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Denunciou torturas, tornou-se guerrilheiro e desapareceu nos Andes
12 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaA história do estudante gaúcho que denunciou torturas da ditadura, tornou-se guerrilheiro na Bolívia e desapareceu nas montanhas andinas
Os guerrilheiros do Exército de Libertação Nacional estão quase completando a travessia do rio Chimate, ao norte da Bolívia. Acossados pelos militares, precisam ser rápidos. A vanguarda já atravessou o rio e a coluna do centro avança, observada por Raúl e Dippy, soldados da retaguarda destacados para indicar aos companheiros o caminho seguido pelas duas colunas da frente. No relógio, “expropriado” pela guerrilha, Dippy vê que são seis horas da tarde do dia 1º de setembro de 1970.
Uma patrulha militar ataca e a guerrilha se parte em duas. A retaguarda não consegue atravessar o rio. Raúl e Dippy correm mato adentro para escapar dos tiros. Esperam até a noite, talvez sejam encontrados pelos companheiros. Escutam disparos de morteiros e percebem que será impossível atravessar o rio.
A retaguarda nunca mais iria se reencontrar com o resto da tropa. Raúl e Dippy, estrangeiros em solo boliviano, ficariam sós.
Raúl é o nome de guerra do peruano Antero Callapiña Hurtado, estudante de engenharia civil na Polônia, recrutado para a guerrilha, assim como dezenas de jovens latino-americanos que estudavam em países socialistas. O outro, Dippy, era o único brasileiro entre os 67 combatentes que subiram as montanhas de Teoponte, a cerca de 200 quilômetros ao norte de La Paz, para retomar a guerrilha em Ñancahuazú, abortada três anos antes com a morte de seu comandante, Ernesto Che Guevara.
Dippy entrou com o codinome Eugenio, mas todos os chamavam pelo apelido adquirido no treinamento em Cuba, por abrasileirar a expressão “de pinga” – “di pinga”, ele dizia - popularmente usada para se referir a algo formidável. Daí, virou Dippy.
Apartados do grupo, peruano e brasileiro passam quase 30 dias lutando pela sobrevivência na selva boliviana. Comem palmito e mascam folhas de coca para não morrer de inanição. Tentam chegar a algum povoado sem serem capturados pelo Exército. No último registro de seu diário, o brasileiro escreve:
- Hoje é uma data que não posso deixar de lembrar: dia 25. Faz quatro meses que me casei com Susana e hoje lembro dela mais do que nunca. Sinto falta dela e quero encontrá-la. Espero fazer isso antes do dia 1º de novembro e não pretendo me separar dela nunca mais.
O reencontro com a esposa, que àquela altura esperava um filho, nunca aconteceria.
Gaúcho de Formigueiro
Luiz Renato Pires Almeida é um dos 13 desaparecidos políticos brasileiros em território estrangeiro. As circunstâncias de sua execução nunca foram esclarecidas, tampouco seu corpo foi encontrado. O caminho que o levou de Formigueiro, no interior do Rio Grande do Sul, onde nasceu em 18 de novembro de 1943, até as montanhas bolivianas, onde morreu no começo de outubro de 1970, é o que se conta a seguir.
Caçula de 11 irmãos, filho de um agricultor, Lucrécio, e de dona Doca, apelido de Maria Conceição, o menino de Formigueiro foi morar na cidade aos 7 anos, quando o pai comprou uma “venda” em São Sepé, então sede do distrito. Em março de 1951, a família se instalou numa casa localizada no número 747 da rua 7 de Setembro.
Era um guri “medonho”, lembra a irmã Deni, e gostava de jogar futebol. Cursou metade do ginásio no Colégio Madre Júlia, de freiras, e concluiu o ensino fundamental no Colégio Estadual Tiaraju, onde fazia parte da chapa eleita para o Grêmio Estudantil em 1960. Ainda assim, contam os amigos, o garoto gostava mais das festas do que da política.
No Rio Grande do Sul, vivia-se a efervescência da Campanha da Legalidade, liderada em 1961 pelo governador Leonel Brizola, do Partido Trabalhista Brasileiro, para garantir a posse do presidente João Goulart, depois da renúncia de Jânio Quadros. A família comandada pelo pai, simpatizante da União Democrática Nacional (UDN), era politicamente conservadora.
A primeira influência mais à esquerda viria do professor Gerôncio Vaz, adepto dos ideais trabalhistas, que se tornaria um grande amigo de Renato. Mas ele só descobriria a política para valer ao se mudar em 1962 para Santa Maria, maior cidade da região, para cursar o Clássico no Colégio Estadual Manuel Ribas, o tradicional Maneco, e cumprir o serviço militar no 7º Regimento de Infantaria. Ali, voltou a ter contato com armas, das quais aprendera a gostar nas caçadas com os irmãos.
Na cintura, uma pistola de três canos
Em fevereiro de 1963, Renato ingressou na primeira turma do Colégio Agrotécnico da recém fundada Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Eleito para a diretoria do Centro de Estudantes do Colégio Agrotécnico, entrou de cabeça no movimento estudantil, mobilizado na defesa das reformas de base propostas pelo presidente João Goulart.
Ao 20 anos de idade, mais velho que a maioria da turma do ensino técnico, Renato impressionava. “Como era o mais velho da turma, era o líder da gurizada. Gostava de trago, fumava, andava armado. A gurizada achava o máximo”, recorda o colega Beto Vargas, hoje médico na cidade de Bagé. A pistola de três canos que carregava na cintura é uma lembrança dos amigos da época. “Foi a única vez que vi uma pistola daquelas”, recorda Rogério Vargas, irmão de Beto.
Rogério e Beto dividiam um quarto com Renato em uma pensão de Santa Maria. Renato tinha o costume de tomar chimarrão com Rogério pela manhã, para escutarem um programa da Rádio Nacional de Moscou transmitido em português.
Para a família, era visível a transformação do filho mais novo. “Nas primeiras férias que voltou de Santa Maria, era outra pessoa”, diz Zeca, um dos irmãos. “O Renato conversava um pouco com a gente e já vinha com a pregação do Mao Tsé-Tung”, lembra, achando graça. “Não seja tapado, tem que abrir os olhos”, dizia a Zeca. Chamava o pai de “tubarão” por estar politicamente ao lado dos ricos. Mas não deixava de abraçá-lo e chorar quando se despedia da família para retornar a Santa Maria. O apego à casa o faria escrever cartas aos irmãos de todos os lugares onde viveria depois.
Liderança estudantil
Em janeiro de 1964, Luiz Renato retornou de um congresso na Paraíba eleito presidente da União Nacional dos Estudantes Agrotécnicos (UNEA). Quase por acaso assumiu o cargo que o levaria à clandestinidade.
O candidato natural à presidência pela delegação gaúcha era o atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, na época com 16 anos – eleição que seria realizada no congresso em Bananeiras (PB), entre 5 e 13 de janeiro daquele ano. Mas Tarso desistiu da indicação em troca de seis passagens áreas para que a delegação gaúcha viajasse à Paraíba, como ele conta hoje:
“Quando nós montamos a nossa delegação, conseguimos passagens com o presidente João Goulart através do meu pai, que era amigo do João Goulart”, relembra Tarso. “Mas aí o meu pai, naquela boa chantagem paterna, disse o seguinte: eu consigo as passagens para vocês, mas tu tens que prometer que não vais ser candidato a presidente da UNEA, tens que voltar para Santa Maria para continuar os estudos. E de fato cumpri a promessa. Chegamos lá, substituímos o meu nome e apresentamos o nome do Luizinho, que foi eleito presidente da UNEA”, conta o governador.
