Necessidade ou imaginação?
9 de Dezembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaPerspicácia, René Magritte, 1936 |
As coisas têm de ser assim, dizem-nos, porque têm de ser assim. Ouvimo-lo quando éramos crianças; quando somos adultos dizemo-lo nós. Antes não o percebíamos, e agora percebemos bem demais: o mundo está cheio de coisas sobre as quais não temos controlo.
Mas as coisas têm de ser assim, como? Inventamos teorias: teológicas ou políticas, de esquerda ou de direita. Tem de ser assim porque está escrito neste livro, A Bíblia, ou descrito naquele livro, O Capital. Há diferenças, claro, entre o fatalismo e o determinismo. Mas há também grandes semelhanças. Já repararam como há estirpes de pró-capitalismo e de anti-capitalismo que são praticamente iguais? Para uns o mercado tem sempre toda a razão, para outros o mercado tem sempre todo o poder. Para ambos, o mercado é impessoal, automático, indiferente e indivisível.
E assim chegamos à presente crise. Também dela se diz que tinha necessariamente de acontecer: porque o capitalismo foi contrariado, explicam aqueles, quando os estados se endividaram para satisfazer as populações; ou porque o capitalismo não foi contrariado, respondemos nós, quando os estados deixaram a finança à solta para satisfazer os seus donos. Em ambos os casos, a moral da história é que isto tinha necessariamente de acabar assim no mundo. E na Europa: era forçoso que o euro não funcionasse com culturas tão distintas, e portanto será também impossível fazer a União funcionar. E em Portugal: era inevitável que pagássemos pelos nossos erros, diz-se, mesmo que Wall Street, Atenas, Berlim e Bruxelas não existissem.
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O discurso da necessidade é pois, uma moral da história. Nós acreditamos porque somos viciados em morais da história. Mas atenção: uma moral da história não é a história.
A história é que tudo isto que existe e nos avassala — os estados e as bolsas de valores, os tribunais e os exércitos, as multinacionais e as federações, as moedas e os impostos — foi feito por gente como nós. Nem mais espertos, nem mais estúpidos, se tomados na sua generalidade.
E, em geral, o que um humano consegue fazer, outro consegue fazer melhor, ou refazer diferente, ou desfazer para fazer de novo. A tradição que um humano cria, outro quebra. Da prisão que um humano concebe, outro descobre como escapar.
Esta é uma ideia tão simples que podemos passar uma vida inteira sem lhe dar a devida importância.
Não peço agora que substituam o discurso da necessidade pelo discurso da imaginação. O primeiro é um vício, e portanto difícil de largar. O segundo é mais trabalhoso. Deve então começar-se a pouco e pouco: cinco minutos por dia.
Considere-se a simples pergunta: e se esta não fosse uma crise de necessidade, mas uma crise da imaginação? Os responsáveis são responsáveis por falta de imaginação. Em consequência, a falta de imaginação é irresponsável. É por falta de imaginação que certas consequências não foram previstas. Por falta de imaginação não conseguimos pôr-nos no lugar dos outros. E é talvez por falta de imaginação que não conseguimos encontrar a porta de saída.
Esta ideia não tem de ser verdade, não há qualquer necessidade disso. Não precisa sequer de acreditar nela. Dê-lhe somente cinco minutos de imaginação por dia. Ela não é outra moral da história. É outro começo de história.
(Crónica publicada no jornal Público, de Portugal, em 3 de Dezembro de 2012. Escrita por Rui Tavares)
Arquitetura da destruição
9 de Dezembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaO governo prevê construir pelo menos duas hidrelétricas até o fim da década no Tapajós, atingindo em cheio um rincão de biodiversidade e beleza
Por Carlos Juliano Barros
Quando decidiu encarar de carro os 3.338 quilômetros que separam o Rio de Janeiro do município de Itaituba, no oeste do Pará, o geólogo Juan Doblas – especialista em imagens de satélite – nem imaginava que daria uma contribuição e tanto à biologia da Amazônia. Enquanto dirigia pelo trecho da BR 163 que atravessa o Parque Nacional do Jamanxim, uma das doze unidades federais de conservação ambiental que protegem essa parte da floresta alimentada pela bacia do rio Tapajós, ele se deparou com uma macaca que, atordoada pelo barulho do automóvel, abandonou em plena estrada o filhote que carregava.
Depois de deixar o pequeno animal em uma árvore, permitindo que ele fosse resgatado pela mãe, Doblas resolveu filmar e tirar fotos do reencontro. “Quando cheguei a Itaituba, mostrei as imagens para um amigo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) especialista em macacos”, conta o geólogo. A surpresa de ambos não poderia ser maior.
Corredeiras do rio Tapajós que serão alagadas na construção da barragem
da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós no Parque Nacional da Amazônia
Foto: Fernanda Ligabue
Tratava-se de uma espécie em perigo, típica do estado do Amazonas, mas que, supõe-se, havia se deslocado para essa parte do Pará justamente por encontrar na floresta intocada do Tapajós um verdadeiro refúgio. “Foi um fato casual que mostrou dados completamente novos sobre a distribuição de espécies em extinção na Amazônia”, explica Doblas, que trabalha com geoprocessamento no Instituto Socioambiental (ISA), uma das principais organizações ambientalistas do país.
O geólogo narra esse episódio justamente para ilustrar a incrível – mas, em boa parte, desconhecida – biodiversidade que pode ser duramente golpeada pela construção de um complexo de hidrelétricas nos rios Tapajós e no seu afluente Jamanxim. O potencial levantado para essa bacia hidrográfica localizada no oeste do Pará comporta até sete usinas capazes de produzir no total cerca de 14 mil Megawatts (MW) – potência equivalente à da binacional Itaipu.
De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia 2021, documento produzido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME), ao menos duas delas devem entrar em funcionamento até o final desta década: São Luiz do Tapajós e Jatobá.
