O relato abaixo é de uma professora indígena do Distrito Federal. Daiara Tukano conta as coisas que ouve em sala de aula e na escola, seja de alunos ou professores, relatando um pouco sobre a imagem distorcida que temos dos indígenas no Brasil. Vale a leitura:
Sou professora há três anos na Secretaria de Educação do Distrito Federal, nasci e cresci como indígena em contexto urbano, estudei e me formei com dupla habilitação em artes visuais na Universidade de Brasília, e cada dia que piso na escola respiro e me preparo para a próxima pergunta.
Tenho orgulho de minha identidade indígena, a luta de nossos povos me constitui profundamente, e a cidade me desafia constantemente sobre quem eu sou, mas foi principalmente no ambiente institucional de meu trabalho que senti a necessidade de praticar a afirmação em todos os sentidos possíveis: me pinto com jenipapo, visto meus brincos e colares e me abro para a curiosidade de meus colegas professores e de meus alunos não indígenas.
Chegando na sala dos professores:
“- posso te fazer uma pergunta? Você é descendente de índio?
- sou indígena.
- nossa gente! Olha! Uma índia! (pegando no meu braço)
- isso é tatuagem? (pergunta um outro professor)
- não, é pintura de jenipapo.
- menina! Eu também tenho sangue indígena! Olha o brinco dela gente! E esse cabelo?(passando a mão no meu cabelo)
- você é de que tribo? (um terceiro professor)
- sou do povo tukano, do amazonas.
- você mora na aldeia?
- não, moro aqui em Brasília mesmo.
- ah menina! Quando eu era criança vivia índio passando na fazenda de meu pai, mas nunca vi aqui na cidade. Seja bem vinda, professora!”
Chegando na sala de aula:
“- olá, boa tarde, me chamo Daiara e sou sua nova professora de artes.
- professora você é da índia? (levantando o dedo)
- eu sou brasileira mesmo.
- mas você é índia?
- sou indígena.
- oooh! Olha uma índia! (apontando com o dedo)
- professora, posso te fazer uma pergunta? (levantando o dedo) isso é tatuagem?
- é tinta, sai com o banho.
- você mora na aldeia?
- eu moro aqui em Brasília mesmo...”
A experiência de meu primeiro dia de trabalho se repete no início de cada ano letivo em cada sala de aula, e costumo ouvir uma enxurrada de perguntas até as pessoas se acostumarem com a ideia de ter uma professora indígena na escola. O ambiente escolar é complexo, mas bastante acolhedor e muito familiar, afinal lidamos com crianças e adolescentes e precisamos como professores nos dar apoio mútuo e desabafar quotidianamente sobre os desafios de nosso trabalho. Na primeira escola que trabalhei ganhei o apelido de “Índia Potira”, por diplomacia nem comentei como era problemática a referência à antiga chacrete, mas o que mais me incomoda até hoje é quando algum aluno bate na boca fazendo o “barulho de índio” que aprendeu com a música da xuxa na escola.
Dou aula no segundo ciclo do ensino fundamental (a partir do 6º ano) e no ensino fundamental), mas é principalmente durante o primeiro ciclo do ensino fundamental, do 1º ao 5º ano que as escolas costumam “celebrar” o dia do índio com a tal música da xuxa, cocar de e.v.a ou cartolina, “pintura de índio” de tinta guache e coreografias que parecem saídas de desenhos animados antigos. Eu lembro de minha infância como me sentia constrangida com essa “imagem do índio” que me mostravam na escola, e como não me identificava com isso nem comentava sobre minha família, o que me entristecia muito por saber que se eles soubessem quem eu era iriam ter mais um motivo para não me acolher, e eu já era a tímida gordinha quatro olhos nerd da turma, era criança e não tinha maturidade nem coragem de ser mais diferente ainda ou então ia ser tratada como “E.T.”