Até os amigos mais próximos ficaram surpresos com a eleição de Luiz Renato, como lembra o colega Eros Marion Mussoi, hoje professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Ele era um cara cheio de vida e ideias, como boa parte da nossa geração. No início não era propriamente um ‘revolucionário’, mas tinha ideias sociais e humanistas muito claras. Um sujeito de um grande coração e preocupado com os outros”, diz.
Para Tarso Genro, de “Luizinho” ficou a lembrança do colega corajoso e do grande amigo. E da pistola de três canos, que ganharia novo significado à medida que a esquerda se inclinava à luta armada para enfrentar a ditadura. “Ele era muito ligado a essa questão da ação militar e achava que a derrubada do regime militar poderia ser feita imediatamente através de ações armadas. Eu até menciono, num poema que eu fiz depois da morte dele, a pistola de três canos, um em cima do outro, que ele usava e era uma memória muito intensa que a gente consolidou, porque aquela pistola era uma identidade que ele tinha, em função da visão que iria percorrer posteriormente”, diz.
Como presidente da entidade, Renato transferiu-se para a Universidade Rural do Brasil (URB) e desembarcou no Rio de Janeiro no dia 2 de março de 1964. Menos de um mês depois, viria o golpe militar.
Memórias esparsas
As lembranças da família são cortadas, esparsas. Após o golpe militar, as notícias de Luiz Renato escassearam. E hoje em dia, remexer nessas histórias é reavivar a dor da perda do irmão caçula.
Deni diz ter ouvido Renato discursando contra o golpe na rádio carioca Mayrink Veiga no dia 1º de abril de 1964. Em um programa da própria UNEA, segundo outra irmã, a Ladi. Luiz Renato e alguns colegas teriam escapado da emissora antes de serem presos pelos militares.
Após o golpe, Luiz Renato fazia aparições esporádicas na casa dos pais, sem dizer exatamente o que fazia nem por onde andava. Em depoimento prestado no Inquérito Policial Militar (IPM), depois da prisão, em março de 1966, disse que “temeroso de ser preso” abandonou a Escola Agrotécnica nos primeiros dias de abril de 1964 e voltou ao Rio Grande do Sul. Passou por São Sepé, reviu a família e teria partido para o Uruguai, assim como fizeram centenas de militantes com alguma ligação com o PTB de Leonel Brizola e João Goulart.
José Wilson da Silva, o “Tenente Vermelho”, hoje capitão do Exército reformado, diz ter conhecido Luiz Renato em Montevidéu, embora não tenha convivido com ele. “Era calmo, muito consciente politicamente, sonhador como todos nós éramos. Tanto que saiu de lá para ir adiante. Enquanto estávamos tentando fazer alguma coisa, estava demorando, foi procurar outras guerras”, conta.
Luiz Renato não era o único a se impacientar com a demora da esperada reação brizolista contra a ditadura, a partir do Uruguai. Em março de 1965, o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório comandou uma tentativa frustrada de guerrilha em Três Passos, desencadeando uma onda de prisões contra militantes ligados a Brizola.
Havia muitos brasileiros no Uruguai. A pedido de Brizola, o desembargador aposentado Eliseu Gomes Torres montou uma comissão para analisar os casos de quem poderia retornar ao Brasil. Torres não se lembra de Luiz Renato, mas é possível afirmar que o estudante tenha voltado em circunstância semelhante. O depoimento dado ao IPM fala que Renato “foi instado por outros a regressar, já que não pesava nenhuma acusação contra si” entre o final de janeiro e o começo de fevereiro de 1965.
Não se sabe exatamente o que fez Luiz Renato em 1965. Eventualmente, aparecia em São Sepé – Deni lembra de ir até a estrada para encontrar o irmão, de madrugada, que estava indo para algum lugar.
No IPM, consta ainda que, em fevereiro de 1966, Luiz Renato foi a Porto Alegre para tentar se matricular no Colégio São Judas Tadeu. Nesta ocasião, teria encontrado o ex-coronel Pedro Alvarez, expulso do Exército após o golpe, “a quem já conhecera em Santa Maria e em cuja residência já estivera hospedado cerca de duas vezes”.
Em 2003, Alvarez, que ainda mora na mesma casa onde hospedou Luiz Renato em 1966, a pedido do também militar José Pires Cerveira, contou: “Ele [Cerveira] me disse: ‘estou com um rapaz, um estudante que veio do Rio, e tenho impressão que já viram que ele está na minha casa. Tu não sabes onde podemos colocá-lo?’. Eu disse: ‘Faz o seguinte, numa noite dessas, em que não haja ninguém por perto, traz ele aqui pra minha casa’. Realmente ele trouxe e ficou aqui bastante tempo, mais ou menos um mês”, relatou Alvarez.
Em nova entrevista realizada em 2012, a memória já não ajuda Alvarez, hoje com 94 anos. Ele ainda lembra do “rapaz muito educado, e bem preparado. Tinha conhecimento da situação, fazia uma análise certa daquele momento, dava a solução”. O irmão Zeca lembra de ter visitado o caçula na casa de Alvarez, acompanhado por Ary, o mais velhos dos irmãos. O código era passar assoviando “Aquarela do Brasil” na calçada. A irmã Ladi conta que estava saindo de um jogo do Internacional no Beira-Rio, ao lado do marido, quando foi surpreendida por um abraço do irmão em meio ao mar de colorados. O Beira-Rio fica próximo à casa de Pedro Alvarez. Foram até uma padaria, o marido de Ladi comprou mantimentos, conversaram até a noite e se despediram.
Um dia, Alvarez teve de viajar para Santa Maria. “Eu disse: ‘Renato, faz o seguinte, não sai pra rua. Se já te viram ali na outra casa, eles podem te localizar aqui’”, contou. “Pois não é que um dia ele saiu e foi na padaria? Prenderam ele e eu não sabia onde ele estava. Até que eu consegui saber que ele estava preso no DOPS.”
O Caso das Mãos Amarradas
Preso por “ligações com o esquema subversivo de Leonel Brizola” no dia 25 de fevereiro de 1966, Renato foi recolhido ao Departamento de Ordem Política e Social. Data deste período o depoimento prestado no dia 10 de março daquele ano. Ficaria 59 dias detido, entre o DOPS e a Ilha do Presídio, pequena ilha no meio do lago Guaíba que funcionou como depósito de pólvora do Exército, laboratório para o desenvolvimento de vacinas, depois prisão de segurança máxima até finalmente ser convertida em cárcere político na ditadura militar. No dia 7 de março, o irmão mais velho de Renato levou objetos de higiene e vestuário até lá.
O próprio Ary ajudaria o irmão a sair da prisão, possivelmente lançando mão das ligações do pai com a UDN para solicitar ajuda junto à Secretaria de Segurança.
Após sair da prisão, já no Rio de Janeiro, Renato escreve uma carta a Deni, provavelmente de setembro de 1966. Conta que está fazendo um curso para trabalhar como jornalista, trata do envio de dinheiro pela família e avisa que, naquele dia, não estava com vontade de fazer mais nada porque estava abalado com uma notícia que havia recebido.
“Os filhos da puta desses traidores da Pátria mataram, afogado e com as mãos amarradas atrás, o sargento Soares, que tanto tempo esteve preso comigo, e ao qual deixei roupas, aparelho de barba e outras coisas. O assassinato foi aí em Porto Alegre e mais ou menos sei quem deu esta ordem. Esses são os homens bons que estão no governo, que vão à missa aos domingos e que durante as madrugadas torturam seus semelhantes como se fossem animais, para depois matar da maneira mais covarde possível. Quanto mais sacrifício passarem os companheiros, mais disposição nós temos para enfrentar os traidores fascistas”, escreve.