Se efetivamente sair do papel, o complexo hidrelétrico pode trazer impactos ambientais inimagináveis para os 850 quilômetros de águas de tons azuis e verdes do Tapajós, guarnecido por dezenas de reservas florestais e terras indígenas. Sem sombra de dúvida, trata-se de uma das mais belas partes da Amazônia. Tanto é assim que um dos destinos turísticos mais conhecidos da floresta, as paradisíacas praias de Alter do Chão, ficam no município de Santarém, na foz do rio.
Como nem poderia deixar de ser, a construção desse conjunto de hidrelétricas não vai acarretar problemas apenas ao meio ambiente. Segundo a Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras responsável pelo inventário das informações acerca das usinas do Tapajós, pelo menos 2,3 mil pessoas de 32 comunidades ribeirinhas serão diretamente afetadas se os sete empreendimentos forem levados a cabo. Outras 16 aldeias indígenas da etnia munduruku também terão parte de seus territórios inundada pelos reservatórios que serão formados pelas barragens.
Das usinas previstas no complexo hidrelétrico, duas delas – São Luiz do Tapajós e Jatobá, ambas no rio Tapajós – já tiveram seu processo de licenciamento ambiental iniciado no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Por enquanto, o custo das duas é estimado em R$ 23 bilhões, com verba carimbada pela segunda edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2).
São Luiz do Tapajós, a maior do complexo, com capacidade para 6.133 MW, é a que está em fase mais adiantada. A obra mexe em um cenário tão delicado que, mesmo antes de ser concluído seu Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), já vem provocando uma verdadeira batalha nos tribunais. No último mês de novembro, a Justiça Federal suspendeu, em primeira instância, o licenciamento da hidrelétrica por conta de uma ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF) de Santarém (PA).
“O pedido de suspensão se baseia em dois motivos. Em primeiro lugar, não foi realizada uma avaliação ambiental integrada. É preciso analisar o impacto conjunto de todas as usinas previstas para a bacia do Tapajós, e não o de apenas uma delas isoladamente”, explica Fernando Antônio Oliveira Júnior, procurador do MPF. “Além disso, não foi feita uma consulta prévia às populações indígenas que vão ser afetadas pelos empreendimentos. Essa consulta tem que ser anterior a qualquer tipo de autorização.”
O Tapajós é considerado a última grande fronteira energética da Amazônia. Por enquanto, é o único dos quatro grandes afluentes da margem direita do Amazonas que não foi represado para a produção de eletricidade em larga escala. Na década de 1970, os militares barraram o rio Tocantins para fazer a usina de Tucuruí, aquela que hoje é segunda maior hidrelétrica do Brasil em funcionamento, atrás apenas de Itaipu. Com a chegada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto e a criação do PAC, foram erguidas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, além de Belo Monte, no Xingu.
“Os governos de Lula e de Dilma Roussef estão decididos a transformar o Brasil na terceira maior economia do mundo à custa da nossa floresta”, critica o Padre Edilberto Silva, do Movimento Tapajós Vivo, fórum que reúne diversas organizações de defesa do meio ambiente e dos direitos das populações locais.
Por encomenda da ONG Conservação Internacional, Wilson Cabral, pesquisador e professor do Instituto de Tecnologia de Aeronáutica (ITA), está produzindo um estudo que calcula, na ponta do lápis, os reais custos econômicos, sociais e ambientais envolvidos na construção das usinas do Tapajós.
Em 2010, o professor produziu uma pesquisa semelhante sobre Belo Monte e concluiu que o empreendimento tinha mais de 90% de chance de inviabilidade. Segundo as complexas fórmulas matemáticas utilizadas pelo professor, o valor do prejuízo variava em um intervalo de US$ 7 milhões a US$ 8 bilhões.
O novo estudo está em fase final e deve ser divulgado no começo de 2013. Por essa razão, ele evita falar de valores. Mas, ao que tudo indica, o Tapajós segue a mesma trilha de Belo Monte. “A análise está apontando inviabilidade para todas as usinas e, consequentemente, para todo o complexo”, afirma Cabral. “Não é preciso empreender hidrelétricas no Tapajós para atender a demanda energética brasileira, desde que se invista em outras fontes e também se trabalhe a eficiência do consumo da energia que já é produzida.”
Arquitetura da destruição
Para acelerar o licenciamento das duas primeiras usinas do complexo, São Luiz do Tapajós e Jatobá, o governo federal precisou recorrer a um verdadeiro malabarismo legal. Em janeiro, a presidente Dilma Rousseff editou a Medida Provisória 558, convertida em lei no mês de junho, pela qual reduziu as áreas de cinco Unidades de Conservação (UCs) ambiental na entorno do rio Tapajós.
Em uma canetada, 75 mil hectares de florestas intocadas – que podem ser inundados com a formação dos lagos artificias das duas barragens – ficaram sem proteção do dia para noite. O governo argumenta que, sem essa medida, seria impossível iniciar o processo de licenciamento ambiental no Ibama.
Vista da Floresta Nacional Itaituba 1, na beira do rio Tapajós
Foto: Fernanda Ligabue
À primeira vista, a área “desafetada”, como se diz tecnicamente, parece não ser tão expressiva assim. Tanto é que o governo se defende das críticas argumentando que, para a construção das usinas de São Luiz do Tapajós e Jatobá, apenas 2% da dimensão total das reservas vão de fato para baixo d’água. Mas, neste caso, vale o popular ditado de que tamanho não é documento. “A parte que será afetada nas unidades de conservação é o coração, a parte mais importante das reservas, justamente por conta da proximidade com o rio”, explica Juan Doblas, do ISA.
A Medida Provisória posteriormente convertida em lei provocou uma celeuma no ICMBio, responsável pela gestão das reservas ambientais do Brasil. Em julho, técnicos do órgão federal lotados no escritório de Itaituba, responsáveis por 12 unidades de conservação na bacia do Tapajós, lançaram um manifesto público criticando duramente não só a decisão do governo federal de reduzir a área de proteção ambiental, mas sobretudo a forma atropelada com que ela foi tomada.
