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Por que a Lei Carolina Dieckmann não vai funcionar
23 de Abril de 2013, 21:00 - sem comentários ainda
Por que a Lei Carolina Dieckmann não vai funcionar? Para jurista, ela busca um efeito preventivo que seria alcançado mais facilmente por medidas civis; depende de uma Justiça que, na área criminal, está sucateada; e tenta proteger segredos que na era do Facebook muitos estão empenhados em divulgar.
Por Luiz Flávio Gomes *
Constitui crime, consoante a Lei 12.737/12 (art. 154-A), “invadir dispositivo informático alheio (…) com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo (…) ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”.
Em debate promovido na Fecomercio-SP, mês passado, sob a coordenação de Renato Opice Blum e Rony Vainzof, tive a oportunidade de externar meu pessimismo em relação à eficácia penal da lei acima referida. A crença de que a lei penal possa ter efeito preventivo está cada vez mais discutida. Ninguém concordaria com a ausência de tutela da nossa privacidade, intimidade; lei tem que existir para nos proteger. O problemático é esperar que isso seja feito pela lei penal. Eu, particularmente, confio mais em medidas civis (determinadas por juiz civil, como remoção de uma notícia ofensiva). Confio mais em indenizações.
Quem conhece minimamente o funcionamento da Justiça criminal no Brasil não pode se iludir: ela está, em geral, sucateada. Porque sucateada está a polícia civil (investigativa), que conta com incontáveis cadáveres nas suas portas, o que já é suficiente para sugar todos os seus recursos materiais e pessoais. Medidas civis urgentes são mais eficazes nessa área. De qualquer modo, houve intenção de se suprir uma lacuna no Brasil. O relator do projeto, deputado Paulo Teixeira, procurou fazer o melhor texto, mas todo conjunto de palavras permite mil interpretações. Numa rápida olhada, assinalei 104 conceitos dados pela lei, todos dependentes de interpretação. As penas são baixas (em regra, até dois anos), logo, a chance de prescrição é muito grande. Por todos esses motivos, não confio na eficácia preventiva dessa lei. A tutela civil teria condições de ser mais eficiente.
Extimidade
Na interpretação e aplicação dessa lei os operadores jurídicos devem atentar para o fenômeno da extimidade, que pode constituir uma forma de autorização tácita da quebra do sigilo das nossas intimidades (dos nossos segredos). “Teu segredo é teu prisioneiro. Uma vez libertado, volta contra ti e te aprisiona” (provérbio oriental).
Extimidade é o contrário de intimidade. É lançar ao público, sobretudo por meio das redes sociais, algo que pertence à nossa privacidade. Como bem pondera Bauman (em La Repubblica, de 09.04.11, tradução de Moisés Sbardelotto), “os relacionamentos humanos devem ter mudado em notável medida e de modo particularmente drástico nestes últimos 30-40 anos”. Modificaram-se a tal ponto que, conforme hipótese levantada pelo psiquiatra e psicanalista Serge Tisseron, as relações consideradas como “significativas” passaram da “intimité” à “extimité”, isto é, da intimidade ao que ele chama de “extimidade”. (…)”
“Analogamente a outras categorias de bens pessoais, de fato, o segredo é, por definição, aquela parte do conhecimento cujo compartilhamento com os outros é rejeitado ou proibido e/ou estritamente controlado. O segredo, por assim dizer, caracteriza e contra-distingue os limites da privacidade, sendo esta última a esfera destinada a ser própria, o território da própria soberania indivisa, dentro do qual tem-se o poder total e indivisível de decidir “o que sou e quem sou” e partir da qual podem ser lançadas e relançadas as campanhas para fazer com que sejam reconhecidas e respeitadas as próprias decisões e mantê-las como tais” (Bauman).
No mundo mais flexível e transitório das redes sociais, o que há de mais frequente é a exteriorização das intimidades. Nos tornamos, na era comunicacional, o oposto do que se admitia como padrão de conduta, antigamente. Nossos avós, certamente, eram muito mais recatados.