O corpo do sargento Manoel Raimundo Soares, sargento do Exército com ideias nacionalistas e militância na organização dos suboficiais, foi encontrado boiando, com mãos e pés atados, nas águas do rio Jacuí no dia 24 de agosto de 1966. O episódio ficou conhecido como o “Caso das Mãos Amarradas”. Foi um dos primeiros casos de tortura e morte por parte dos órgãos de repressão sobre o qual se teve notícia na época.
Luiz Renato dividiu a cela com Raimundo Soares duas vezes. Depois de liberado, enviou uma carta ao jornal Última Hora relatando as idas e vindas do sargento das sessões de torturas e apontando como responsáveis os delegados José Morsch e Itamar Fernandes de Souza, carta esta que seria lida em sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa gaúcha que investigou o caso, no dia 12 de abril de 1967. O estudante também seria entrevistado pelo jornal, depois da publicação da carta.
O primeiro encontro entre Luiz Renato e Raimundo Soares aconteceu no dia 14 de março, em uma cela do DOPS, na rua Santa Luzia, três dias depois da prisão do sargento. Na véspera, Renato havia retornado da Ilha Presídio, onde ficou 19 dias sem ver a luz, sem tomar banho nem comer direito. Às 22 horas do dia 14 de março, conheceu o companheiro de cela. Os policiais deixaram uns trapos velhos na cela, que serviriam de cama, e logo em seguida o preso, só de cuecas, “rosto de nortista”, bigode preto e sinais de tortura no corpo, que se apresentou:
- Sou o Sargento Soares. Para minha honra, fui expurgado do Exército.
Levados à Ilha Presídio, os dois presos ficaram juntos por mais sete dias. Para aplacar o frio, já que não tinham cobertas, dividiam a mesma cama. Quando deixou a prisão, no dia 30 de março, Luiz Renato ouviu do companheiro: “No fim de tudo, nós vamos nos encontrar. Não somos os primeiros a sofrer torturas nem seremos os últimos. Se morrermos não seremos os primeiros nem os últimos. Isso faz parte da nossa luta”.
“A morte pouco importa”
De volta ao Rio de Janeiro, onde ficou pouco mais de um ano, Luiz Renato tentou retomar os estudos e arranjar trabalho. Comunicava-se por cartas com a família, algumas assinadas por “Rodrigo”.
“O que não quero é ficar parado sem fazer nada, sem trabalho e ainda sem estudar”, escreve à irmã em junho de 1966. Também dá explicações à família sobre sua opção de vida: “Sei que o pessoal não admite isto, pensam que sou irresponsável, mas o que vale é minha consciência, é fazer o que penso estar certo e é muito cedo para dar satisfações do que faço”.
Em setembro de 1966, na carta em que revela a decisão de denunciar as torturas do sargento, reafirma a decisão de seguir enfrentando a ditadura. “Este governo não é eterno, ele muda e com ele mudarão os homens, então se fará justiça, se punirá com dignidade os covardes de hoje, aos que tem coragem com as armas na mão e se tornam covardes quando se defrontam com elas. (…) Estas coisas não desanimam ninguém, pelo contrário, dão mais força e razão para se lutar, a morte pouco importa, interessa-nos é a vitória e tarde ou cedo será conseguida”.
No dia 13 de julho de 1967, informa à família que viajaria a Moscou para prosseguir os estudos. Como milhares de jovens de todo o mundo, Luiz Renato estava de partida para a Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, batizada em homenagem ao líder anticolonialista e primeiro ministro do Congo, morto em 1961. Luiz Renato cursou o ciclo básico da instituição que recebia estudantes de todo o mundo, com a intenção de ingressar na Faculdade de Agronomia, o que acabaria não acontecendo.
Estudando na URSS
O gaúcho chegou a Moscou em setembro de 1967, prestes a completar 24 anos, e se adaptou rapidamente. Nas cartas, relata as atividades em que se envolvia, com destaque para o futebol e a pequena escola de samba que fazia apresentações em datas festivas da URSS e da universidade. “Estou muito satisfeito aqui, mesmo antes de vir para cá, já sabia mais ou menos que ia gostar. Aqui tenho estudado muito, além dos estudos da Universidade muitas outras coisas interessam-me”, escreve em 27 de novembro de 1967.
O economista Rafael Alves da Cunha, hoje vice-presidente da Sociedade de Economia do Rio Grande do Sul, também estudou na Patrice Lumumba e foi presidente da União dos Estudantes Brasileiros na União Soviética. A afinidade entre os dois gáuchos foi imediata: Rafael é natural de Caçapava do Sul, vizinha a São Sepé, e os moradores das duas cidades têm sempre na ponta da língua alguma brincadeira sobre os vizinhos.
Luiz Renato era um jovem agitado, brincalhão, festeiro, recorda Rafael. Não chegou a integrar a direção da União dos Estudantes, mas era um militante ativo a quem Rafael recorria sempre que precisava tomar alguma decisão importante. Também estava sempre disposto a participar das atividades promovidas pela entidade, como os concorridos carnavais dos estudantes brasileiros. “Podia contar com ele. Se encarregava de uma coisa, ou da cozinha, ou da bebida, pegava uma coisa, estava sempre pronto”, diz Rafael.
A disposição do colega também tinha grande valia nos jogos de futebol. “Ele era ruim de bola. Mas era gozadérrimo”, conta Rafael. “Entrava dando trombada em todo mundo. Quando botavam para marcar um cara, aquele cara não fazia nada. Ele ficava ao lado, derrubava, fazia qualquer negócio”, diz. No verso de uma foto que enviou a família, Renato contou de uma ocasião em que os brasileiros ganharam “no jogo e no pau” dos campeonatos improvisados entre os colegas de diversas nacionalidades.
Politicamente, Renato demonstrava o mesmo temperamento: não apresentava grandes formulações teóricas, mas tinha disposição para as tarefas políticas e ansiedade pelas ações, lembra Rafael: “Não dava demonstração de muito conteúdo filosófico, político. Mas tinha um entusiasmo fora do comum e uma positividade enorme. Era um guerrilheiro, tinha um espirito de guerrilha. Se eu fosse fazer qualquer coisa numa revolução, gostaria de ter um batalhão de Luiz Renato”, completa.
Com o aumento da influência cubana entre os estudantes, a universidade passou a pressionar aqueles que divergiam da linha soviética, como Renato. Um exemplo foi a tentativa de vetar a realização de um ato em memória de Ernesto Che Guevara, morto em outubro de 1967, conta Rafael. Os alunos reagiam: um dia, as janelas amanheceram tomadas por imagens do Che, reproduzidas pelos estudantes ao longo da noite, contrariando a direção. O ato finalmente aconteceu no pequeno auditório da Faculdade de Economia, transbordando de gente para fora.
As contradições entre os estudantes e a direção soviética tornaram-se ainda mais agudas com as primaveras de Paris e Praga. Em 1968, durante o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, em Sófia, capital da Bulgária, Luiz Renato estava entre os que participavam dos debates acalorados sobre os rumos da revolução.
“Quando voltou a delegação de Moscou [do festival], ele já estava muito marcado pelo pessoal do partidão. Aí ficou marcado dentro do sistema de vigilância soviético”, diz Rafael.