Minhas experiências como indígena na cidade me provocaram a pesquisar sobre a implementação da lei 11.645 de 2008 que trata sobre a inclusão obrigatória da temática de história e cultura e indígena no ensino brasileiro como eixo transversal que abarca todas as disciplinas. Geralmente quando tento explicar que estudo sobre educação em direitos humanos e cultura de paz com relação a essa lei, as pessoas intuem que me refiro a “educação indígena”, às escolas nas aldeias, ou então aos alunos indígenas que atendem à rede de ensino pública: raros parecem entender que essa política é destinada à todos os alunos em o território nacional.
Tenho procurado então participar de discussões na minha cidade sobre a implementação dessa lei que altera e complementa a Lei no 10.639 de 2003 (sobre a inclusão de história e cultura afrobrasileira), e participado dentro da secretaria de educação sobre relações étnicas e raciais, colaborado em cursos de formação de professores e extensões universitárias, e participado em diálogos e atividades em escolas por convite de alguns professores e pais de alunos.
Um dos maiores choques que tive foi me deparar com a dificuldade de especialistas na questão “étnico-racial”, na sua enorme maioria professores negros (até porque sou por enquanto a única professora indígena na rede pública de ensino do distrito federal que se tem notícia) em reconhecer a profundidade da sua ignorância sobre a questão indígena, e a sutileza da violência que eles mesmos acabam praticando como sujeitos de um paradigma estrutural da cultura brasileira: o racismo e discriminação contra os povos indígenas. Começando pelo fato de achar que as dez mil só trata de negros e a onze mil de indígenas, depois por achar que juntando os conceitos de etnia e raça com um hífen fica tudo sinônimo equivalente.
O termo “étnico-racial” é extremamente controverso ao meu olhar porque as identidades negras e indígenas são muito diversas e ainda que tenham sofrido muito com os processos históricos coloniais, não foi tudo igual, e neste pedaço do mundo os povos originários somos nós. Cada povo pode se definir como etnia, ter sua língua, sua cosmovisão e cultura, mas raça é um conceito que vem ignorância cruel da colonialidade, e da qual somos vítimas de maneiras distintas também. Como indígena sei de minha linhagem familiar dentro de meu povo, mas muitos amigo negros não fazem ideia de que cantinho da áfrica por exemplo eles carregam um pedaço… e quando explico que lá do outro lado do mar também tem muitos povos indígenas que vivem paradigmas semelhantes aos nossos, e que são massacrados por pessoas tão negras quanto de países negros, com governantes negros, acabo causando um certo mal estar, mas o exemplo serve para indicar que as relações identitárias entre etnia e raça são mais complexas, e o buraco fica mais embaixo.
Perdi a conta de quantas vezes, por exemplo, expliquei a colegas “chegados” no assunto da racialidade sobre o “red face”, conceito de viés indígena equivalente ao “black face”: o famoso fantasiar de índio, ou fazer cocar de cartolina para tirar foto do “indiozinho” com bochechas pintadas de tinta guache no jardim de infância. Professores versados em Luther King, Malcolm X, Dandara e Zumbi dos Palmares, conseguem quando muito lembrar que um dia teve um deputado chamado Mário Juruna, mas não fazem ideia de sua história ou de qualquer outro que não esteja num romance de José de Alencar. Costumo dizer que vivemos numa sociedade daltônica que enxerga apenas preto e branco e ignora as outras cores, relações e histórias, e que esse daltonismo não é menos segregador e colonizador, pois, repito, os únicos originários desta terra somos os indígenas. Reitero o termo originário porque é a estrutura que define nossa identidade. É muito dolorido para uma pessoa que sofre racismo perceber que ela também pode praticá-lo, então me treino constantemente na doçura e na diplomacia para compartilhar com carinho essas reflexões.
Imagine então, um pouco do cuidado e atenção que preciso continuar tendo na escola para poder existir como professora indígena: meu texto e minha pesquisa talvez compartilhem um pouco dessa confusão e desse desabafo. Essa coisa de ser professora também carrega uma série de outros paradigmas com relação à educação, ao conhecimento e à autoridade que acho profundamente controversos. Primeiramente porque é no espaço da escola, da educação e da academia que se estrutura a continuidade da imagem preconceituosa do indígena, e as perguntas que meus alunos fazem em sala de aula remetem a isso constantemente. Segundo, porque a desqualificação de qualquer abordagem sobre a temática indígena também se inicia na escola: “índio não” tem arte mas “artesanato”, não tem história mas “mito”, não tem ciência mas “tradição”, e ele dificilmente se apresentará por si, mas será constantemente retratado, observado e estudado pelos não indígenas; em suma aquele sentimento de “E.T” contínua, mas hoje sou mais atrevida que com oito anos de idade.