O MPF também está questionando judicialmente a via legal utilizada pelo governo federal para reduzir a área das UCs na bacia do Tapajós, através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). “O principal aspecto é formal”, explica o procurador Felipe Bogado. “A área de uma Unidade de Conservação não pode ser reduzida por meio de uma lei complementar que substitui uma Medida Provisória, como fez o governo”, acrescenta. Até o momento, o Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa o processo, não se pronunciou sobre o caso.
Tragédia anunciada, o simples anúncio da redução das áreas de preservação disparou automaticamente o gatilho da degradação dessa parte da Amazônia. “A região aqui é rica em minérios. Com a desafetação das áreas, está ocorrendo um aumento de pressão sobre a floresta, principalmente nessas áreas que não fazem mais parte das unidades de conservação”, explica Nilton Rascon, analista ambiental do ICMBio.
O crescimento da atividade de garimpos irregulares é perceptível a qualquer um que viaje pelo rio. No trecho de 400 quilômetros do Tapajós entre os municípios de Itaituba e Jacareacanga havia, até janeiro, cinco barcaças – chamadas de “escariantes” – fazendo garimpo diretamente no leito do rio. Com a desafetação das unidades de conservação, esse número pulou para impressionantes 35, em poucos meses deste ano. “O ICMBio precisa de mais fiscais na região. Ainda vêm muitos analistas de fora, de outros estados, para ajudar”, reconhece Rascon.
Impactos ambientais
A entrada do Parque Nacional (Parna) da Amazônia, primeira unidade de conservação desse tipo criada no país, em 1974, fica a pouco mais de uma hora de carro do centro de Itaituba. Para chegar até lá, é preciso encarar trechos de asfalto e de terra batida da BR 230, mais conhecida como Transamazônica, um dos projetos emblemáticos da ditadura militar. Se a barragem de São Luiz do Tapajós for construída, uma fração de 112 quilômetros da rodovia que corta o parque também será inundada. Até o momento, porém, nenhum representante do governo federal ou da Eletrobras veio a público para explicar como será feita a cirurgia para reconectar as pontas soltas da estrada.
Entrada do Parque Nacional da Amazônia, cortado pela rodovia Transamazônica
Foto: Fernanda Ligabue
E não é apenas uma parte da BR 230 que será alagada no Parna da Amazônia. Do principal mirante da reserva, aberto à visitação para turistas, é possível observar corredeiras formadas por um aglomerado de rochas encravado no meio do Tapajós. Digno de um cartão postal, esse trecho do rio não é protegido pelos órgãos ambientais apenas pelos seus atributos estéticos. Várias espécies de peixes aproveitam as corredeiras para fazer o épico ritual da piracema – a subida do rio necessária à sua reprodução.
Com a barragem de São Luiz do Tapajós, as corredeiras vão literalmente sumir do mapa, e a piracema será inviabilizada, trazendo consequências imprevisíveis. “A solução técnica é construir um tipo de escada para ajudar os peixes a subir o rio”, explica o biólogo Javan Lopes, servidor do ICMBio. “Porém, o ambiente da corredeira tem muito mais oxigênio. Então, mesmo que se construa a escada, os peixes podem morrer porque o oxigênio disponível na água diminui”, completa. Os técnicos do ICMBio não descartam uma verdadeira hecatombe ambiental: 90% das 400 espécies de peixes catalogadas no parque podem não resistir.
Nos últimos quatro anos, os gestores do Parna da Amazônia trabalharam continuamente no plano de manejo da unidade de conservação – levantamento meticuloso da fauna e da flora que, com a redução da área da reserva, será jogado literalmente na lata do lixo. Até o presente momento, foram registradas 390 espécies diferentes de aves. Entre os mamíferos catalogados, há animais que correm sério risco de extinção, como a onça-pintada, a onça-vermelha, o tamanduá-bandeira e a jaguatirica.
O destino de tamanha diversidade natural é objeto do EIA/Rima da usina de São Luiz do Tapajós, ainda em andamento. A estimativa inicial era que o estudo ficasse pronto até o final deste ano, já que o governo tinha planos de licitar a construção da hidrelétrica em 2013. Quando for finalizado, o documento vai possibilitar análises científicas mais refinadas sobre os impactos ambientais que podem de fato ocorrer. Mas o cronograma dificilmente será cumprido – ainda mais com a decisão judicial de novembro que suspendeu o licenciamento até que se realize uma avaliação integrada dos impactos gerados por todas as sete usinas previstas para os rios Tapajós e Jamanxim.
Não há dúvidas de que o complexo hidrelétrico vai reconfigurar a compleição natural do oeste do Pará. “Foram necessários milhares de anos para a criação de um equilíbrio ecológico entre as espécies, como a tartaruga e o tucunaré, que depende da subida e da descida dos rios”, explica Juan Doblas. “Essas barragens vão alterar completamente os ciclos de cheia e de seca não só dos rios Tapajós e Jamanxim, mas de toda a rede hidrográfica associada.”
Para entender como o fluxo do Tapajós se altera ao longo do ano, por exemplo, basta ir a Itaituba em duas épocas diferentes. A orla da cidade chega a alagar no período de cheia, que coincide com as chuvas do primeiro trimestre. Porém, na época da seca, intensificada a partir do segundo semestre, aparecem muitas praias nas margens do rio.
Os impactos ambientais provocados pelas usinas do Tapajós podem ser mais graves até do que os gerados por Belo Monte – isso, claro, se o Estado brasileiro mantiver sua palavra e não construir novas usinas no Xingu. Uma breve comparação fornece pistas do que está por vir: o lago artificial a ser formado com a barragem do rio Xingu no município de Altamira terá 510 quilômetros quadrados. Só na barragem de São Luiz do Tapajós, serão alagados 722 quilômetros quadrados – metade da área do município de São Paulo.