“Em uma surpreendente inversão com relação aos hábitos dos nossos antepassados – continua Bauman -, porém, perdemos a coragem, a energia e principalmente a vontade de persistir na defesa desses direitos, daqueles insubstituíveis elementos constitutivos da autonomia individual. Aquilo que nos assusta hoje não é tanto a possibilidade da traição ou da violação da privacidade, mas sim o seu oposto, isto é, a perspectiva de que todas as vias de saída possam ser bloqueadas”.
O que está mudando? Nós já não queremos apenas “ser”, não queremos somente “ser”: depois das redes sociais e particularmente do Facebook, muito querem “ser aparecidos” (expostos ao público). Quem não aparece não existe. O tormentoso, assim, já não é a divulgação (para muitos) dos seus segredos, sim, a não divulgação deles.
Uma coisa é usar as redes sociais para instruir, para educar, para transmitir ideias, para debater temas polêmicos, para desenvolver grandes manifestações em defesa da “polis”, outra bem distinta é usá-la para lançar ao público algo da nossa intimidade, da nossa privacidade, algo que deveria ficar restrito a cada um de nós.
Consoante Bauman (texto citado), “o advento da sociedade-confessionário marcou o triunfo definitivo daquela invenção esquisitamente moderna que é a privacidade – mas também marcou o início das suas vertiginosas quedas do apogeu da sua glória. Triunfo que se revelou ser uma vitória de Pirro, naturalmente, visto que a privacidade invadiu, conquistou e colonizou a esfera pública, mas ao preço de perder o seu direito ao segredo, seu traço distintivo e privilégio mais caro e mais ciumentamente defendido”.
Pelo que parece (conclui Bauman), “não sentimos mais alegria ao ter segredos, a menos que se trate daquele gênero de segredos capaz de exaltar o nosso ego, atraindo a atenção dos pesquisadores e dos talk-shows televisivos, das primeiras páginas dos tabloides e das capas das revistas de papel envernizado. (…)”.
Em suma, quem revela suas intimidades (segredos) para o público, naturalmente está abrindo mão, nessa parte, da sua tutela jurídica. Esse é um campo de ausência de tutela penal, por deliberação do próprio interessado.
* Luiz Flávio Gomes, jurista e presidente do Instituto Avante Brasil, está no blogdolfg.com.br.
Ex-delegado: Folha financiava operações na ditadura; Frias visitava o DOPS, era amigo pessoal de Fleury
23 de Abril de 2013, 21:00 - sem comentários aindaCláudio Guerra afirmou que os recursos vinham de bancos, como o Banco Mercantil do Estado de São Paulo, e empresas, como a Ultragas e o jornal Folha de S. Paulo. “Frias (Otávio, então dono do jornal) visitava o DOPS, era amigo pessoal de Fleury”
do portal Terra
O ex-delegado da Polícia Civil Claudio Guerra afirmou nesta terça-feira, à Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, que foi o autor da explosão de uma bomba no jornal O Estado de S. Paulo, na década de 1980, e afirmou que a ditadura, a partir de 1980, decidiu desencadear em todo o Brasil atentados com o objetivo de desmoralizar a esquerda no País.
“Depois de 1980 ficou decidido que seria desencadeada em todo o País uma série de atentados para jogar a culpa na esquerda e não permitir a abertura política”, disse o ex-delegado em entrevista ao vereador Natalini (PV), que foi ao Espírito Santo conversar com Guerra.
No depoimento, Guerra afirmou que “ficava clandestinamente à disposição do escritório do Sistema Nacional de Informações (SNI)” e realizava execuções a pedido do órgão.
Entre suas atividades na cidade de São Paulo, Guerra afirmou ter feito pelo menos três execuções a pedido do SNI. “Só vim saber o nome de pessoas que morreram quando fomos ver datas e locais que fiz a execução”, afirmou o ex-delegado, dizendo que, mesmo para ele, as ações eram secretas.
Guerra falou também do Coronel Brilhante Ustra e do delegado Sérgio Paranhos Fleury, a quem acusou de tortura e assassinatos. Segundo ele, Fleury “cresceu e não obedecia mais ninguém”. “Fleury pegava dinheiro que era para a irmandade (grupo de apoiadores da ditadura, segundo ele)”, acusou.