Horário de coordenação:
“-professora, não faço ideia como tratar esse conteúdo, você me daria algumas dicas? podemos aproveitar e trabalhar juntos!
-Opa! será um prazer! mas preciso te dizer que entendo a dificuldade desse desafio”
Na falta de colegas próximos que compartilhem experiências semelhantes comigo (outros indígenas professores em escola “de branco”), tenho precisado praticar a imaginação dentro e fora de sala de aula. Sou professora de artes, e arte poética e linguagem, ao meu ver, permite abordar qualquer assunto e qualquer área, sinto que com a arte acontece algo parecido em relação ao paradigma de conhecimento: arte muitas vezes não é considerada ciência simplesmente por usar outras linguagens, e ser assim, meio “diferente”, meio “E.T.”, por isso ninguém dá a mínima para artes, nem para professor de artes, e isso é ótimo, porque como arte “não parece sério”, as pessoas acreditam logo que estão brincando e relaxam para poder abrir suas cabeças para coisas novas, até para notar que “índio” não é “E.T”.
Do pouco tempo que tenho me dedicado a observar estes processos, tenho a impressão que para abordar a temática indígena existem alguns pontos essenciais a ser considerados e lembrados constantemente:O “índio” genérico foi inventado pelos colonizadores, é bom saber que existem centenas de povos indígenas distintos, com cultura, língua, e história própria: Atualmente vivem no território brasileiro 253 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes.
Antes da chegada dos europeus, todo este continente era habitado por nós e continua sendo, e é a isso que nos referimos com o conceito de “povos originários”, nativos ou indígenas. É importante fazer uso de palavras com as quais os indígenas se identifiquem de fato e se informar sobre palavras que podem marcar a memória e identidade indígena negativamente.
Para abordar história e cultura indígena é bom escutar os mesmos permitindo a autonomia de outros discursos históricos que não os dos colonizadores: ninguém fala ou sente nossa história melhor que nós mesmos, e por isso cabe a nós construir e vislumbrar uma nova para nós no futuro; descrições de terceiros frequentemente terão lacunas ou interpretações com base na cultura do outro. Diante da enorme diversidade cultural indígena é bacana olhar o contexto geopolítico, histórico, social,econômico e cultural de cada povo. Bom saber, por exemplo, quais povos ocupam tradicionalmente a região onde você mora.
A identidade indígena está ligada ao reconhecimento de uma ancestralidade originária por parte do indivíduo, mas também do reconhecimento desse indivíduo por parte da coletividade na qual ele se insere, para além da aparência, do lugar onde estiver, ou do conhecimento que detiver: o conceito de “adaptação” ou “integração” das pessoas indígenas à “sociedade brasileira” não retira a identidade étnica nem racial de ninguém.
Toda cultura é enormemente ampla e em constante dinâmica de transformação e vivemos todos no mesmo século, apenas em contextos distintos.
existe matemática, literatura, arte, filosofia, história, geografia, ciência, esporte e pedagogia em todas as culturas, inclusive as indígenas, e compartilhar outras metodologias e abordagens pode ser interessante em qualquer conteúdo de ensino.
Educamos para a cidadania, e isso inclui conscientizar as pessoas independente da idade a saber do histórico da luta indígena, suas propostas, demandas e visões para a construção de uma sociedade igualitária e democrática.
Compartilhar com alegria, carinho e paciência as vivências e conhecimentos, construir laços de respeito com os alunos é essencial para abordar qualquer conteúdo, especialmente os que se referem ao combate contra o preconceito e a discriminação.
