava, mas os milhares de recém-chegados monolíngues da América Latina que aportam no país todos os anos mantêm viva a ‘ameaça’ de castelhanização e dão peso político a este idioma.
Não é inprovável que o deslocamento lingüístico nos bairros indígenas ocorra por substituição das demais línguas pelo Tukano, seja como uma ‘fase bilíngüe’ de transição futura para o português, como a que ocorreu depois de 1870 em toda a Amazônia brasileira com o bilingüismo Nheengatu – Português (Bessa Freire, 1982), seja como estabilização de uma situação urbana em que convivem uma língua central – o português – e uma língua da periferia – o Tukano – caso em que o fenômeno do bilingüismo estará associado às características sociolingüísticas diastráticas da cidade, em uma clássica diglossia, semelhante à descrição de Stella Maris Bortoni-Ricardo (1985, 1989) das relações pluridialetais do Português em Brasília, onde ‘fenômenos diatópicos se transformam constantemente em fenômenos diastráticos’: no centro da cidade, o‘plano piloto’, predomina uma koiné baseada nos dialetos das regiões prestigiadas do país (sudeste, sul), enquanto que uma koiné criada a partir dos dialetos nordestinos, de baixo prestígio, predomina na periferia, as chamadas ‘cidades satélites’, transferindo-se, assim, o prestígio lingüístico regional (fenômeno diatópico) para a situação de classes interna à cidade (fenômeno diastrático) e à sua própria geografia.
Em ambos os modelos apresentados sucintamente acima, teríamos ao mesmo tempo o deslocamento da situação de plurilingüismo máximo que atualmente se apresenta nos bairros citados, mas não necessariamente a imposição imediata do monolingüismo em português que caracteriza a maioria das cidades brasileiras, o que permitiria a reconstituição identitária dos indígenas urbanos e sua articulação no campo da luta política.
O terceiro e último ponto diz respeito a mudanças importantes nas relacões de poder no município depois de 1990. Houve um nítido fortalecimento do papel dos indígenas, sobretudo a partir da criação daFederação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) em 1984, entidade que congrega hoje 42 organizações indígenas de distintos interesses de atuação, e que recebe apoio de diversas ONGs nacionais e internacionais. Ao mesmo tempo, o papel dos missionários, especialmente os salesianos, que dominaram a cena política de Rio Negro desde o começo do século XX, perdeu consideravelmente em importância.
A política educacional do poder municipal, a partir da criação do curso de formação de 200 professores indígenas bilíngües para as escolas, favoreceu o posicionamento deste grupo frente a questões político-linguísticas ligadas às práticas pedagógicas, como la alfabetização nas línguas indígenas e não em Português, já em execução em muitas comunidades. As 165 escolas municipais antigamente chamadas ‘escolas rurais’ foram reconhecidas oficialmente como escolas indígenas a partir da criação, em 1999, do subssistema indígena de educação, hecho de amplo alcance, no mesmo ano em que foi criada a Asociação dos Professores Indígenas do Rio Negro (APIARN). Em janeiro de 2000, a assembléia geral da FOIRN, com 196 representantes das (então) 36 organizações da federação, solicitou parecer jurídico e político-linguístico com objetivo de avaliar as chances de um movimento de reivindicação da oficialização das três línguas indígenas veiculares – Nheengatu, Tukano e Baniwa – em nível municipal, fato político inédito na história do Brasil.
Estes desenvolvimentos, além de outras iniciativas, apontam para novas possibilidades de manutenção da línguas indígenas na cidade de São Gabriel da Cachoeira e para novos modelos de urbanização de línguas minoritárias no Brasil, pelo menos nos poucos municípios de população indígena majoritária – 10 a 12 em todo o país. Embora minoritários em uma escala nacional ou mesmo estadual, há situações em que os indígenas constituem maioria, e disso cumpre tirar as conseqüências político-lingüísticas adequadas. Apresenta-se, assim, o âmbito municipal como um nível de atuação de múltiplas possibilidades para as políticas culturais dos povos indígenas.
Nos outros casos, que são os mais comuns – de ínfimas minorias indígenas vivendo em cidades – configura-se (apenas) a possibilidade do desenvolvimento de políticas-linguísticas táticas, mais que estratégicas, na definição de De Certeau, já que estas minorías têm poucas probabilidades de circunscreverem um lugar próprio, representado no caso citado anteriormente pelos límites do município:
Em segundo lugar, como dito, sua amostra concentra-se nas escolas centrais da cidade, território por definição do ‘não-indígena’ e da imposição do monolingüismo em português. É muito discutível se esta conclusão pode ser generalizada para toda a cidade o se os fenômenos de deslocamento se dão na mesma direção e com uma intensidade comparável nos bairros não-centrais. Mais importante: os novos e importantes contingentes indígenas que chegam à cidade depois de 1995 compensam amplamente, por assim dizer, as perdas numéricas (ou quantitativas) das línguas indígenas, sobretudo do Tukano, numa situação semelhante a do castelhano nos Estados Unidos (Hamel, 1999). Lá também a perda intergeracional do espanhol é importante, ao contrário do que se acreditava, mas os milhares de recém-chegados monolíngues da América Latina que aportam no país todos os anos mantêm viva a ‘ameaça’ de castelhanização e dão peso político a este idioma.