O ex-delegado disse também que Fleury torturava pessoalmente os presos políticos e metralhou os líderes comunistas no episódio que ficou conhecido como Chacina da Lapa, em 1976.
“Eu estava na cobertura, fiz os primeiros disparos para intimidar. Entrou o Fleury com sua equipe. Não teve resistência, o Fleury metralhou. As armas que disseram que estavam lá foram ‘plantadas’, afirmo com toda a segurança”, contou.
Guerra disse que recebia da irmandade “por determinadas operações bônus em dinheiro”. O ex-delegado afirmou que os recursos vinham de bancos, como o Banco Mercantil do Estado de São Paulo, e empresas, como a Ultragas e o jornal Folha de S. Paulo. “Frias (Otávio, então dono do jornal) visitava o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), era amigo pessoal de Fleury”, afirmou.
Segundo ele, a irmandade teria garantido que antigos membros até hoje tivessem uma boa situação financeira.
‘Enterrar estava dando problema’
Segundo Guerra, os mortos pelo regime passaram a ser cremados, e não mais enterrados, a partir de 1973, para evitar “problemas”. “Enterrar estava dando problema e a partir de 1973 ou 1974 começaram a cremar. Buscava os corpos da Casa de Morte, em Petrópolis, e levava para a Usina de Campos”, relatou.
Um Feliciano piorado na Assembleia mineira
17 de Abril de 2013, 21:00 - sem comentários aindaFavor: Em carta, Mosconi pede um rim para um amigo do prefeito de Campanha. Valor: 8 mil reais. Foto: Juarez Rodrigues/ D. A Press |
Em 19 de fevereiro, o juiz Narciso Alvarenga de Castro, da 1ª Vara Criminal de Poços de Caldas, condenou quatro médicos envolvidos no esquema de compra e venda de órgãos humanos, a chamada “Máfia dos Transplantes”. João Alberto Brandão, Celso Scafi, Cláudio Fernandes e Alexandre Zincone, todos da Irmandade Santa Casa, eram ligados à MG Sul Transplantes. Scafi era sócio de Mosconi em uma clínica da cidade. A ONG era responsável pela organização de uma lista de pacientes particulares que encomendavam e pagavam por órgãos retirados de pacientes ainda vivos. A quadrilha realizava os transplantes na Santa Casa, o que garantia, além do dinheiro tomado dos beneficiários da lista, recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) para o hospital.
A máfia de médicos de Poços de Caldas foi descoberta em 2002 por causa do chamado “Caso Pavesi”, que chegou a ser investigado na Câmara dos Deputados pela CPI do Tráfico de Órgãos Humanos, em 2004. Em 19 de abril de 2000, Paulo Veronesi Pavesi, 10 anos de idade à época, caiu de um brinquedo no prédio onde morava e foi levado à Santa Casa. O menino foi atendido pelo médico Alvaro Ianhez, coordenador do setor de transplantes do hospital e, soube-se depois, chefe da central clandestina de tráfico de órgãos. Ianhez é amigo particular do deputado Mosconi, responsável por sua nomeação no hospital.
A partir de uma denúncia do analista de sistemas Paulo Pavesi, pai do garoto, a PF abriu um inquérito e descobriu que a equipe de Ianhez havia decretado a morte encefálica de Paulo quando ele estava sob efeito de substâncias depressivas do sistema nervoso central. Ou seja, teve os rins, o fígado e as córneas retirados quando provavelmente ainda estava vivo. Pavesi pai foi obrigado a pedir asilo na Itália, depois de ser ameaçado de morte por diversas vezes em Minas Gerais. Atualmente, mora em Londres, onde aguarda até hoje o julgamento do caso do filho.
Outros oito casos semelhantes foram descobertos pela PF e pelo Ministério Público Federal durante as investigações. Um deles, o do trabalhador rural João Domingos de Carvalho, foi o que resultou nas condenações de fevereiro passado. Internado por sete dias na enfermaria da Santa Casa, entre 11 e 17 de abril de 2001, Carvalho foi dado como morto quando estava sedado e teve os rins, as córneas e o fígado retirados pelos médicos Fernandes e Scafi. “Era pura ganância, vontade de enriquecimento rápido, sem se preocupar com o sofrimento dos demais seres humanos”, escreveu o juiz Narciso de Castro na sentença que condenou os médicos da Santa Casa a penas de 8 a 11 anos de prisão, em primeira instância. Todos continuarão em liberdade até o julgamento dos recursos.