O chefe da delegação brasileira era o atual vice-prefeito de São Carlos (SP), Emerson Leal, à época vice-presidente da entidade presidida por Rafael. “Ele [Luiz Renato] era um dos defensores mais ferrenhos e combativos da luta armada. Por isso era grande sua sintonia com os estudantes da Bolívia e do Peru, muitos dos quais defendiam essa linha. Principalmente com os bolivianos – afinal, o Che Guevara tinha morrido na Bolívia e os guerrilheiros bolivianos preparavam a segunda fase da guerrilha”, lembra.
“Ele queria ver as coisas acontecerem rapidamente. O Luiz Renato, literalmente, ‘quebrava o pau’, porque achava que nossos países latino-americanos eram governados por ditadores ou por pessoas subservientes aos interesses do imperialismo. E, como dizia, a única linguagem que este ‘pessoal’ entendia, era a da luta armada, como aconteceu em Cuba”, prossegue Leal.
Um dia, Luiz Renato sumiu. “Qual não foi minha surpresa quando vi, em um jornal boliviano mostrado por colegas da Patrice Lumumba, uma foto do Luiz posando junto com outros militantes armados na Bolívia. O jornal noticiava sua morte”, recorda Leal. Tal era o entusiasmo e a radicalidade demonstradas por Renato que militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) chegavam a cogitar que ele fosse um agente infiltrado, fazendo-se passar como revolucionário para conquistar a confiança dos companheiros. De um colega do PCB, ouviu: “Imagine, e eu que pensava que o Luiz fosse um agente da direita”.
Volveremos a las montañas
O boliviano Osvaldo “Chato” Peredo estudava Medicina na Universidade Patrice Lumumba, em 1966, quando recebeu dos irmãos mais velhos, Inti e Coco, a missão de recrutar estudantes dispostos a engrossar as fileiras do Exército de Libertação Nacional, que sob a liderança de Ernesto Che Guevara iniciava sua campanha na Bolívia. Chato recorda bem o encontro com os irmãos no aeroporto de Moscou no dia 7 de novembro de 1966, um dia depois de a guerrilha do Che começar. “Eu queria ir com eles, mas me dão a tarefa de recrutar os estudantes de países socialistas”, diz.
Em setembro de 1967, quando Luiz Renato chegava a Moscou para estudar na Patrice Lumumba, Chato Peredo já havia se graduado médico e andava pelo mundo a recrutar jovens para a guerrilha. Coco morreria no mesmo mês, em combate, e Guevara, em outubro. Inti Peredo seria o principal líder do ELN e um dos cinco sobreviventes da guerrilha do Che a deixar a Bolívia rumo a Cuba, de onde no ano seguinte redigiria o manifesto, publicado em julho de 1968, no qual proclamava: “A guerrilha boliviana não morreu. Voltaremos às montanhas”.
Foi por esse período que Luiz Renato se engajou na “outra guerrilha guevarista” na Bolívia, sequência do movimento iniciado por Che. Chato não sabe precisar se conheceu Luiz Renato em Moscou. “Eu me reunia com as pessoas, e possivelmente assim foi o contato com Renato, porque não recordo o momento em que ele se incorpora”, diz.
A entrada na Bolívia, depois de um período de treinamento em Cuba e de preparação no Chile, se deu em meados de 1969. Futuros guerrilheiros e apoiadores urbanos viviam em pequenos grupos, em casas espalhadas por La Paz. Em setembro daquele ano, antes mesmo de entrar em ação, a guerrilha sofreria um duro golpe com a morte de Inti Peredo, emboscado pela polícia em uma casa onde vivia clandestinamente.
Com a morte de Inti, o dirigente estudantil e mineiro Rodolfo Saldaña assumiu a chefia do ELN, defendendo o retorno ao Chile, para reorganização do grupo. Chato passou a liderar um grupo contrário à decisão do novo comandante. O ELN sofreu novo golpe com a notícia de que os cubanos Pombo, Urbano e Benigno, sobreviventes da campanha do Che, tinham decidido ficar em Cuba em vez de participar da nova empreitada guerrilheira. Em dezembro de 1969 apenas 12 combatentes do grupo original que treinou em Cuba decidiu ficar, lembra Chato. Luiz Renato estava entre os que decidiram continuar.
“Sabíamos que não viriam nem Pombo, nem Benigno, nem Urbano, em quem nós depositamos toda nossa confiança, porque não tínhamos nenhuma experiência guerrilheira. Éramos pessoas inexperientes. Não temos armas, não temos nada, não temos recursos econômicos. Eu afirmo: o dinheiro está nos bancos. Façamos uma ação”, relata Chato.
No dia 30 de dezembro, o ELN assalta um carro forte do Bank of América, que recolhia dinheiro de algumas empresas e terminava o recorrido, naquele sábado, na Cervejaria Nacional. Luiz Renato não participou diretamente da ação. O dinheiro obtido foi utilizado na compra de armamentos e na reorganização da guerrilha, reforçada com a adesão de jovens católicos de esquerda sem nenhuma experiência em combate, o que acabaria contribuindo para a rápida derrota da guerrilha.
Mesmo na Bolívia, prestes a pegar definitivamente em armas, Renato continuou escrevendo para a família. Deni guarda duas cartas. “Na situação em que encontro-me, não é possível mandar notícias seguido”, diz o jovem, então com 26 anos, no dia 27 de junho de 1970. Respondendo à irmã, reafirma sua convicção em pegar em armas. “Como tu disseste, todos temos um ideal e por este temos que lutar, assim entendo também e lutarei até as últimas consequências”, escreve, informando ter se casado, ainda que a companheira soubesse “que poderá ficará viúva mais ou menos rápido”.
Luiz Renato se casou com Susana, militante do ELN que atuava no apoio urbano à guerrilha. Na carta de 15 de julho de 1970 (leia abaixo), pede que lhe mandem a certidão de nascimento, “para que minha mulher possa registrar o filho que deverá, dentro de uns meses, nascer”. Na mesma mensagem, anuncia, escrevendo em portunhol: “Esta possivelmente é a última vez que te escrevo. Amanhã partirei definitivamente para las montanhas, começará la guerra breve e aspiramos expandir por toda América”.
Disposto a qualquer trabalho
No dia 18 de julho de 1970, um grupo de 67 guerrilheiros partiu, em dois caminhões, para a localidade de Teoponte, situada a pouco mais de 200 quilômetros ao norte de La Paz. Bandeiras brancas com um grande “A” azul sinalizavam que aquele seria um grupo de estudantes voluntários da Campanha de Alfabetização promovida pelo governo do general Alfredo Ovando Candia. Dias antes, o próprio ditador havia entregado cartilhas e credenciais a Horácio Rueda Peña, dirigente da Confederação Universitária Boliviana (CUB) e combatente do ELN. Nos caminhões, sob as cartilhas, iam armamentos escondidos.
Luiz Renato estava na retaguarda da guerrilha comandada pelo estudante boliviano, de origem camponesa, Estanislao Vilca. Chato Peredo afirma que chegou a cogitar nomear Luiz Renato como comissário político da guerrilha, mas acabou decidido pelo boliviano Nestor Paz Amora. Renato, inclusive, teria achado melhor não ter essa incumbência, posto que era estrangeiro e não falava bem o espanhol. Ademais, não tinha pretensões de comando.
Luiz Renato é descrito como exímio atirador pelo historiador Gustavo Rodríguez, autor do livro “Teoponte – Sin tiempo para las palabras”. Já Osvaldo Peredo, que foi seu chefe na guerrilha, lembra mais de Luiz Renato como um companheiro disposto a qualquer tarefa. “Do Renato, o que posso dizer é que era um companheiro muito íntegro, disposto a qualquer trabalho e nenhuma pretensão de comando”, lembra Chato.