No Xingu, o trecho do rio a ser barrado terá 200 quilômetros de comprimento. No Tapajós, será duas vezes e meia maior. O Jamanxim, com três usinas, vai se converter numa sucessão de lagoas.
Outra pulga atrás da orelha dos ambientalistas diz respeito à relação entre o barrento rio Amazonas e o esverdeado Tapajós, que se encontram – mas não se misturam – no município de Santarém. A preocupação é com uma possível invasão das águas do Amazonas sobre as do Tapajós, o que significaria a ruína turística do balneário de Alter do Chão, por exemplo. “Se eu falar isso para um engenheiro da Eletrobras, ele vai rir na minha cara”, afirma Doblas. “Mas eu tenho questionado doutores em hidrologia, e eles me disseram que essa possibilidade tem que ser estudada. É preciso fazer um modelo no computador. É provável que isso aconteça? Acho que não. É possível? Sim.”
Vista da orla de Santarém (PA), na foz do Tapajós
Foto: Fernanda Ligabue
É justamente para dirimir essas dúvidas – e separar o que é mera especulação do que é risco de fato – que o Ministério Público Federal acionou a Justiça para cobrar a realização de uma Avaliação Ambiental Integrada (AAI) e de uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) dos impactos gerados por todas as usinas previstas no complexo hidrelétrico, e não apenas por São Luiz do Tapajós. “É uma postura preventiva do MPF. Queremos apenas que os marcos legais sejam respeitados”, explica o procurador Fernando Antônio Oliveira Júnior.
Por meio de nota emitida por sua assessoria de imprensa, a Eletrobras – empreendedora das usinas de São Luiz do Tapajós e de Jatobá – sustenta que a avaliação ambiental integrada “não é exigência legal para emissão das licenças ambientais”. A nota afirma também que a metodologia da AAI foi construída após a conclusão dos estudos do inventário do potencial hidrelétrico de toda a bacia do Tapajós.
Em outras palavras, a estatal argumenta que não havia obrigatoriedade de proceder a essa avaliação integrada na época em que fez o inventário das usinas. Por fim, a nota informa que a empresa está contratando uma equipe para fazer a AAI, que fará parte “do conjunto de estudos para a viabilidade de São Luiz do Tapajós e Jatobá, o que demonstra o comprometimento dos mesmos com as melhores práticas ambientais”.
A Aneel também se manifestou por meio de nota emitida pela assessoria de imprensa. A agência defende a construção das usinas no Tapajós, com a justificativa de que a hidroeletricidade tem “muito menos impacto ambiental” que outra fontes térmicas à base de combustíveis fósseis.
O documento afirma ainda que “o licenciamento é o principal movimento para a resolução de conflitos socioambientais, tendo em vista que a elaboração do EIA/Rima e a realização de audiências públicas possibilitam o estabelecimento de condicionantes pelos órgãos ambientais”.
Energia para quem
Nos hotéis e restaurantes do centro de Itaituba ou nos trechos mais recônditos da floresta do entorno do Tapajós, é possível dar de cara com caminhonetes e técnicos de camisa polo azul a serviço da CNEC Engenharia. A empresa é a responsável pela realização dos estudos de viabilidade e do projeto técnico da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, mas também operou nas usinas de Belo Monte, no rio Xingu, e de Estreito, no rio Tocantins, além de diversos outros empreendimentos de porte na Amazônia.
Até janeiro de 2010, a CNEC – fundada em 1959 por engenheiros da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) – constituía o braço intelectual, por assim dizer, de uma das maiores empreiteiras do país: a Camargo Corrêa, responsável por algumas das obras de envergadura do PAC, como a hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira. Quase três anos atrás, porém, a empresa foi vendida por R$ 170 milhões para o grupo australiano WorleyParsons, uma das mais conhecidas consultorias de energia em todo o mundo.
Foram justamente os engenheiros da CNEC que, na década de 1980, mapearam os projetos de construção de usinas no rio Tapajós – e em quase todos os afluentes do rio Amazonas. Era ela quem municiava de informações e pareceres técnicos a Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras responsável pelo aproveitamento do potencial hidrelétrico da região norte do país, desde o regime militar. “Naquela época, eu brincava dizendo que a Eletronorte era um escritório da Camargo Corrêa”, conta Arsênio Oswaldo Sevá Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e grande conhecedor do sistema elétrico nacional.
A CNEC é o elo técnico do “cartel barrageiro” que, segundo o professor Sevá, se instalou no Brasil na época da ditadura e, desde então, não mais arredou pé do país, pressionando os governos brasileiros ao longo do tempo para a construção de grandes hidrelétricas. Nesse clube restritíssimo, figuram as principais empreiteiras brasileiras, que rateiam entre si o bolo das obras de construção civil – elas são apelidadas de “cinco irmãs” e congregam Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Queiroz Galvão.
Também participam do grupo as corporações internacionais que fornecem equipamentos de alta tecnologia para as usinas, como a alemã Siemens e a japonesa Toshiba. Fecham a sociedade as grandes mineradoras que não apenas consomem – mas também vendem – a energia produzida nos rios amazônicos, como a Vale e norteamericana Alcoa, por exemplo.
Máquina movimenta minério de bauxita na mina da Alcoa localizada em Juruti (PA)
Foto: Fernanda Ligabue
A verdade é que o Brasil é dos poucos países do mundo – ao lado da China, da Índia, da Turquia e do Congo – onde ainda existe espaço para tirar do papel projetos bilionários de hidrelétricas. Em tempos de crise econômica global, construir barragens nos rios da Amazônia é a verdadeira galinha dos ovos de ouro para players do capitalismo que atravessam sérias dificuldades para fechar grandes negócios.
“Estamos oferecendo à indústria internacional a continuidade dos negócios a longo prazo e a custo baixo”, analisa Sevá. “O governo brasileiro libera as licenças, mesmo que se destruam o meio ambiente e a vida das populações locais. Depois, garante o custo baixo da mão-de-obra e, principalmente, do dinheiro necessário às obras, porque coloca as empresas estatais, os fundos de pensão e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para alavancar o negócio.”