Pavesi não se amedrontou à toa. Em 24 de abril de 2002, Carlos Henrique Marcondes, administrador da Santa Casa, foi assassinado no dia exato de seu depoimento no Ministério Público sobre a atuação da máfia dos transplantes lotada no hospital. Ele tinha gravado todas as conversas com os médicos envolvidos no tráfico de órgãos e pretendia entregar as fitas às autoridades. Antes de falar, Marcondes foi encontrado morto no próprio carro com um tiro na boca. Segundo um delegado da Polícia Civil da cidade, o ex-PM Juarez Vinhas, tratou-se de suicídio. O caso foi sumariamente arquivado. O laudo pericial constatou, porém, que três tiros haviam sido disparados contra Marcondes, embora apenas um o tenha atingido.
Vítimas. Paulo Pavesi, de 10 anos, teve seus órgãos retirados antes da morte. O pai, ameaçado, deixou o País. Foto: Reprodução de vídeo e Olga Vlahou
Mais ainda: a arma usada e colocada na mão da vítima desapareceu do fórum de Poços de Caldas, razão pela qual foi impossível periciá-la. Levado à Santa Casa, o corpo do administrador foi recebido por dois médicos do hospital. Um deles, João Alberto Brandão, foi condenado em fevereiro. O outro, Félix Gamarra, chegou a ser indiciado, mas acabou beneficiado pela lei de prescrição penal, por ter mais de 70 anos de idade. A dupla raspou e enfaixou a mão direita de Marcondes, supostamente usada para apertar o gatilho, de modo a inviabilizar o exame de digitais e presença de resíduos de pólvora. E o advogado da Santa Casa, o também ex-PM Sérgio Roberto Lopes, providenciou a lavagem do carro.
O nome de Mosconi apareceu na trama em 2004, durante a CPI do Tráfico de Órgãos. Convocado pela comissão, o delegado Célio Jacinto, responsável pelas investigações da Polícia Federal, revelou a existência de uma carta do parlamentar na qual ele solicita ao amigo Ianhez o fornecimento de um rim para atender ao pedido do prefeito de Campanha, por 8 mil reais. A carta, disse o delegado, foi apreendida entre os documentos de Ianhez, mas desapareceu misteriosamente do inquérito sob custódia do Ministério Público Estadual de Minas Gerais.
Mosconi foi ouvido pelo juiz Narciso de Castro e confirmou conhecer Ianhez desde os anos 1970. O parlamentar disse “não se recordar” da existência de uma lista de receptores de órgãos da Santa Casa, da qual chegou a ser presidente do Conselho Curador por um período. Sobre a MG Sul Transplantes, que fundou e difundiu, afirmou apenas “ter ouvido falar” de sua existência. Declaração no mínimo estranha. O registro de criação da MG Sul Transplantes, em 1991, está publicado em um artigo no Jornal Brasileiro de Transplantes (volume 1, número 4), do qual os autores são o próprio Mosconi, além de Ianhez, Fernandes, Brandão, e Scafi, todos investigados ou réus do processo sobre a máfia de transplantes de Poços de Caldas.
Procurada por CartaCapital, a assessoria de imprensa de Carlos Mosconi ficou de marcar uma entrevista com o deputado. Até o fechamento desta edição, o parlamentar não atendeu ao pedido da revista.