Chato faria um gesto de reconhecimento ao valor do combatente brasileiro na primeira ação da guerrilha. No dia 19 de julho, o ELN tomou a localidade de Teoponte, assaltou a companhia South American Places e fez reféns dois engenheiros alemães. O rolex de um deles foi dado por Chato a Luiz Renato. “Quando lhe dou o relógio, foi simbólico, como dizer ‘você está por trás de tudo isso’, porque era decidido e disciplinado”, diz Chato.
A guerrilha seria dizimada em cerca de 100 dias. O general Candia havia prometido uma guerra sem feridos nem prisioneiros, e foi mais ou menos o que ocorreu. Inexperientes, os guerrilheiros sucumbiram diante de um Exército muito mais preparado do que na época do Che. Não contavam, além disso, com o apoio da totalidade da esquerda boliviana, que discordava de uma ação guerrilheira contra um governo militar de corte nacionalista. Após o dia 7 de outubro, quando o general Juan José Torres derrubou Candia e assumiu o poder, mandou manter vivos os nove sobreviventes da guerrilha de Teoponte, entre eles Chato Peredo. Luiz Renato, no entanto, já teria sido executado.
Execução
Uma versão falsa sobre as circunstâncias da morte de Luiz Renato há mais de dez anos e é uma das últimas referências ao brasileiro nos jornais. No dia 9 de junho de 1999, o Jornal do Brasil noticiou: “O gaúcho na verdade foi justiçado, junto com outro guerrilheiro, pelos próprios companheiros cubanos e bolivianos. Os dois foram punidos com a morte porque tomaram a lata de leite condensado tirado das provisões”. Até hoje a família de Luiz Renato se incomoda com essa versão, publicada pelo jornal a partir de um equívoco.
Segundo o texto, essa revelação havia sido feita por Cláudio Gutiérrez, ex-preso político gaúcho que chegou a participar de treinamento do ELN no Chile, sem ingressar na Bolívia. Gutiérrez estava lançando o livro “A Guerrilha Brancaleone”, no qual narra sua trajetória no movimento estudantil e na clandestinidade. O episódio teria sido relatado a partir do livro “Memórias de um soldado cubano”, publicado em 1996, em que Dariel Alarcón Ramírez, o Benigno, contou que dois guerrilheiros, um deles brasileiro, haviam sido executados pela guerrilha em razão de um furto de latas de leite condensado. “Luiz Renato era o único brasileiro naquele grupo”, afirmou Gutiérrez ao Jornal do Brasil, que transformou a suposição em fato.
As circunstâncias exatas da morte de Luiz Renato nunca foram esclarecidas – não há registros oficiais -, mas a versão de que o brasileiro teria sido executado pela própria guerrilha é falsa. Em seu diário de campanha, Chato Peredo revela os nomes de guerra dos dois executados pelo próprio ELN: Ferte e Peruchín (Federico Argote Zuñiga, boliviano, e Carlos Brain Pizarro, chileno). O fato aconteceu no dia 26 de setembro, quando Luiz Renato já havia se perdido do restante da guerrilha.
“Foi o exército que o fuzilou. Foram dois companheiros que foram justiçados, porque roubaram a reserva estratégica, roubaram dinheiro e abandonaram os companheiros que haviam ficado ali, esperando o que nós, que estávamos na vanguarda, podíamos conseguir”, disse Chato Peredo em entrevista realizada em 2007. Na entrevista do dia 24 de maio deste ano, em sua clínica médica também em Santa Cruz, reforçou que considera a tese fantasiosa.
No dia 1º de agosto de 1971, cerca de dez meses após o fim da guerrilha, o jornal boliviano El Diário publicou uma reportagem intitulada “Los caídos y verdugos de Teoponte”, difundido pela agência cubana Prensa Latina e assinado por um certo Ariel Rojo, provavelmente um pseudônimo. Trata-se de um relato de como ocorreram as execuções de vários guerrilheiros, entre eles Luiz Renato. Para Gustavo Ostría, entrevistado para esta reportagem em Santa Cruz de la Sierra, uma das hipóteses é que a informação tenha saído de dentro do próprio Exército, durante governo de Juan José Torres, e escrita por algum membro do ELN.
Embora nunca tenha sido comprovado, é um relato plausível e rico em detalhes, do que teria acontecido no dia 26 de setembro de 1970, um dia depois, portanto, do último registro no diário de Luiz Renato. Um camponês do povoado de Yaycurá teria revelado que dois guerrilheiros – nomes de guerra Eugenio e Raúl – estavam no povoado de Masapa, “em muito más condições”. A dupla de combatentes do ELN teria sido traída por “boteros” (barqueiros), aos quais haviam dado dinheiro e seus relógios em troca de serem levados para algum povoado não patrulhado pelos militares. “Mas depois de terem recebido o pagamento, os deixaram em Masapa, povoado que estava a 20 quilômetros de nosso acampamento”, diz o relato.
Antero e Luiz Renato teriam sido presos e levados para o acampamento militar, em Yaycurá, no dia 2 de outubro. No dia seguinte, chegou “um helicóptero para trasladar os prisioneiros à sua última morada, que seria em San Jorge, povoado próximo a Mapiri”, na região de Teoponte.
Às 11h25 da manhã de 2 de outubro de 1971, segundo o relato, Raúl tentou fugir e foi ferido por um soldado. “Eugenio, que estava no chão, sem forças para nada, grita desesperadamente que não o matem, mas o mesmo soldado abre fogo contra ele”, diz o texto. “Raúl e Eugenio caem no chão, queixando-se de dor. Os soldados disparam até acabar com suas vidas”.
Assinando como Carla, Susana escreve uma carta para Deni no dia 25 de janeiro de 1971. “Francamente, não sei como começar esta carta inacreditável”, começa. “Há quatro dias, me asseguraram que Luiz Renato morreu, possivelmente fuzilado pelo Exército”, diz Susana, que conta ainda que o filho deles nasceria “dentro de dois meses”.
Ausência de informações
Não se sabe onde foram enterrados os restos mortais de Luiz Renato, assim como os de vários outros guerrilheiros. Em fevereiro de 2010, o governo Evo Morales entregou aos familiares os restos mortais de quatro guerrilheiros. O trabalho foi realizado pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), com ajuda de pesquisadores bolivianos, entre eles Gustavo Rodríguez Ostría, mas não prosseguiu.
Os arquivos militares do período na Bolívia são fechados. O historiador Gustavo Rodríguez Ostría, que chegou a ser vice-ministro de Educação da Bolívia, conseguiu manusear alguns documentos relacionados à guerrilha durante a pesquisa para seu livro. Entre eles, algumas folhas datilografadas com a transcrição do que seria uma parte do diário de Luiz Renato – com registros esporádicos que, pelo que estava escrito, eram mesmo do brasileiro.
A Associação de Familiares de Detidos, Desaparecidos e Mártires da Libertação Nacional (ASOFAMD) tentou levar adiante um projeto de lei para a abertura dos arquivos militares, mas nunca obteve uma sinalização positiva do governo. “Neste momento, não convém ao governo se indispor com as Forças Armadas”, lamentou Luis Alberto Aparício, presidente da Asofamd, durante conversa em maio na sede da entidade, em La Paz.
Chato Peredo disse ter enviado duas cartas para o presidente Evo Morales, solicitando a abertura dos arquivos militares. “Mas se vê que no Exército há uma resistência grande, porque significa ratificar a imagem de um Exército de fuziladores. Seguramente muitos documentos estão aí, ou estão desaparecendo. E creio que nisso não tem a decisão o presidente Evo Morales de dizer, bueno, descodifiquem. Não me respondeu”, afirmou Chato.