Para bancar o prejuízo, o governo tem aberto as torneiras do BNDES. Na última semana de novembro de 2012, o banco anunciou o maior financiamento de toda a sua história para a conclusão das obras da usina: R$ 22,5 bilhões a serem pagos em três décadas. Antes dessa operação, porém, o BNDES já havia feito empréstimos-ponte (de curto prazo) de R$ 2,9 bilhões para o consórcio construtor da hidrelétrica.
“O custo de produzir hidrelétrica na Amazônia é muito alto e incerto”, afirma Wilson Cabral, do ITA. “Todos os projetos geraram aditivos contratuais da ordem de pelo menos 25%”, alerta. No caso do Tapajós, a engenharia financeira para viabilizar a obra ainda não está traçada – até porque os R$ 23 bilhões previstos para as usinas de São Luiz do Tapajós e Jatobá no orçamento do PAC 2 não passam de estimativas. Mas, assim como aconteceu nas usinas dos rios Madeira e Xingu, não há dúvidas de que o tripé formado por Eletrobras, fundos de pensão e BNDES deve entrar na jogada.
Tampouco está decidido o futuro da eletricidade a ser gerada. Na página 80 do Plano Decenal de Expansão de Energia 2020, é possível ler com todas as letras que ela servirá integralmente para alimentar a demanda das regiões Sudeste e Centro-Oeste. Porém, não é demais lembrar que o Pará concentra a maior província mineral do planeta. Além do ouro, que hoje é explorado em mais de 2 mil garimpos ao longo do rio Tapajós, as novas usinas devem consolidar o estado como um grande polo de alumínio.
Atualmente, existem quatro grandes projetos de extração e beneficiamento de bauxita no Pará, envolvendo gigantes como as brasileiras Vale e Votorantim, a norteamericana Alcoa e a norueguesa Hydro. Uma das principais reclamações dessas indústrias – chamadas de eletrointensivas, por consumirem eletricidade em larga escala – é o preço da energia. O complexo hidrelétrico do Tapajós é uma dos caminhos para baratear os custos. “Os grupos que estão por trás, apoiando inclusive financeiramente a construção das usinas, são empresas de exploração de commodities minerais. Então, esses empreendimentos não vão equalizar a demanda de energia para o Sudeste. Eles são para empresas que estão se assentando na região Norte”, finaliza Cabral.
Jovem baiano, criador do Mídia Periférica, ganha prêmio de empreendedorismo
5 de Dezembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaNa última sexta-feira (30), em São Paulo, Enderson recebeu o troféu do prêmio que tem por objetivo “reconhecer jovens empreendedores sociais que promovam mudanças significativas nas comunidades em que atuam”.
“Para mim foi um reconhecimento que simbolizou muito pelo que eu já passei na vida. Eu não tinha perspectiva de futuro. Depois da oficina do Instituto Mídia Étnica, pude visualizar algo não só para mim como também para minha comunidade”, comemora Enderson que ainda é blogueiro do Ibahia.
O projeto premiado foi criado em 2010, após o estudante que pretende ser jornalista e já atua como correspondente do Portal Correio Nagô em Salvador, ter participado do curso de Direito a comunicação e produção de vídeo ministrado pelo Instituto Mídia Étnica (IME) na comunidade de Sussuarana, na capital baiana, e fundaram o Grupo de Comunicadores Jovens Mídia Periférica.
O objetivo, segundo os criadores, era contrapor o que costuma ser exibido em “programas sensacionalistas de maior audiência da Mídia Convencional, que excluem a cultura das periferias e muitas vezes usam as comunidades como cenário para suas matérias sensacionalistas, utilizando imagens de miséria e desgraças”, descreve o grupo no blog.
“O Mídia Periférica quer empoderar a comunidade através da comunicação. A gente tem várias articulações”, complementa o jovem premiado, que faz questão ainda de lembrar das dificuldades que enfrentou na trajetória de dois anos do blog. “Não tinha nem computador. Eu fazia as coisas em uma lan house, tentando montar o blog e depois alimentando”, ressalta.
Para ele, a importância do prêmio se estende aos jovens de todas as comunidades. “O prêmio revigora não só o Mídia Periférica como dá outro olhar aos jovens da comunidade para se ver como atores e dá alternativas que não as drogas e o crime”, diz.
Empreendedorismo – Ainda como parte da premiação, os jovens participaram de um curso sobre empreendedorismo e que terá duração de seis meses. “O curso é uma parte presencial e outra a distância. O objetivo é entender como tornar esse projeto sustentável”, disse o jovem que soube da premiação há duas semanas enquanto participava de uma reunião com a comunidade.
Os participantes foram selecionados, de acordo com informações da premiação, após a análise de inúmeros projetos e a realização de diversas entrevistas com candidatos que foram classificados para a segunda fase do processo. A escolha foi feita pelo Comitê de Seleção – formado por pessoas de organizações governamentais, não governamentais e áreas acadêmicas.
Os jovens passarão a integrar também uma rede global de líderes mundiais, que têm atuação em diversos países e ganharão um prêmio em dinheiro para ajudar nos projetos.
Conheça os 10 jovens selecionados nesta edição, em ordem alfabética:
Assista o vídeo com o discurso de Enderson no evento
*Por Anderson Sotero
A era dos monólogos desenfreados
4 de Dezembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaEm meus relacionamentos diários, alguns obrigatórios e outros por livre escolha, quase sempre me deparo com situações que poderia classificar como extremas. Digo extremas porque as pessoas parecem muito empenhadas em ultrapassar os limites. Parecem viver já no limiar de todas as coisas.