Leia mais:
Resposta do deputado Carlos Mosconi (PSDB) à reportagem “Um Feliciano piorado na Assembleia mineira”
(Publicado na Carta Capital)
Professora do sertão da Paraíba forma talentos
17 de Abril de 2013, 21:00 - sem comentários ainda
COMO JONILDA FERREIRA CONSEGUIU FAZER SEUS ALUNOS CONQUISTAREM 22 PRÊMIOS EM UMA OLIMPÍADA DE MATEMÁTICA QUE MOBILIZA 19 MILHÕES DE JOVENS
(Reportagem publicada pela Época Negócios, por Carlos Rydlewski, texto. Fotos: Manoel Marques Neto)
Na semana que antecedeu o Natal, eu e o fotógrafo Manoel Marques Neto enveredamos rumo ao alto sertão da Paraíba. Tínhamos como destino a pequena Paulista, uma cidade com 11.783 habitantes, a 397 quilômetros de João Pessoa, a capital do estado. Nossa missão era entender um fenômeno. Os estudantes do município paraibano, encravado no coração do semiárido nordestino, haviam se destacado em uma olimpíada de matemática, que mobilizou no ano passado 19,1 milhões de alunos da rede pública em todo o país. Os paulistenses conquistaram 22 prêmios. Foram cinco medalhas de ouro (um recorde para cidades desse porte), duas de prata, três de bronze e 12 menções honrosas. Tal resultado foi surpreendente. Superou, em termos proporcionais, o desempenho obtido pelos jovens entre 9 e 17 anos das principais cidades do Brasil.
À medida que seguíamos em direção ao interior, o cenário destoava cada vez mais de um ambiente que supúnhamos propício a um bom desempenho escolar. Principalmente, em se tratando de uma disciplina como a matemática – o bicho-papão da estudantada. Em longos trechos do percurso até Paulista, o que se via era o efeito da maior seca registrada na região nas últimas quatro décadas. A paisagem parecia ter sido destruída por um imenso incêndio. E foi. E ainda é. O Sol queima a região com temperaturas que vão além dos 40 graus nessa época do ano. Não chove, ali, desde outubro de 2011. Então, qual a explicação para tantas medalhas? Todas as respostas convergiam para um nome: Jonilda – ou melhor, professora Jonilda. Qual o seu segredo?
Maria Salete Laurentino gritou, riu e chorou. Fez tudo isso junto e misturado, repetidas vezes. Enquanto se dedicava a tais manifestações, ligou para todos os números que constavam da sua lista de contatos, no celular. Se eram muitos? “Só de irmãos tenho 13”, diz. Tamanha animação era justificável. Salete acabara de saber que a filha Miriam, de 12 anos, havia sido premiada com uma medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, a Obmep, cujos resultados foram divulgados em dezembro.
A vitória de Miriam não se resumia ao prêmio. Ela, na verdade, havia superado um trauma. Poucos meses antes da disputa, a garota nutria pavor por matemática. De repente, transformou-se. Começou a se dedicar à matéria em três períodos ao dia. Pela manhã frequentava a escola, à tarde estudava em casa e, à noite, fazia aulas de reforço. Dormia sobre os livros. Preocupada, a mãe até lhe recomendava repouso. Qual o motivo da mudança? Miriam diz, em tom de brincadeira: “Foi a Jonilda que passou a mão na minha cabeça.
O dom
Jonilda Alves Ferreira, de 44 anos, não tem poderes sobrenaturais, mas faz lá as suas mágicas. Natural de Paulista, leciona matemática desde 2002. Atualmente, dá aulas para seis turmas do 6° ao 9° ano, na Escola Municipal Cândido de Assis Queiroga. Na cidade, é identificada como a hospedeira de um vírus insólito – que disseminou uma febre por números. Os estudantes do município paraibano transformaram a matemática em uma brincadeira. “O melhor é que ela pode ser levada para qualquer lugar e nunca quebra”, diz Wanderson Ferreira, de 11 anos. O garoto já conquistou três medalhas na Obmep: dois ouros, em 2010 e 2011, e uma prata no ano passado. Adivinha de quem ele é filho? Da Jonilda.
Não é simples decifrar o dom de Jonilda. Ela fala em um ritmo pausado, quase sem variações no tom, como quem manifesta um certo fastio. A verborragia, definitivamente, não a brindou. Seu comportamento está a anos-luz dos professores-espetáculo dos cursinhos pré-vestibular. Jonilda é calma – ao extremo. Tanta serenidade, no entanto, é interpretada de forma peculiar pelas crianças. “Ela transmite uma afetividade muito grande e isso é importante na educação”, diz Salete, a mãe de Miriam, também educadora (leciona história). “As crianças não têm medo ou vergonha de conversar e tirar dúvidas com ela.”