Espero que minhas dúvidas, experiências e reflexões possam contribuir em algo para algum colega educador que venha a se interessar pelo tema, independente de sua identidade étnica ou racial. Espero igualmente em breve não me sentir tão só nessa nave espacial gelada, e encontrar colegas indígenas com experiências semelhantes para trocar idéias, afinal cada contexto é único, mas continuamos juntos na mesma canoa.
(Via Rádio Yandê)
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INFORME: Independente, o Comunica Tudo é mantido por uma única pessoa, com colaborações eventuais. Apoie este projeto: clique nas publicidades ou contribua.
Sou professora há três anos na Secretaria de Educação do Distrito Federal, nasci e cresci como indígena em contexto urbano, estudei e me formei com dupla habilitação em artes visuais na Universidade de Brasília, e cada dia que piso na escola respiro e me preparo para a próxima pergunta.
Tenho orgulho de minha identidade indígena, a luta de nossos povos me constitui profundamente, e a cidade me desafia constantemente sobre quem eu sou, mas foi principalmente no ambiente institucional de meu trabalho que senti a necessidade de praticar a afirmação em todos os sentidos possíveis: me pinto com jenipapo, visto meus brincos e colares e me abro para a curiosidade de meus colegas professores e de meus alunos não indígenas.
Chegando na sala dos professores:
“- posso te fazer uma pergunta? Você é descendente de índio?
- sou indígena.
- nossa gente! Olha! Uma índia! (pegando no meu braço)
- isso é tatuagem? (pergunta um outro professor)
- não, é pintura de jenipapo.
- menina! Eu também tenho sangue indígena! Olha o brinco dela gente! E esse cabelo?(passando a mão no meu cabelo)
- você é de que tribo? (um terceiro professor)
- sou do povo tukano, do amazonas.
- você mora na aldeia?
- não, moro aqui em Brasília mesmo.
- ah menina! Quando eu era criança vivia índio passando na fazenda de meu pai, mas nunca vi aqui na cidade. Seja bem vinda, professora!”
Chegando na sala de aula:
“- olá, boa tarde, me chamo Daiara e sou sua nova professora de artes.
- professora você é da índia? (levantando o dedo)
- eu sou brasileira mesmo.
- mas você é índia?
- sou indígena.
- oooh! Olha uma índia! (apontando com o dedo)
- professora, posso te fazer uma pergunta? (levantando o dedo) isso é tatuagem?
- é tinta, sai com o banho.
- você mora na aldeia?
- eu moro aqui em Brasília mesmo...”
A experiência de meu primeiro dia de trabalho se repete no início de cada ano letivo em cada sala de aula, e costumo ouvir uma enxurrada de perguntas até as pessoas se acostumarem com a ideia de ter uma professora indígena na escola. O ambiente escolar é complexo, mas bastante acolhedor e muito familiar, afinal lidamos com crianças e adolescentes e precisamos como professores nos dar apoio mútuo e desabafar quotidianamente sobre os desafios de nosso trabalho. Na primeira escola que trabalhei ganhei o apelido de “Índia Potira”, por diplomacia nem comentei como era problemática a referência à antiga chacrete, mas o que mais me incomoda até hoje é quando algum aluno bate na boca fazendo o “barulho de índio” que aprendeu com a música da xuxa na escola.
Dou aula no segundo ciclo do ensino fundamental (a partir do 6º ano) e no ensino fundamental), mas é principalmente durante o primeiro ciclo do ensino fundamental, do 1º ao 5º ano que as escolas costumam “celebrar” o dia do índio com a tal música da xuxa, cocar de e.v.a ou cartolina, “pintura de índio” de tinta guache e coreografias que parecem saídas de desenhos animados antigos. Eu lembro de minha infância como me sentia constrangida com essa “imagem do índio” que me mostravam na escola, e como não me identificava com isso nem comentava sobre minha família, o que me entristecia muito por saber que se eles soubessem quem eu era iriam ter mais um motivo para não me acolher, e eu já era a tímida gordinha quatro olhos nerd da turma, era criança e não tinha maturidade nem coragem de ser mais diferente ainda ou então ia ser tratada como “E.T.”