Quem dirige um veículo motorizado, por exemplo, não somente se locomove através de uma máquina, mas corre no limite da pressa, passando por cima das pessoas (sem desejar a morte) e desrespeitando as leis (sem desejar ser multado). Nas relações empregatícias, o bem-estar pessoal fica por cima de tudo, ainda que isso lhe traga dor e desconforto.
Aqueles que costumam discutir política, futebol e religião, não compartilham pensamentos, ideias e sentimentos. Suas palavras ultrapassam seus lábios como quem defende a própria vida, como se estivesse no limiar da morte. Reconhecer-se errado? Jamais. Construir algo junto? Nunca. Somos egoístas.
Não há dúvida: cometo erros com certa frequência. Mas viver no limite extremado de todas as coisas parece-me um excesso para lá de estúpido. Muitas vezes me pergunto: onde aprendemos a viver assim? Por que não entendemos que o meu bem-estar depende obrigatoriamente do bem-estar daqueles que vivem ao meu redor. E quando digo "ao meu redor", refiro-me também ao motorista insano que por nada quase atropela alguém, ao chefe que brada e mente para impor sua vontade (mesmo na posição de chefe), ao enfermeiro que cuida de um idoso e o espanca na solidão de uma casa.
Queria mesmo compreender que limiar é este que nos leva a infringir os bons costumes, as gentilezas, os sorrisos e as caridades. Queria entender por que depositamos tanta energia em dissimulações, mentiras e encenações e abraçamos nossos colegas sem nenhum aperto ou emoção?
Temos tantos discursos de 'bom-mocismo' preparados em nossa língua, tantos conselhos e opiniões. Até mesmo um falso "você precisa de ajuda" disparamos para completar nosso mise en scène, mesmo que em nosso íntimo estejamos gritando "não peça nada, por favor". Vivemos no limiar da morte, cansados demais para viver, empenhados em defender nosso ego e repletos de platitudes para o bem-estar alheio.
Quem sabe se tivéssemos a efêmera oportunidade de conversar com "aquele idiota" que atravessou correndo na frente do meu carro possante, poderíamos entender, de repente, que sua corrida á para salvar alguém. E uma leve pisada no freio de seu poderoso carro também não atrapalharia sua rápida e atribulada ida ao cartório. Quero dizer que você pode ir correndo ao banco sem precisar odiar e atropelar um ser humano que tenha labirintite, por exemplo. Você pode presidir uma instituição ou uma empresa sem sacanear e humilhar ninguém.
Você não sabe de tudo. Ninguém sabe. Mas para cada coisa que não sabemos sempre haverá a fabulosa oportunidade de perguntar. Tente. Converse com seu semelhante, este ser humano de carne e osso que seus olhos miram. Afinal, estamos na era da comunicação e parece que somos incapazes de dialogar. Perdão. Talvez estejamos na era dos monólogos desenfreados de mim, para mim e sobre mim. Perdão.
*Foto publicada no Portal Terra. Cidade de Dresden, Alemanha, na Segunda Guerra Mundial.
A língua e as línguas do Brasil
4 de Dezembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaNo auge de sua loucura, o ultranacionalista personagem de Triste Fim de Policarpo Quaresma, livro clássico de Lima Barreto (1881-1922), conclamava seus contemporâneos a abandonar a língua portuguesa em favor do tupi. Hoje, 83 anos depois da publicação da obra, o sonho da ficção surge na realidade. O novo Policarpo é um respeitado professor e pesquisador de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Navarro. Há dois meses, ele fundou a Tupi Aqui, uma organização não-governamental (ONG) que tem por objetivo lutar pela inclusão do idioma como matéria optativa no currículo das escolas paulistas. “Queremos montar vinte cursos de tupi em São Paulo no ano que vem”, disse à SUPER. O primeiro passo já está dado: em maio, Navarro lançou o seu Método Moderno de Tupi Antigo e, em setembro, colocou nas livrarias Poemas – Lírica Portuguesa e Tupi de José de Anchieta (ambos pela Editora Vozes), edição bilíngüe de obras do primeiro escritor em língua tupi (veja na página 83).
À primeira vista o projeto parece birutice. Só que há precedentes. Em 1994, o Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro aprovou uma recomendação para que o tupi fosse ensinado no segundo grau. A decisão nunca chegou a ser posta em prática por pura falta de professores. Hoje, só uma universidade brasileira, a USP, ensina a língua, considerada morta, mas ainda não completamente enterrada.
Em sua forma original, o tupi, que até meados do século XVII foi o idioma mais usado no território brasileiro, não existe mais. Mas há uma variante moderna, o nheengatu (fala boa, em tupi), que continua na boca de cerca de 30 000 índios e caboclos no Amazonas. Sem falar da grande influência que teve no desenvolvimento do português e da cultura do Brasil. “Ele vive subterraneamente na fala dos nossos caboclos e no imaginário de autores fundamentais das nossas letras, como Mário de Andrade e José de Alencar”, disse à SUPER Alfredo Bosi, um dos maiores estudiosos da Literatura do país. “É o nosso inconsciente selvagem e primitivo.”
Todo dia, sem perceber, você fala algumas das 10 000 palavras que o tupi nos legou. Do nome de animais, como jacaré e jaguar, a termos cotidianos como cutucão, mingau e pipoca. É o que sobrou da língua do Brasil.
Índio: "Você conhece a minha língua?"
Bandeirante: "Sim. conheço! Sou um grande falador dela!"
Do Ceará a São Paulo, mudavam só os dialetos
Quando ouvir dizer que o Brasil é um país tupiniquim, não se irrite. Nos primeiros dois séculos após a chegada de Cabral, o que se falava por estas bandas era o tupi mesmo. O idioma dos colonizadores só conseguiu se impor no litoral no século XVII e, no interior, no XVIII. Em São Paulo, até o começo do século passado, era possível escutar alguns caipiras contando casos em língua indígena. No Pará, os caboclos conversavam em nheengatu até os anos 40.