O método
Sim, existe empatia, mas também há método. Embora não conheça o trabalho dos grandes gurus globais da educação, Jonilda conta com um repertório variado de estratégias para dominar a sala de aula. Grande parte dos preceitos de teóricos como o americano Doug Lemov, autor de Aula Nota 10, ela adota intuitivamente. “Eu nunca bato de frente com meus alunos”, afirma. “Sempre tento demonstrar que a turma pode contar com meu apoio.” Esse lado “gente boa” tem contrapartida. A professora não permite indisciplinas. “Mas isso é fácil evitar: basta manter as crianças, principalmente as mais ativas, sempre ocupadas”, diz. “Se o aluno não tiver tempo, ele não causa problemas.”
Jonilda adora inovar. “Não sou alucinada, mas tenho as minhas ideias.” E não são poucas. Ela tem como princípio que, para aprender matemática, é imprescindível vivenciá-la. Assim, as aulas sobre fração são ministradas em uma pizzaria. À medida que os pedaçinhos são cortados, ela mostra o significado de um oitavo, um quinto... A farmácia serve de âncora para lições sobre medidas, com base na dosagem dos medicamentos. Números decimais? Em um posto de gasolina. E o estudo de estatística nada têm de fictício. Os alunos coletam dados reais sobre a mortalidade infantil ou a incidência de doenças na população de Paulista. “Ela sempre foi assim”, diz Jocemar Alves Ferreira, também professora (leciona história) e irmã de Jonilda. “Sempre gostou de inventar.”
Jonilda também faz questão de envolver os pais nas lições de casa e não mede esforços para elogiar o bom desempenho dos alunos. Só não aceita respostas prontas, plagiadas dos livros, sem escala no raciocínio dos estudantes. “Os alunos gostam e precisam ser desafiados”, diz. “Se a gente consegue estimulá-los, eles vão além do óbvio.” É o termo desafio, aliás, que explica em grande parte o sucesso das olimpíadas entre a garotada de Paulista. Nesse jogo, eles não só aprendem como se envolvem em uma saudável disputa.
A força
Esforço é outra palavra-chave do bê-á-bá de Jonilda. “Ela não se atém à rotina e isso a torna especial”, afirma José de Arimatéia Fernandes, professor do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e coordenador da olimpíada na Paraíba. Jonilda ganha R$ 1,2 mil como professora, por 30 horas de aula semanais. Para complementar o salário, toca um pequeno negócio de fotografias para eventos. Seu marido, Geraldo, é dono de uma oficina para motos.
O orçamento familiar é apertado. Ainda assim, ela não cobra nada por aulas de reforço de matemática, que oferece para as crianças classificadas na segunda fase da olimpíada. Essas lições complementares são ministradas todas as noites, entre 19 e 21 horas, na casa de Jonilda. Este ano, participaram 18 garotos e garotas, dos quais 13 foram premiados, quatro com medalha de ouro. Em um espaço exíguo, o grupo se acomoda em mesas cedidas por comerciantes da vizinhança. Elas ocupam o lugar destinado ao sofá, na frente da TV. Tamanho desprendimento, porém, nem sempre é bem-visto pelos colegas de magistério. Alguns a criticam por trabalhar mais e de graça. “Não ligo para os comentários negativos”, diz a professora. “Não acho justo cobrar por essas aulas e pronto.”
O efeito
O impacto das aulas de Jonilda irradia pela cidade. Hoje, os destaques nas olimpíadas não se resumem aos alunos da escola Cândido de Assis Queiroga. Thaíssa Coelho Farias, de 12 anos, por exemplo, ganhou uma medalha de ouro em 2012. Ela estuda em outro colégio municipal, o José Jerônimo Neto. “Acreditei que, se os alunos de uma escola conseguiram, eu também poderia”, diz. “Mas não nego: me inspirei no Wanderson, o filho da Jonilda.” Este ano, Maria Eduarda Linhares Dunga, de 13 anos, estudante de uma escola da zona rural, também foi premiada com uma menção honrosa.