Tenho procurado então participar de discussões na minha cidade sobre a implementação dessa lei que altera e complementa a Lei no 10.639 de 2003 (sobre a inclusão de história e cultura afrobrasileira), e participado dentro da secretaria de educação sobre relações étnicas e raciais, colaborado em cursos de formação de professores e extensões universitárias, e participado em diálogos e atividades em escolas por convite de alguns professores e pais de alunos.
Um dos maiores choques que tive foi me deparar com a dificuldade de especialistas na questão “étnico-racial”, na sua enorme maioria professores negros (até porque sou por enquanto a única professora indígena na rede pública de ensino do distrito federal que se tem notícia) em reconhecer a profundidade da sua ignorância sobre a questão indígena, e a sutileza da violência que eles mesmos acabam praticando como sujeitos de um paradigma estrutural da cultura brasileira: o racismo e discriminação contra os povos indígenas. Começando pelo fato de achar que as dez mil só trata de negros e a onze mil de indígenas, depois por achar que juntando os conceitos de etnia e raça com um hífen fica tudo sinônimo equivalente.
O termo “étnico-racial” é extremamente controverso ao meu olhar porque as identidades negras e indígenas são muito diversas e ainda que tenham sofrido muito com os processos históricos coloniais, não foi tudo igual, e neste pedaço do mundo os povos originários somos nós. Cada povo pode se definir como etnia, ter sua língua, sua cosmovisão e cultura, mas raça é um conceito que vem ignorância cruel da colonialidade, e da qual somos vítimas de maneiras distintas também. Como indígena sei de minha linhagem familiar dentro de meu povo, mas muitos amigo negros não fazem ideia de que cantinho da áfrica por exemplo eles carregam um pedaço… e quando explico que lá do outro lado do mar também tem muitos povos indígenas que vivem paradigmas semelhantes aos nossos, e que são massacrados por pessoas tão negras quanto de países negros, com governantes negros, acabo causando um certo mal estar, mas o exemplo serve para indicar que as relações identitárias entre etnia e raça são mais complexas, e o buraco fica mais embaixo.
Perdi a conta de quantas vezes, por exemplo, expliquei a colegas “chegados” no assunto da racialidade sobre o “red face”, conceito de viés indígena equivalente ao “black face”: o famoso fantasiar de índio, ou fazer cocar de cartolina para tirar foto do “indiozinho” com bochechas pintadas de tinta guache no jardim de infância. Professores versados em Luther King, Malcolm X, Dandara e Zumbi dos Palmares, conseguem quando muito lembrar que um dia teve um deputado chamado Mário Juruna, mas não fazem ideia de sua história ou de qualquer outro que não esteja num romance de José de Alencar. Costumo dizer que vivemos numa sociedade daltônica que enxerga apenas preto e branco e ignora as outras cores, relações e histórias, e que esse daltonismo não é menos segregador e colonizador, pois, repito, os únicos originários desta terra somos os indígenas. Reitero o termo originário porque é a estrutura que define nossa identidade. É muito dolorido para uma pessoa que sofre racismo perceber que ela também pode praticá-lo, então me treino constantemente na doçura e na diplomacia para compartilhar com carinho essas reflexões.
Imagine então, um pouco do cuidado e atenção que preciso continuar tendo na escola para poder existir como professora indígena: meu texto e minha pesquisa talvez compartilhem um pouco dessa confusão e desse desabafo. Essa coisa de ser professora também carrega uma série de outros paradigmas com relação à educação, ao conhecimento e à autoridade que acho profundamente controversos. Primeiramente porque é no espaço da escola, da educação e da academia que se estrutura a continuidade da imagem preconceituosa do indígena, e as perguntas que meus alunos fazem em sala de aula remetem a isso constantemente. Segundo, porque a desqualificação de qualquer abordagem sobre a temática indígena também se inicia na escola: “índio não” tem arte mas “artesanato”, não tem história mas “mito”, não tem ciência mas “tradição”, e ele dificilmente se apresentará por si, mas será constantemente retratado, observado e estudado pelos não indígenas; em suma aquele sentimento de “E.T” contínua, mas hoje sou mais atrevida que com oito anos de idade.