Mesmo assim, o tupi foi quase esquecido pela História do Brasil. Ninguém sabe quantos o falavam durante o período colonial. Era o idioma do povo, enquanto o português ficava para os governantes e para os negócios com a metrópole. “Aos poucos estamos conhecendo sua real extensão”, disse à SUPER Aryon Dall’Igna Rodrigues, da Universidade de Brasília, o maior pesquisador de línguas indígenas do país. Os principais documentos, como as gramáticas e dicionários dos jesuítas, só começaram a ser recuperados a partir de 1930. A própria origem do tupi ainda é um mistério. Calcula-se que tenha nascido há cerca de 2 500 anos, na Amazônia, e se instalado no litoral no ano 200 d.C. “Mas isso ainda é uma hipótese”, avisa o arqueólogo Eduardo Neves, da USP.
Três letras fatais
Quando Cabral desembarcou na Bahia, a língua se estendia por cerca de 4 000 quilômetros de costa, do norte do Ceará a Iguape, ao sul de São Paulo. Só variavam os dialetos. O que predominava era o tupinambá, o jeito de falar do maior entre os cinco grandes grupos tupis (tupinambás, tupiniquins, caetés, potiguaras e tamoios). Daí ter sido usado como sinônimo de tupi. As brechas nesse imenso território idiomático eram os chamados tapuias (escravo, em tupi), pertencentes a outros troncos lingüísticos, que guerreavam o tempo todo com os tupis. Ambos costumavam aprisionar os inimigos para devorá-los em rituais antropofágicos. A guerra era uma atividade social constante de todas as tribos indígenas com os vizinhos, até com os da mesma unidade lingüística.
Um dos viajantes que escreveram sobre o Brasil, Pero Magalhães Gândavo, atribuiu, delirantemente, a belicosidade dos tupinambás à língua. “Não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, pois assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei e, desta maneira, vivem sem justiça e desordenadamente”, escreveu em 1570. Para os portugueses, portanto, era preciso converter os selvagens à fé católica, o que só aconteceu quando os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil, em 1553. Esses missionários se esmeraram no estudo do tupi e a eles se deve quase tudo o que hoje é conhecido sobre o idioma.
Também, não havia outro jeito. Quando Portugal começou a produzir açúcar em larga escala em São Vicente (SP), em 1532, a língua brasílica, como era chamada, já tinha sido adotada por portugueses que haviam se casado com índias e por seus filhos. “No século XVII, os mestiços de São Paulo só aprendiam o português na escola, com os jesuítas”, diz Aryon Rodrigues. Pela mesma época, no entanto, os faladores de tupi do resto do país estavam sendo dizimados por doenças e guerras. No começo daquele mesmo século, a língua já tinha sido varrida do Rio de Janeiro, de Olinda e de Salvador, as cidades mais importantes da costa. Hoje, os únicos remanescentes dos tupis são 1 500 tupiniquins do Espírito Santo e 4 000 potiguaras da Paraíba. Todos desconhecem a própria língua. Só falam português.
Haja parente!
O tupi e outras línguas de sua família.
É comum ver políticos do hemisfério norte confundindo o Brasil com a Argentina e o espanhol com o português. Pois a mesma confusão é feita, aqui no Brasil, com as línguas dos índios. Poucos sabem, mas é errado dizer que os índios falavam tupi-guarani. “Tupi-guarani é uma família lingüística, não um idioma”, explica o lingüista Aryon Rodrigues. Ele a compara à família neolatina, à qual pertencem o português, o espanhol e o francês. Os três têm uma origem comum, o latim, mas diferem uns dos outros. O extinto tupi antigo, o ainda usadíssimo guarani moderno – falado por quase
5 milhões de pessoas no Paraguai e 30 000 no Brasil – e outros 28 idiomas derivam de uma mesma fala, o proto-tupi. Os guaranis e os tupis até que se entendiam. Mas, dentro da família, eles são apenas parentes próximos, não irmãos. Para perguntar “qual é o seu nome”, um guarani diria Mba’eicha nde r’era?, e um tupiniquim, Mamõ-pe nde r’era?. Não dá para confundir, dá?
O primeiro gramático
Joseph de Anxieta, mais tarde José de Anchieta (1534-1595), sempre foi poliglota. Nascido nas Ilhas Canárias, era filho de pai basco e aprendeu, ao mesmo tempo, o castelhano e o complicado idioma paterno. Adolescente, mudou-se para Portugal, onde estudou o português, o latim e o grego.
Por tudo isso, não é de espantar que Anchieta tenha aprendido o tupi tão depressa. Seus companheiros diziam que ele tinha facilidade porque a língua era igualzinha ao basco que assimilara quando pequeno. Bobagem. Tão logo pôs os pés no Brasil, em 1553, aos 19 anos, começou a desenvolver a primeira gramática da língua da terra. Em 1560, sua Arte de Grammatica da Lingoa Mais Vsada na Costa do Brasil já era um best-seller entre os jesuítas. O livro, que só seria impresso em 1595, virou leitura de cabeceira dos jovens padres encarregados da catequese. Com ele, nascia o tupi escrito, que Anchieta usou para compor mais de oitenta poemas sacros e peças de teatro, inaugurando a literatura brasileira.
O português foi imposto por decreto
Há 300 anos, morar na vila de São Paulo de Piratininga (peixe seco, em tupi) era quase sinônimo de falar língua de índio. Em cada cinco habitantes da cidade, só dois conheciam o português. Por isso, em 1698, o governador da província, Artur de Sá e Meneses, implorou a Portugal que só mandasse padres que soubessem “a língua geral dos índios”, pois “aquela gente não se explica em outro idioma”.