Outro dado surpreendente: a cidade registra uma migração de alunos de escolas particulares para as públicas. No ano passado, sete garotos se transferiram para o colégio de Jonilda. O que eles queriam? Se dar bem na olimpíada. Luciclaudio de Azevedo Júnior, de 12 anos, que já ganhou duas menções honrosas (2011 e 2012), seguiu esse caminho. A mãe do garoto, Dannielle Garcia, não concordava com a mudança. Tinha medo do ambiente que o filho encontraria e de como se relacionaria com os novos colegas. “Existe um grande tabu em relação à escola pública”, afirma Dannielle. “Eu só cedi porque meu filho insistiu muito, mas foi a melhor coisa que fiz. Hoje, nem preciso mandá-lo estudar. Ele vai sozinho e gosta de todas as matérias.” Aqui, nota-se outro sintoma da febre que se alastra pelo município: embora o foco da brincadeira seja a matemática, os alunos em geral apresentam um rendimento mais satisfatório em todas as disciplinas. “O que melhora não é a habilidade de fazer contas”, diz Jonilda. “É a capacidade de raciocínio. E isso serve para as aulas ou qualquer outra coisa.”
A busca por medalhas na competição nacional, por estar restrita a escolas públicas, também não faz distinção de classes sociais. O pai de Danielly Mendes da Silva, de 13 anos, é aposentado. A mãe trabalha como merendeira, além de engomar roupas em Paulista. Pois a garota conquistou uma medalha de ouro em 2012. “Eu chorei tanto que fiz toda a cidade chorar”, diz Benedita Alves, a mãe. “Agora, minha filha só quer saber de estudar e fazer a faculdade de engenharia. Ela parece um pacote de sonhos.”
A lógica
Na base de toda essa animação está o modelo Obmep. A olimpíada foi criada em 2005, pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa, com sede no Rio de Janeiro), reconhecido como um dos principais centros de pesquisa do mundo. O objetivo da prova é avaliar o raciocínio lógico e a capacidade de abstração. Ela não dá ênfase ao conhecimento formal, com fórmulas e equações. “Nós não queremos descobrir qual é o melhor aluno da melhor escola pública do Brasil”, afirma Claudio Landim, diretor adjunto do Impa e coordenador nacional da competição. “Nosso objetivo é revelar talentos.” Isso tem ocorrido em profusão.
A jovem paulistana Tábata Pontes, de 18 anos, é filha de um cobrador de ônibus e uma vendedora de flores. Foi medalha de ouro na olimpíada em 2005. Desde então, colecionou títulos obtidos em dezenas de competições, muitas delas internacionais. Essas disputas a fizeram dar um salto extraordinário. No ano passado, a moça foi admitida na Universidade Harvard, no curso de astrofísica. Impressionante? Isso não é nada. Ela também foi aprovada em outras cinco universidades americanas. A lista nada tem de singela: Caltech, Columbia, Princeton, Yale e Pensilvânia. Só nomes do topo dos rankings das melhores universidades do mundo. De quebra, e por via das dúvidas, ela também entrou na Universidade de São Paulo (USP).
Gerson Tavares, de 18 anos, é outra revelação. Foi o primeiro tetracampeão da Obmep. “Ele nem sabia que tinha talento para a matemática”, diz Landim, do Impa. “Na verdade, nem a escola e nem o professor sabiam.” O rapaz, que estudava à noite e trabalhava para ajudar a família, entrou em engenharia elétrica na USP. Hoje, participa do programa espacial brasileiro. Detalhe: ele é filho de um vidreiro e de uma ex-empregada doméstica.
A aberturaA olimpíada do Impa embute outros estímulos. Os estudantes premiados com medalhas ganham uma bolsa de estudos de R$ 100 mensais (não é pouco dinheiro, em muitos pontos do país) e participam por um ano de um curso de iniciação científica. No caso de Paulista, os estudantes assistem a essas aulas, realizadas todos os meses, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), a 265 quilômetros de distância. A garotada sai do sertão às 4 horas, para regressar somente à noite. “No campus, eles têm contato com um novo mundo e ficam encantados”, diz Jonilda. Ela acompanha os garotos em todas as viagens. “As aulas também são muito boas, e isso tudo ajuda a abrir a cabeça dos meninos.”