O Ministério da Defesa e o gabinete de Evo Morales não responderam as solicitações de informações para esta reportagem.
O contato com Susana, companheira de Renato na Bolívia e mãe de Mabel, aconteceu já quase no encerramento da reportagem. Na manhã do dia 24 de julho de 2012, Susana atendeu o telefone na Inglaterra, onde vive. Foi solícita, mas não quis dar entrevistas. Limitou-se a dizer: “Prefiro não tocar neste assunto, que dói muito em meu coração. A família de Luiz Renato tem todas as informações e creio que eu não teria mais a acrescentar. Não gostaria que meus sentimentos fossem publicados. É um tema muito doloroso para mim”.
* Daniel Cassol (dbcassol@gmail.com) é jornalista free-lancer. Formado pela UFRGS em 2003, mora em Porto Alegre. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.
Ridículo do Brasil: US$ 80.000 por um Jeep Grand Cherokee
12 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaBrasileiro paga mais que o dobro por um carro norte-americano popular, crendo que está adquirindo status de elite financeira e riqueza |
No ano passado, Marco Bahé falou aqui no Acerto de Contas sobre o altíssimo preço cobrado pelos automóveis no Brasil. O texto tratava da alta lucratividade das montadoras no Brasil, que inflacionava o preço dos automóveis.
Na verdade o alto preço cobrado também reflete a pouca exigência coletiva do consumidor na negociação por preços, já que carro é considerado status no Brasil.
Esse fato, somado à boa vontade excessiva de Brasilia com a incompetência da indústria nacional, oferece esta situação surreal de mercado. Quando falo em boa vontade excessiva, basta lembrar da retaliação à Jac Motos no Brasil, que já foi assunto de discussão no Acerto de Contas.
Hoje a Forbes trouxe um artigo falando sobre o fato dos brasileiros pagarem 80 mil dólares por um carro considerado simples nos EUA, que até (esse foi o termo) um professor primário do Bronx tem condições de comprar, porque lá é muito barato.
O artigo ainda ironiza o fato de que as pessoas pagam isso no Brasil porque supostamente dá status.
Segue o texto, que retrata bem esta situação.
Brazil’s Ridiculous $80,000 Jeep Grand Cherokee
Na Forbes (Artigo original em inglês livremente traduzido pelo Sr Comunica)O Jeep Grand Cherokee 2012 é visto no chão do New York International Auto Show. Os brasileiros adoram este carro tanto que estão dispostos a pagar mais de 80 mil dólares por ele |
Os Jeep Grande Cherokee 2013 brasileiros têm o custo estelar de R$ 179.000, ou cerca de 89.500 dólares. Os direitos de importação e outros impostos fazem com que a compra brasileira de um musculoso Jeep Cherokee custe três Jeeps deles, se eles estivessem vivendo em Miami como seus amigos. Nos EUA, o Jeep Grand Cherokee 2013 irá correr com você por cerca de US$ 28.000. Isso é quase metade da renda média americana, mas US$ 89.500 está a anos luz de distância da renda média brasileira.
Para não ficar atrás, o Grupo Chrysler vai lançar seu Dodge Durango SUV 2013 por mais do que o preço de etiqueta do Jeep. O Durango será apresentado no Salão do Automóvel de São Paulo, em outubro, por módicos R$ 190 mil (US$ 95.000). Nos EUA, é vendido por cerca de US$ 28.500. Um professor do ensino fundamental no sistema escolar público do Bronx pode comprar um. Tudo bem, talvez não um novo, mas com um ou dois anos de uso, certamente.
Não há outra razão para que a tributação pesada de mais de 50% e a ingenuidade do consumidor pensar que pagando o preço de um BMW X5 é o mesmo que comprar um Cherokee. Desculpe, Brazukas ... não há status em um Toyota Corolla, Honda Civic, Jeep Grand ou Dodge Durango. Não se deixe enganar pelo preço. Você está definitivamente sendo roubado.
Pense desta forma, se o seu amigo americano lhe disse que apenas comprou um par de Havaianas por US$ 150. Você diria a ele que pagou demais. Claro que o chinelo é sexy, elegante e chique, mas ele não vale US$ 150 dólares. Quando se trata de carros para status no Brasil, as classes mais altas estão servindo Pitu e Pinga 51 em suas caipirinhas e pensando em seu licor da prateleira de cima.
Para aqueles que sabem ler Português, confira Noticias Automóveis, um blog sobre carros no Brasil. Eles têm um artigo explicando em detalhes onde a maioria do dinheiro vai para o preço de mercado dos carros no Brasil.
Fórmula do MEC pra acabar com greve nas universidades: pelegos, pressão e reitores amigos
9 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaO comunicado oficial emitido pelo MEC mostra que a aposta do Governo é sufocar de todas as formas os professores para que acabem com a greve nas universidades federais.
A estratégia é clara:
- Assinar um acordo com os pelegos do Proifes para justificar politicamente o acordo
- Pressionar psicologicamente os professores, avisando que a partir de agora não terá mais negociação
- Articular reitores petistas amigos de grandes universidades para acabarem com a greve
- Se isso não funcionar, parte-se para o próximo passo: corte de salários
Apenas rememorando o que aconteceu.
Após levarem um cano em um acordo em março, os professores decretaram greve a partir de 17 de maio. Depois disso, por várias vezes o Governo desmarcou reuniões.
Depois de praticamente 60 dias, o MEC de Mercadante e Amaro Lins (foto), apresentou uma proposta que apenas repõe a inflação desde 2010. Isso dividido em 3 vezes, até 2015.
A ideia era clara: fazer um acordo de 3 anos, porque isso evita greves posteriores.
Os professores não aceitaram o acordo, pois alguns “bodes” haviam sido colocados, como o aumento das horas-aula em troca de nada.
O Governo pega a mesma proposta e a apresenta com cara de nova. Tirou os “bodes” e deu R$ 90,00 a mais apenas para os mestres, em 2015.
Isso mesmo, a diferença de uma proposta para a outra é um acréscimo de R$ 90,00 para os que possuem apenas o título de mestre. Para os doutores, nada mais.
Logo após o fim da reunião, os pelegos do Proifes saíram acenando para a “conquista” da categoria.
Novamente rechaçada a proposta pelas assembleias docentes, o Governo resolveu dizer que encerrava a negociação e ponto final.
Passamos agora para o segundo ponto da estratégia de Mercadante e Amaro: pressionar psicologicamente os docentes, tentando criar um racha com parte dos professores, já que alguns desejam a saída da greve.
Antes que alguém pense em culpar estes professores, é bom que saibam que grande parte não gosta de greve, já que é uma desmotivação muito grande para quem gosta da Universidade. Esta parte aderiu à greve porque os salários estão muito baixos.
O terceiro ponto da estratégia do MEC começa a dar sinais visíveis.
Nas assembleias realizadas na UFPE e na UFRJ, grupos razoavelmente númerosos para assembleias docentes (em torno de 30 professores), resolveram aparecer para “encaminhar pedidos” de inclusão na pauta de próximas assembleias a “saída da greve”.
A coincidência (não acredito nelas), é que estas duas universidades tem como reitores, petistas ligados justamente a Amaro Lins e Aloisio Mercadante.
No caso da UFPE, que conheço bem pois sou professor de lá e fui o candidato da oposição à atual gestão, o atual reitor não dá um passo sequer sem perguntar a Amaro (ex-Reitor da UFPE) o que fazer, já que ainda deve o mandato ao amigo do MEC.