Derivado do dialeto de São Vicente, o tupi de São Paulo se desenvolveu e se espalhou no século XVII, graças ao isolamento geográfico da cidade e à atividade pouco cristã dos mamelucos paulistas: as bandeiras, expedições ao sertão em busca de escravos índios. Muitos bandeirantes nem sequer falavam o português ou se expressavam mal. Domingos Jorge Velho, o paulista que destruiu o Quilombo de Palmares em 1694, foi descrito pelo bispo de Pernambuco como “um bárbaro que nem falar sabe”. Em suas andanças, essa gente batizou lugares como Avanhandava (lugar onde o índio corre), Pindamonhangaba (lugar de fazer anzol) e Itu (cachoeira). E acabou inventando uma nova língua.
“Os escravos dos bandeirantes vinham de mais de 100 tribos diferentes”, conta o historiador e antropólogo John Monteiro, da Universidade Estadual de Campinas. “Isso mudou o tupi paulista, que, além da influência do português, ainda recebia palavras de outros idiomas.” O resultado da mistura ficou conhecido como língua geral do sul, uma espécie de tupi facilitado.
No Maranhão e no Pará também surgiu uma língua geral, o nheengatu, cruzamento do dialeto tupinambá com idiomas indígenas da Amazônia. O nheengatu imperou em Belém e São Luís até os idos de 1750 e chegou a ser ensinado pelos jesuítas, junto com o português. Foi adotado até por índios de línguas dos troncos jê, aruak e karib, que acabaram esquecendo seu modo de expressão original.
Coisa do diabo
Irritado com o uso generalizado das línguas nativas, o Marquês de Pombal (1699-1782), que então governava Portugal e suas colônias, resolveu impor o português na marra, por decreto, em 1758. Num documento maluco, o Alvará do Diretório dos Índios, proibiu o uso de todas as línguas indígenas e o ensino do nheengatu, “invenção diabólica” dos jesuítas. No ano seguinte, vilas de toda a Amazônia foram rebatizadas com topônimos portugueses. Surgiram, assim, Santarém e Óbidos no Pará, Barcelos e Moura no Amazonas.
A briga culminaria com a expulsão dos jesuítas, em 1759. “Mas a língua geral não sumiu de imediato”, observa o etno-historiador José de Ribamar Bessa Freire, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “O português só veio se firmar no final do século passado, quando os nordestinos migraram em massa para a Amazônia, atrás da borracha.” Hoje, o uso daquela língua geral se restringe à região do alto Rio Negro e a um pedaço da Venezuela.
Como os índios, o tupi chegou ao final do século XX. Modificado, reduzido, mas ainda respirando. Da próxima vez que alguém chamar o Brasil de tupiniquim na sua frente, orgulhe-se. O país deve muito aos tupis. E até fala um pouquinho da língua deles.
Oui, francês fala tupi
Além de influenciar o português brasileiro, o tupi transbordou para outras línguas. Os índios bororos, do Mato Grosso, até hoje chamam anta de tapira e tesoura de piraia (piranha), palavras de origem tupi introduzidas pelos bandeirantes. Mas a língua também chegou à Europa. Os franceses, que ocuparam o Rio de Janeiro por vinte anos (de 1555 a 1575), carregaram um monte de palavras nativas. Foram tantas que um padre francês, Constantin Tastevin, elaborou no século XVI um dicionário dos tupinismos franceses. Veja alguns dos que ainda sobrevivem:
acajou (caju) - de acaîú
ananas (abacaxi) - de na’na
boucan (carne defumada) - de moka’em
jaguar (onça) - de jagûara
manioc (mandioca) - de mandi’oka
petun (tabaco) - petyma
tapir (anta) - tapi’ira
Para saber mais:
Negros da Terra – Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo, de John Manuel Monteiro. Companhia das Letras, São Paulo, 1994.
O começo do fim
Ascensão e queda de um idioma
Século XVI
O tupi, principalmente o dialeto tupinambá, que ficou conhecido como tupi antigo, é falado da foz do Amazonas até Iguape, em São Paulo. Em vermelho, você vê os grupos tapuias, como os goitacás do Rio de Janeiro, os aimorés da Bahia e os tremembés do Ceará, que viviam em guerra com os tupis. De Cananéia à Lagoa dos Patos fala-se o guarani.
Séculos XVII/XVIII
O extermínio dos tupinambás, a partir de 1550, a imigração portuguesa maciça e a introdução de escravos africanos praticamente varre o tupi da costa entre Pernambuco e Rio de Janeiro. Em São Paulo e no Pará, no entanto, ele permanece como língua geral e se espalha pelo interior, levado por bandeirantes e jesuítas.
Século XX
O português se consolida a partir da metade do século XVIII. O tupi antigo desaparece completamente, junto com outras línguas indígenas (das 340 faladas em 1500, sobrevivem, hoje, apenas 170). A língua geral da Amazônia, o nheengatu, continua sendo falada no alto Rio Negro e na Venezuela por cerca de 30 000 pessoas.
O mundo em palavras
Uma língua que só expressa o concreto.
Em tupi, todos os verbos no infinitivo são substantivos.
Assim, nhe’enga é “a fala”, e não “falar”. O verbo só vai existir se estiver ligado a uma pessoa. Como em ere-nhe’eng, ou “tu falas”.
A realidade ajuda a criar conceitos abstratos.
“Silêncio”, por exemplo, é kirir˜i, inspirado no cri-cri dos insetos na mata, à noite.
Elementos da natureza nunca são ligados à idéia de posse.
Você diz xe py (meu pé) ou xe u’uba (minha flecha), mas nunca faz o mesmo para elementos da natureza. Em tupi, não se diz nde ybyrá (tua árvore), mas somente ybyrá (árvore).
Não existe tempo verbal. Todos os verbos estão no passado.
Para dizer “eu saio” e “eu saí” a expressão é a mesma: a-sem.
O dia de hoje não é um período de tempo, mas um lugar iluminado pelo sol.
Para se falar hoje, diz-se Kó ‘ara pupé (dentro desta claridade), expressão que poderia ser desenhada como abaixo.
Sobre a série Tupi Guarani Nheengatu* - reunião de textos e informações sobre nossas línguas ancestrais, o tupi, o guarani e o nheengatu. Participe, colabore e envie material.