Não é inprovável que o deslocamento lingüístico nos bairros indígenas ocorra por substituição das demais línguas pelo Tukano, seja como uma ‘fase bilíngüe’ de transição futura para o português, como a que ocorreu depois de 1870 em toda a Amazônia brasileira com o bilingüismo Nheengatu – Português (Bessa Freire, 1982), seja como estabilização de uma situação urbana em que convivem uma língua central – o português – e uma língua da periferia – o Tukano – caso em que o fenômeno do bilingüismo estará associado às características sociolingüísticas diastráticas da cidade, em uma clássica diglossia, semelhante à descrição de Stella Maris Bortoni-Ricardo (1985, 1989) das relações pluridialetais do Português em Brasília, onde ‘fenômenos diatópicos se transformam constantemente em fenômenos diastráticos’: no centro da cidade, o‘plano piloto’, predomina uma koiné baseada nos dialetos das regiões prestigiadas do país (sudeste, sul), enquanto que uma koiné criada a partir dos dialetos nordestinos, de baixo prestígio, predomina na periferia, as chamadas ‘cidades satélites’, transferindo-se, assim, o prestígio lingüístico regional (fenômeno diatópico) para a situação de classes interna à cidade (fenômeno diastrático) e à sua própria geografia.
Em ambos os modelos apresentados sucintamente acima, teríamos ao mesmo tempo o deslocamento da situação de plurilingüismo máximo que atualmente se apresenta nos bairros citados, mas não necessariamente a imposição imediata do monolingüismo em português que caracteriza a maioria das cidades brasileiras, o que permitiria a reconstituição identitária dos indígenas urbanos e sua articulação no campo da luta política.
O terceiro e último ponto diz respeito a mudanças importantes nas relacões de poder no município depois de 1990. Houve um nítido fortalecimento do papel dos indígenas, sobretudo a partir da criação daFederação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) em 1984, entidade que congrega hoje 42 organizações indígenas de distintos interesses de atuação, e que recebe apoio de diversas ONGs nacionais e internacionais. Ao mesmo tempo, o papel dos missionários, especialmente os salesianos, que dominaram a cena política de Rio Negro desde o começo do século XX, perdeu consideravelmente em importância.
A política educacional do poder municipal, a partir da criação do curso de formação de 200 professores indígenas bilíngües para as escolas, favoreceu o posicionamento deste grupo frente a questões político-linguísticas ligadas às práticas pedagógicas, como la alfabetização nas línguas indígenas e não em Português, já em execução em muitas comunidades. As 165 escolas municipais antigamente chamadas ‘escolas rurais’ foram reconhecidas oficialmente como escolas indígenas a partir da criação, em 1999, do subssistema indígena de educação, hecho de amplo alcance, no mesmo ano em que foi criada a Asociação dos Professores Indígenas do Rio Negro (APIARN). Em janeiro de 2000, a assembléia geral da FOIRN, com 196 representantes das (então) 36 organizações da federação, solicitou parecer jurídico e político-linguístico com objetivo de avaliar as chances de um movimento de reivindicação da oficialização das três línguas indígenas veiculares – Nheengatu, Tukano e Baniwa – em nível municipal, fato político inédito na história do Brasil.
Estes desenvolvimentos, além de outras iniciativas, apontam para novas possibilidades de manutenção da línguas indígenas na cidade de São Gabriel da Cachoeira e para novos modelos de urbanização de línguas minoritárias no Brasil, pelo menos nos poucos municípios de população indígena majoritária – 10 a 12 em todo o país. Embora minoritários em uma escala nacional ou mesmo estadual, há situações em que os indígenas constituem maioria, e disso cumpre tirar as conseqüências político-lingüísticas adequadas. Apresenta-se, assim, o âmbito municipal como um nível de atuação de múltiplas possibilidades para as políticas culturais dos povos indígenas.
Nos outros casos, que são os mais comuns – de ínfimas minorias indígenas vivendo em cidades – configura-se (apenas) a possibilidade do desenvolvimento de políticas-linguísticas táticas, mais que estratégicas, na definição de De Certeau, já que estas minorías têm poucas probabilidades de circunscreverem um lugar próprio, representado no caso citado anteriormente pelos límites do município:
“Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com umaexterioridade de alvos ou ameaças (...) Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do outro. Gesto da modernidade científica, política ou militar. (...) chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como dizia von Büllow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem bases para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva”. (De Certeau, 1994:100)
O estado brasileiro pós-1988, entretanto, ao reconhecer o direito dos povos indígenas às suas línguas e possibilitar a formulação de políticas educacionais próprias, ainda que dentro de certos límites, institui aos professores, comunidades, associações e outras entidades como agentes político-lingüísticos e tranfere a eles responsabilidades que em outros modelos são exclusivas do estado. A visibilidade dos índios urbanos, sua capacidade de articulação com os poderes públicos regionais e com a população das aldeias permitirá que assumam tarefas de planificação capazes de amplificar seu pequeno número, e este processo contribuirá para a manutenção das fronteiras étnicas, estratégia importante e, em muitos casos, fundamental para a sobrevivência política e econômica dos índios na sua relação com a ‘sociedade nacional’ e seus grupos. A cidade é, assim, este novo território de luta.
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