Horário de coordenação:
“-professora, não faço ideia como tratar esse conteúdo, você me daria algumas dicas? podemos aproveitar e trabalhar juntos!
-Opa! será um prazer! mas preciso te dizer que entendo a dificuldade desse desafio”
Na falta de colegas próximos que compartilhem experiências semelhantes comigo (outros indígenas professores em escola “de branco”), tenho precisado praticar a imaginação dentro e fora de sala de aula. Sou professora de artes, e arte poética e linguagem, ao meu ver, permite abordar qualquer assunto e qualquer área, sinto que com a arte acontece algo parecido em relação ao paradigma de conhecimento: arte muitas vezes não é considerada ciência simplesmente por usar outras linguagens, e ser assim, meio “diferente”, meio “E.T.”, por isso ninguém dá a mínima para artes, nem para professor de artes, e isso é ótimo, porque como arte “não parece sério”, as pessoas acreditam logo que estão brincando e relaxam para poder abrir suas cabeças para coisas novas, até para notar que “índio” não é “E.T”.
Do pouco tempo que tenho me dedicado a observar estes processos, tenho a impressão que para abordar a temática indígena existem alguns pontos essenciais a ser considerados e lembrados constantemente:O “índio” genérico foi inventado pelos colonizadores, é bom saber que existem centenas de povos indígenas distintos, com cultura, língua, e história própria: Atualmente vivem no território brasileiro 253 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes.
Antes da chegada dos europeus, todo este continente era habitado por nós e continua sendo, e é a isso que nos referimos com o conceito de “povos originários”, nativos ou indígenas. É importante fazer uso de palavras com as quais os indígenas se identifiquem de fato e se informar sobre palavras que podem marcar a memória e identidade indígena negativamente.
Para abordar história e cultura indígena é bom escutar os mesmos permitindo a autonomia de outros discursos históricos que não os dos colonizadores: ninguém fala ou sente nossa história melhor que nós mesmos, e por isso cabe a nós construir e vislumbrar uma nova para nós no futuro; descrições de terceiros frequentemente terão lacunas ou interpretações com base na cultura do outro. Diante da enorme diversidade cultural indígena é bacana olhar o contexto geopolítico, histórico, social,econômico e cultural de cada povo. Bom saber, por exemplo, quais povos ocupam tradicionalmente a região onde você mora.
A identidade indígena está ligada ao reconhecimento de uma ancestralidade originária por parte do indivíduo, mas também do reconhecimento desse indivíduo por parte da coletividade na qual ele se insere, para além da aparência, do lugar onde estiver, ou do conhecimento que detiver: o conceito de “adaptação” ou “integração” das pessoas indígenas à “sociedade brasileira” não retira a identidade étnica nem racial de ninguém.
Toda cultura é enormemente ampla e em constante dinâmica de transformação e vivemos todos no mesmo século, apenas em contextos distintos.
existe matemática, literatura, arte, filosofia, história, geografia, ciência, esporte e pedagogia em todas as culturas, inclusive as indígenas, e compartilhar outras metodologias e abordagens pode ser interessante em qualquer conteúdo de ensino.
Educamos para a cidadania, e isso inclui conscientizar as pessoas independente da idade a saber do histórico da luta indígena, suas propostas, demandas e visões para a construção de uma sociedade igualitária e democrática.
Compartilhar com alegria, carinho e paciência as vivências e conhecimentos, construir laços de respeito com os alunos é essencial para abordar qualquer conteúdo, especialmente os que se referem ao combate contra o preconceito e a discriminação.
Espero que minhas dúvidas, experiências e reflexões possam contribuir em algo para algum colega educador que venha a se interessar pelo tema, independente de sua identidade étnica ou racial. Espero igualmente em breve não me sentir tão só nessa nave espacial gelada, e encontrar colegas indígenas com experiências semelhantes para trocar idéias, afinal cada contexto é único, mas continuamos juntos na mesma canoa.
(Via Rádio Yandê)
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INFORME: Independente, o Comunica Tudo é mantido por uma única pessoa, com colaborações eventuais. Apoie este projeto: clique nas publicidades ou contribua.
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..