Não por acaso, em uníssono, os premiados afirmam que querem cursar uma faculdade. A maioria tem preferência por cursos de exatas, com destaque para a engenharia. Essa opção soa até estranha. Como se sabe, há no país um tremendo vazio de engenheiros. A indústria estima que esse déficit esteja na casa dos 150 mil profissionais. Enquanto o Brasil diploma 40 mil engenheiros por ano, a Rússia forma 190 mil, a Índia, 220 mil e a China, 650 mil. Um estudo recente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) mostrou que a falta de competência em matemática é ainda um dos principais problemas apresentados por funcionários contratados regularmente por 604 empresas fluminenses.
Além de Jonilda
O sucesso da matemática em Paulista não se limita à sala da aula de Jonilda ou ao efeito dominó da olimpíada. A cidade registra avanços contínuos na área de educação. Em 2000, a maioria dos professores do município não tinha sequer graduação. Hoje, a maior parte é pós-graduada. A Secretaria de Cultura e Educação contratou uma consultoria, chamada Foco, para auxiliar na gestão dos problemas das escolas. A empresa também identifica cursos e programas oferecidos pelo Ministério da Educação que interessem à cidade.
O sucesso da matemática em Paulista não se limita à sala da aula de Jonilda ou ao efeito dominó da olimpíada. A cidade registra avanços contínuos na área de educação. Em 2000, a maioria dos professores do município não tinha sequer graduação. Hoje, a maior parte é pós-graduada. A Secretaria de Cultura e Educação contratou uma consultoria, chamada Foco, para auxiliar na gestão dos problemas das escolas. A empresa também identifica cursos e programas oferecidos pelo Ministério da Educação que interessem à cidade.
Há, contudo, muito a ser feito, e faltam recursos. A quase totalidade da receita de Paulista vem do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Esse dinheiro está minguando. À medida que o governo amplia as reduções de IPI para estimular a indústria, o bolo do FPM diminui. É diminuta ainda a oferta de empregos no município paraibano. Cerca de 2 mil famílias (perto de 4 mil pessoas) dependem do Bolsa Família. Para complicar, muitos jovens paulistenses migram para São Paulo e Rio de Janeiro, para vender redes e mantas produzidas na vizinha São Bento. O problema: quando retornam, levam as drogas para o agreste.
Esses problemas só acentuam o valor da revolução dos números em curso na cidade. Ela está se mostrando muito mais forte que as barreiras econômicas ou a penúria material vigente nas salas de aula – elas só têm carteiras, nem todas em bom estado, uma lousa e algumas lâmpadas que pendem do teto. Resta saber até onde pode chegar.
Nessa luta, Jonilda pode ser uma baixa. Ela recebeu uma oferta para trabalhar em uma escola privada de Campina Grande, que também cederia uma bolsa de estudos para seu filho. A professora não esconde o desejo de fazer um mestrado e, como treinadora dos atletas dos números, não lhe sobra tempo para isso. Em breve, pode deixar Paulista. Será possível clonar Jonildas e o grupo de professores do município? E, já que estamos nisso, não só espalhá-los pelo sertão mas por todo o país?
É sabido e comentado que a educação é o maior desafio do Brasil. Para isso, é preciso que os recursos jorrem, como em qualquer projeto de infraestrutura. Mas a espantosa revolução dos números no sertão da Paraíba demonstra que o sucesso, em educação, começa no professor. Em sua capacidade de inspirar, desafiar, guiar e reconhecer os alunos. Parece lógica a extrapolação de que o principal investimento que o Brasil pode fazer é encontrar, contratar, inspirar, treinar e reconhecer gente como a dona Jonilda. Muitas donas Jonildas.
(Reportagem publicada na revista Época Negócios)
Atrás da porta - documentário
16 de Abril de 2013, 21:00 - sem comentários ainda"A experiência de arrombar prédios e criar novos espaços de moradia das famílias sem-teto do Rio de Janeiro em um documentário que mostra uma série de despejos forçados pelo Estado."!