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Zé Brasil: a questão agrária e a questão literária

13 de Maio de 2016, 11:31 , por Bertoni - 0sem comentários ainda | No one following this article yet.
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zebrasil“A pobreza, a lentidão do desenvolvimento do Brasil sempre me preocupou vivamente.”

(Monteiro Lobato. O Escândalo do Petróleo e Ferro – Editora Brasiliense)

Historicamente, o desenvolvimento econômico brasileiro centrou-se no latifúndio, marginalizando os pequenos agricultores, trabalhadores rurais. Entretanto, o trabalhador rural engendra meios de resistência à ordem e à estrutura postas. O êxodo rural, a luta para se manter na terra, os movimentos grevistas e de tomada de terra e as frentes de trabalho são as formas de resistência geralmente empregadas.

Para analisar um documento como Zé Brasil, é preciso considerar não só o seu conteúdo, mas também a sua recepção, a forma pela qual se fez a sua circulação, bem como as circunstâncias que o conformaram e as concepções de seu autor. A partir disso, este artigo pretende compreender esse documento, que nos parece muito significativo, tanto pela sua ambivalência simbólica quanto pelos motivos que serão apresentados. Além disso, Zé Brasil suscita interessantes e pertinentes questões acerca de sua inserção no conjunto da obra de Monteiro Lobato e, no momento histórico no qual foi produzido.

Em 1911, Lobato foi transformado em grande proprietário rural, em decorrência da morte de seu avô, que lhe deixou como herança uma fazenda. Seus esforços e projetos para tornar rendosa a fazenda foram mal sucedidos, devido à política econômica do período, que não favorecia a lavoura. Além de problemas financeiros, Lobato se indispôs com seu administrador, por causa dos métodos empregados na agricultura. O escritor considerava o antigo hábito da queimada como economicamente fatal e retrógrado e, assim, combateu-o violentamente, em artigos publicados em jornais. Desse embate surgiu o Jeca Tatu, inserido no processo de idealização das minorias, em desenvolvimento nesse período ainda impregnado pelas concepções românticas, utilizando-as para a legitimação de um projeto político.

A partir dessa sua primeira experiência concreta com os problemas da terra e dos trabalhadores rurais, Lobato iniciou sua crítica, posteriormente retomada em Zé Brasil, último texto escrito por ele, um ano antes de sua morte, em 1948.
Há quem critique a composição descuidada e sem pretensões literárias desse seu último texto. Realmente, a linguagem utilizada é simples e direta, compondo uma pequena narrativa, na qual descreve o drama do homem do campo, do trabalhador rural que, por não possuir nada, sujeitava-se às condições impostas pelos donos da terra, representados pelo Coronel Tatuíra, e assinava contratos parciais, dando parte da produção ao arrendatário. Lobato focalizou as injustiças derivadas da exploração do trabalho do homem do campo, na propriedade alheia, injustiças estas principalmente caracterizadas pelo despejo sumário e pela espoliação pura e simples dos resultados do árduo trabalho. Essa situação é exposta, com toda sua crueza, pela voz de Zé Brasil, criada por Lobato:

Eu era ‘agregado’ lá (na fazenda) e ia labutando na grota. Certo ano tudo ocorreu bem e as plantações ficaram a maior das belezas. O coronel passou por lá, viu aquilo – e eu não gostei da cara dele. No dia seguinte me ‘tocou’ de suas terras como quem toca um cachorro; colheu as roças para êle (…) (p. 12)

Zé Brasil, tal como Jeca Tatu, é um homem subnutrido, descalço, comido pela verminose, é a figura do caipira que ressurge na obra de Lobato, já descrita nas obras Velha Praga, Urupês e Jeca Tatuzinho. No próprio texto, o autor faz alusão a esta proximidade entre as duas personagens por ele inventadas:

– Coitado deste Jéca! dizia Zé Brasil olhando para aquelas figuras. Tal qual eu. Tudo que êle tinha eu também tenho. A mesma opilação, a mesma maleita, a mesma miséria e até o mesmo cachorrinho. Pois não é que meu cachorro também se chama Jolí?… (p. 1)

Zé Brasil pode, ainda, como nos chama a atenção Marisa Lajolo, ser entendido como uma crítica ao jovem Lobato, que em 1914, à frente da administração de uma grande propriedade rural, não soubera compreender a dimensão econômica do projeto agrário brasileiro e que, nos anos 20, avança a questão, mas não chega a perceber que problemas como os das condições de saúde apenas mascaravam outros, mais concretos, da própria infra-estrutura brasileira. Zé Brasil, nessa última versão do Jeca, é o camponês sem terra, expropriado, cuja única salvação, na visão de Lobato, reside no Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes, representado, ao final do texto, com o punho fechado, o olhar direto, o rosto erguido, como um autêntico herói. Lobato defende veementemente, no decorrer do texto, a posição de Prestes como salvador do homem do campo.

(…) _Luiz Carlos Prestes…
– Já ouvi falar. Diz que é um tal comunista que quer desgraçar o mundo, acabar com tudo…
– Quer acabar com a injustiça do mundo. Quer que em vez de um Tatuira, dono de milhares de alqueires de terra e vivendo à custa dos que trabalham, homem prepotente que fez o que fez a você…
– Que toca a gente…
– Que toca, que manda prender e meter o chanfalho em quem resmunga, haja centenas de donos de sítios dentro de cada fazenda, vivendo sem medo de nada , na maior abundância a segurança. (p.7)

A ênfase dispensada a essa idéia pode ser claramente percebida no modo como Lobato conclui o texto:

Prestes! Prestes!… Por isso é que há tanta gente que morre por êle. Estou compreendendo agora. É o único homem que quer o nosso bem. O resto, eh, eh, eh! é tudo mais ou menos coronel Tatuira… (p. 26)

Aparece também, fortemente, a noção de que o homem simples do meio rural não tem consciência, não compreende sua situação e, portanto, precisa que alguém lhe forneça o conhecimento necessário para compor a base impulsionadora da mudança.