Em um caso sui generis, reúne-se com os professores em Recife e diz que a greve é justa. Pega um avião, vai a Brasília e dá entrevista dizendo que está na hora da greve acabar pois a proposta é boa. Para o Correio Braziliense, disse: “A afirmação do mérito, melhoria do salário inicial da carreira, tornando-a mais atrativa, bem como a antecipação dos reajustes salariais para março do próximo ano, possibilitam enfrentarmos os desafios seguintes de forma concreta”
O mesmo acontece com a UFRJ, cujo Reitor é próximo de Mercadante.
E esse movimento para acabar com a greve nas assembleias via articulação das reitorias pode crescer nas próximas assembleias, já que as administrações possuem centenas de cargos comissionados, além de uma capilaridade impressionante junto aos docentes.
Neste momento a greve fica em um impasse difícil de ser solucionado: por um lado o Governo resolve fechar as portas, por outro sabe-se que a proposta do Andes nem mesmo tem apoio intenso de toda a categoria, já que parte dos professores com doutorado gostaria de uma proposta com ênfase mais meritocrática. Acabou conseguindo a adesão da grande maioria porque o salário está muito baixo. Mas exigir uma proposta unânime neste momento seria pedir demais.
Independente disso, voltar ao trabalho depois dessa estratégia truculenta e indecente do Governo seria o reconhecimento de uma derrota acachapante. Seria aceitar o papel de submisso em uma luta por melhores salários e condições de trabalho, já que profissionais de categorias semelhantes, como pesquisadores do IPEA e MCT conseguiram carreiras muito melhores no Governo Lula.
Por incrível que pareça, hoje ganhamos menos que em 1998, no meio do Governo FHC.
Isso sem falar de universidades cujas salas de aula estão instaladas provisoriamente em galpões ou containers.
No próximo post sobre a greve irei falar sobre a previsão para o próximo semestre, que é assunto de interesse de todos.
(Publicado no Acerto de Contas)
Manuel Castells: 'Quando a internet, como espaço livre de comunicação, combinou-se com a ocupação dos espaços públicos, o jogo começou a mudar'
8 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaManuel Castells: 'Quando a internet, como espaço livre de comunicação, combinou-se com a ocupação dos espaços públicos, o jogo começou a mudar' |
Francisco Guaita - Você costuma dizer que o poder não está na Casa Branca, nem nos mercados financeiros, mas em nosso próprio cérebro. Por que este é um segredo das elites?
Manuel Castells - Bem, é porque se eles nos contarem isso, perdem o poder. O poder real não é o poder da polícia ou do exército: estes só são utilizados em último caso, quando as coisas estão muito mal para o interesse dos poderosos. O mais importante, se você quiser ter poder sobre mim, é conseguir que eu pense de uma forma que favoreça o que você quer, ou que me resigne. Aí está o poder! Portanto, o essencial é o poder que está na mente, e a mente se organiza em função de redes de comunicação e neurológicas no nosso cérebro que estão em contato com as redes de comunicação em nosso entorno. Quem controla a comunicação controla o cérebro e, dessa forma, controla o poder.
Francisco Guaita - Movimentos como o Occupy tentam se apoderar das praças e das ruas para dizer que isso não funciona, querem que o poder venha das pessoas. Essa é uma demanda que, para muitos, não terá nenhum resultado na política ou na economia. O que você acha sobre isso?
Manuel Castells - Depende do que você entende como resultado. Se você quer dizer que disso sai um partido político que ganhe as eleições nos próximos dois anos, não é possível ter certeza. Todos esses movimentos colhem frutos em longo prazo. O slogan mais difundido dos indignados e das indignadas é 'Vamos devagar, porque vamos longe'. Vamos longe para onde? Uma mudança na mente dos cidadãos, depois de algum tempo, se converterá em mudança social.
Os dados mostram que na Espanha aproximadamente 70% dos cidadãos concordam com as críticas dos indignados. A maioria dos cidadãos também pensa que não poderá mudar as coisas em curto prazo. As duas coisas são compatíveis. As pessoas pensam que o movimento tem razão, mas não tem os instrumentos.
Francisco Guaita - Se é uma grande maioria, por que não houve transformações?
Manuel Castells - Não, por que não há em quem votar. O próprio movimento não quis criar um partido para não reproduzir a velha política. Existe um abismo tão grande entre o que seus integrantes pensam e o sistema político real que não há uma expressão política capaz de representá-los. Por exemplo, se o Partido Socialista tivesse sido capaz de prever que um movimento assim poderia revitalizá-lo, haveria um caminho. Mas os socialistas envolveram-se totalmente com a especulação financeira. Eles geriram o Banco de España e foram totalmente incapazes de supervisionar o sistema financeiro, porque isso não lhes interessava. Há uma grande lista de motivos pelos quais os indignados desaprovam os socialistas e os socialistas nunca fizeram nada para mudar.
As elites políticas de todos os países optaram por este rumo. Pensaram que não havia problema e seguem com seus negócios, pois o que conta são os votos a cada quatro anos, com uma lei eleitoral que os grandes partidos fizeram para que só eles mesmos pudessem ganhar. Nos Estados Unidos, se você não é democrata ou republicano não tem nenhuma chance. Além disso, se você não tem dinheiro, simplesmente não pode ganhar. Não se consegue voto se não se compra a campanha com dinheiro. As críticas, em todo o mundo sugerem que este tipo de democracia não é suficiente. Em consequência, sob essas regras do jogo, gastar toda a energia para fazer a política formal é uma operação sem sentido. Reproduz os velhos esquemas dos grupos de esquerda trotskistas, marxista-leninistas, de todos os tipos, que sempre estiveram nas instituições, mas nunca chegaram a nada. Ou que tentaram a revolução armada - o que ninguém quer, porque é um movimento claramente não-violento. Então, têm que fazer outra coisa. Eles vão por esse longo caminho da transformação das consciências para que em algum momento os cidadãos possam tomar outras decisões, e daí possam surgir novas forças políticas.
Francisco Guaita - Não é preciso mudar as regras?
Manuel Castells - Um dos grupos do movimento espanhol - porque não é o movimento, mas uma galáxia - pediu que eu fizesse uma proposta de reforma da lei eleitoral. Eu fiz com um amigo especialista nesse tema. É uma proposta de voto proporcional, de limitar o poder dos grandes partidos e fazer com que no parlamento as pessoas que não votam estejam presentes - inclusive visualmente, não como representantes, mas com espaços vazios. Se 30% dos cidadãos não votam, esses 30% devem estar marcados, e as maiorias de decisões de governo devem se constituir sobre o conjunto de cidadãos, não apenas sobre os que votaram.
Há uma série de coisas que poderíamos conseguir, mas há nas instituições políticas e nos partidos uma enorme resistência em ser realmente democráticos. Entre outros motivos, porque é um modo de vida, são profissionais da política. Em todos os países, a profissão que está nas posições mais baixas na lista de reputação é a da classe política. Na Itália, incluíram também prostitutas e mafiosos numa sondagem e eles ficaram em uma posição melhor que os políticos. As pessoas alegavam: "Pelo menos, estes dizem o que fazem".
Existe uma crise de confiança em todo o mundo em relação à classe política. Se isso continuar, em algum momento irão se romper as relações na sociedade, e isso seria muito grave. Na Espanha, há uma situação relativamente calma e pacífica. É sorte que com 22% de desemprego, 48% entre os jovens, não haja muitos problemas nas ruas. Este movimento canaliza os debates e protestos, oferece uma esperança, principalmente aos jovens, de que podem começar a se organizar e vamos ver o que acontece. Mas se a situação continuar assim, esse movimento necessariamente vai se radicalizar.
Francisco Guaita - Por que as instituições se separaram tanto das pessoas? Por que o abismo foi se expandindo?