Se sendo tão poucos os Tatuiras dominam e exploram a vocês que são milhões, isso vem duma coisa só: É que vocês não sabem! E o remédio é um só: procurar saber. No dia em que todos souberem como as coisas são, ah, nesse dia tudo começa a mudar (…) (p.23)

O aspecto e a intenção didática do texto reflete-se tanto na sua composição em forma de diálogo quanto no objetivo e na insistência em convencer Zé Brasil e os homens do campo a tomar uma posição e a crer que Prestes é realmente bom.

Jornal eu não leio, mas o Chico Vira lê e outro dia me disse que os jornais andam falando horrores do comunismo.
– Os Jornais deles, está claro que dizem horrores. Mas os jornais comunistas, ou do Prestes, êsses dizem as coisas de modo diferente. Em que vocês devem acreditar? No que dizem os Tatuiras e os jornais dos Tatuiras, ou no que dizem os homens que querem o bem de vocês, a felicidade de vocês, a segurança de vocês? Os homens que padecem por vocês, como êsse Prestes que já passou nove anos no cárcere, incomunicável, só porque em vez de se decidir pela felicidade dos Tatuiras, se decidiu pela felicidade de Zé Brasil? (p. 24)

O texto foi considerado, na época, como uma tomada de posição explícita do autor. Atacando diretamente o monopólio da terra, após apresentar soluções indiretas e paliativas para o problema agrário, como a do sistema de divisão da produção e a da condição de agregados dos trabalhadores rurais, declarava guerra aos Tatuíras.
Se a intenção do autor foi, realmente, a de colocar o problema agrário “em fraldas de camisa e ao alcance de todas as burrices”, como ele mesmo afirmou, Zé Brasil realmente acendeu a luta política. A reação se prenunciou. Logo após seu lançamento, o livreto foi apreendido, em rumorosas diligências policiais. Segundo nos atesta Cavalheiro, Monteiro Lobato exultou com esse fato, pois assim respondeu ao primeiro repórter que o procurou:

Para um escritor nada melhor que as iras da Polícia, do que o veto da Igreja, do que a condenação dos pseudomoralistas. Possuo uma experiência significativa.

Tinha razão, pois o folheto passou a ser muito procurado, mas procurado por quem? Pela população urbana, curiosa sobre a exótica população rural, ou pela própria população rural, tocada pela noção da necessidade de compreender seus problemas? Muito provavelmente pela urbana, pois, se considerarmos a taxa de analfabetismo no campo, nesse período, e o ainda incipiente sistema de distribuição de livros, constataremos que essa é a hipótese mais viável; no entanto, precisa ser melhor investigada.

Livreto, folheto ou simplesmente texto? A classificação de Zé Brasil também é uma questão delicada, diretamente relacionada ao seu conteúdo e à intenção de seu autor.

Em Zé Brasil, Monteiro Lobato afirma que “Falta uma boa distribuição das terras, de modo que se acabe com isto de uns terem tudo e a grande maioria não ter nada.” (p. 19)

A ação de Lobato é o “resultado da tensão entre os objetivos perseguidos por ele e as condições de conjuntura e de estrutura do País – conjunturas e estruturas foram possibilidades e limitações à ação”. E sua ação se realizava, primordialmente em seus livros, em suas obras. Ele via os livros como pontos inspiradores para novas interrogações, nunca como instrumentos de imposição de juízos definitivos.

Em suma, ainda que tenha exposto o problema do homem do campo e a questão da reforma agrária, ele mantinha e reafirmava a visão do homem rural – o camponês como um sujeito à margem da História – não inserido socialmente. Nesse sentido, em vez de regenerar a figura do camponês, ele reforça a idéia de que este necessita de uma vanguarda, de um líder, de um herói (nesse caso, representado por Prestes) que leve a consciência até esse homem, generalizado na figura do Zé Brasil, ou, antes, na do Jeca Tatu. Assim, além de esvaziar a possibilidade de consciência política na área rural, reafirma a idéia do campo como o local do ócio, da miserabilidade, da incapacidade do homem do campo refletir e solucionar seus próprios problemas.

No ano seguinte, o texto foi republicado pelo Calvino Filho Editor, RJ, com ilustrações de Cândido Portinari. Segundo Cavalheiro, essa edição, ao contrário da primeira, é “um primor gráfico”.

Zé Brasil é um texto que certamente merece um estudo mais aprofundado. Procuramos, aqui, neste pequeno artigo, apenas compreender as condições de sua produção e seu conteúdo, por meio da análise das questões agrária e literária e a inter-relação entre elas.

Não há como negar, após a leitura do texto, que Lobato estava atento ao problema da reforma agrária no País. Entretanto, ainda que estivesse imbuído de “boas intenções”, em vez de reabilitar a figura do homem do campo, ele apenas reforçou o pensamento de sua época, destacando a idéia de fragilidade e de incapacidade desse homem, ou seja, não avançou nem teoricamente, na compreensão do problema, nem forneceu possíveis soluções decorrentes de uma análise crítica baseada na consciência da realidade. O próprio Lobato não se resolve, contrariando com ações as suas posições, e vice-versa.

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RACHEL DUARTE ABDALA possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1999) , graduação em Licenciatura em História pela Universidade de São Paulo (1999) e mestrado em Educação pela Universidade de São Paulo (2003). É doutorando em História pela USP e professora na Universidade de Taubaté.


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