Manuel Castells - Primeiro, porque as elites financeiras detêm o poder econômico e montaram um sistema no qual, em vez de emprestar para produzir, o que fazem é vender dinheiro para criar dinheiro artificial e montar uma pirâmide em que tudo é fictício, em nível global. Aumentaram artificialmente os preços dos imóveis e das ações e concederam empréstimos às pessoas, mesmo que não quisessem, porque o negócio era vender dinheiro e empréstimos em qualquer condição. Isso foi feito de forma totalmente irresponsável do ponto de vista da economia, mas de maneira muito interessante para os grandes executivos que agora estão deixando os bancos com indenizações milionárias. Para eles, tudo funcionou muito bem.
Francisco Guaita - Quando a justiça vai ganhar nestas regras do jogo que você propõe reconstruir?
Manuel Castells - Quando os cidadãos tiverem capacidade de mudar os políticos. Sim, as pessoas podem votar. Mas primeiro, podem fazê-lo apenas a cada quatro anos. Segundo, estão sob regras muito desiguais e por isso é muito complicado mudar algo através do voto.
A maior parte dos políticos é gente mais ou menos honesta. Não é verdade que sejam todos corruptos. Mas qual o objetivo central de um político? Conservar o posto. Esse é o aspecto mais importante. Para a maioria, é uma profissão. Se não fizerem isso, terão que trabalhar como todo mundo. Se mantiverem o poder terão melhores cargos, até porque a maioria não tem nível profissional muito alto.
Então a classe política se reproduz. Para entrar em um partido, você tem que começar aderindo a um dos grupos internos. É todo um mundo fechado em si mesmo, e esse mundo não tem ar. A novidade é que com a internet abriram-se janelas. Os políticos e banqueiros, juntos, controlam os meios de comunicação - mas não controlam os jornalistas que, por sorte, são a linha de resistência - mas orientam os proprietários dos meios de comunicação e, portanto, suas linhas editorias. Por consequência, temos o controle dos meios, das finanças (e, portanto, da economia) e o controle do Estado através de uma classe política que se reproduz.
Fora disso, só há a internet. E foi justamente a partir da internet que se construíram redes de debates, de organização, de ação. Mas para agir sobre a sociedade, as pessoas têm que sair de casa, ir às ruas. Foi quando a internet, como espaço livre de comunicação, combinou-se com a ocupação dos espaços públicos, transformados em ágoras, o jogo começou a mudar. Mas o movimento ainda não se traduziu em grandes mudanças na política, porque o sistema está fechado.
Francisco Guaita - Quão distante está o cidadão da realidade retratada nos meios de comunicação?
Manuel Castells - Depende do aspecto. Na Espanha, os meios de comunicação repetiram milhares de vezes, durante dois anos, as afirmações do presidente do Banco Central. Disseram que os bancos nacionais eram os mais seguros do mundo e não havia nenhum problema com os bancos espanhóis. Nenhum meio contestou isso. Ou são tontos e não têm capacidade de análise ou a cada vez que alguém sério tentava dizer algo havia um problema com a linha editorial.
O resultado é que os bancos espanhóis já devem 250 bilhões de euros ao Banco Central Europeu e agora dizem que vão pegar mais dezenas de bilhões. A dívida, portanto, é impagável, pois os bancos espanhóis estão quebrados. Significaria dizer aos cidadãos que seu dinheiro está em perigo e não sabem o que fazer. Há o risco de que o euro, no mínimo, se desvalorize ou até mesmo acabe. O governo não pode aconselhar os cidadãos a se desfazerem da moeda, mas deve tornar disponível a informação sobre o que está acontecendo, e os meios de comunicação também devem fazer isso.
Francisco Guaita - A internet abriu a janela, mas os meios de comunicação tradicionais ainda têm muitos leitores da rede. Os cidadãos podem se comunicar, mas não são figuras de referência, comparáveis às que aparecem na mídia. Como podemos aprender nos autoinformar?
Manuel Castells - Você tem razão. Mas começam a surgir saídas. Primeiro, as pessoas montam seu próprio jornal ou meio de comunicação on-line. Não lemos 'El Paí's ou 'El Mundo' ou 'La Vanguardia' inteiramente. Lemos um artigo aqui e outro lá, comparamos com outras fontes da imprensa estrangeira, ouvimos o que nossos amigos nos dizem. Fazemos um mosaico de informações. Não somos prisioneiros de um meio.
Francisco Guaita - Mas costuma-se dizer que o leitor procura reforçar o que pensa e não se informar por outras vias.
Manuel Castells - Você está certo. O que sabemos é que as pessoas buscam principalmente o reforço para suas opiniões, mas isso porque têm pouquíssima possibilidade de serem cidadãs, ativas. Reduzem-se a consumidores passivos. Não estão acostumadas a abrir suas próprias janelas. Se sua opção é entre os meios de comunicação que já existem, a atitude provável é: "Vou ver ou ler aquilo de que gosto mais".
Outra lógica se abre quando as pessoas entram em um espírito mais crítico, desconfiam dos meios. Aí começa outra atitude, que é a wiki-informação: eu informo meus amigos, meus amigos me informam, vamos discutindo e assim se organiza um grande debate na internet do qual saem coisas. Em função desse espírito crítico em rede, examina-se o que os diferentes meios estão dizendo. E esse espírito crítico reconstrói todos os mecanismos de informação, que passam a seguir um novo fluxo - de muitos para muitos - ao invés de todos receberem uma mensagem com muito poucos emissores.
Francisco Guaita - Você diz que vivemos na sociedade da informação, mas estamos desinformados, com uma educação muito pobre e, além disso, temos medo - uma ferramenta fundamental em todo esse mecanismo. Como funciona o medo, para que as regras do jogo não mudem e para que as mesmas pessoas sigam comandando as estruturas de poder?
Manuel Castells - Em primeiro lugar, a educação é pobre, mas comparando historicamente, estamos mais bem formados do que antes. Se há uma variável que se repete em todos os novos movimentos do mundo é o fato de serem constituídos por gente educada. Isso não quer dizer que ganham mais dinheiro. O ativista típico é o profissional recém-graduado, ou de uns 30 anos, com um trabalho muito precário ou desempregado. Essas pessoas podem passar a ter uma atitude mais crítica, apostando em uma mudança de mentalidade.
Por exemplo, os direitos da mulher. Há quarenta anos, nenhum partido majoritário falava sobre eles como tema principal. Hoje, se não falam disso, têm um problema. Há trinta anos a ideia de desenvolvimento sustentável, de que é preciso defender um modelo ecológico, de que é preciso integrar a natureza à cultura e ao consumo, era coisa de radicais, nenhum partido sério colocava isso no programa. Hoje, precisaram se pintar de verde, pelo menos um pouco, porque se não o fazem, são rechaçados.
Muitas ideias não são de um partido ou de um líder. São formas de conceber nossa vida em sociedade. Essas grandes mudanças na mentalidade demoram. Precisam de tempo, de debates, de ir além dos líderes.
Francisco Guaita - Dentro desses direitos, entra o tema da internet livre. Está se tornando um ponto essencial como foi o desenvolvimento sustentável e os direitos da mulher.
Manuel Castells - Você tem muita razão. Nesse momento, defender a liberdade na internet é a base para defender a liberdade em todos os sentidos. Como os poderes estabelecidos cada vez mais desconfiam da internet, odeiam-na. Se pudessem acabar com ela fariam como os chineses que permitem a conexão para os negócios e educação e nada mais. Mas não é tão fácil.
Existem tantas ameaças à liberdade na internet que os jovens estão criando uma série de partidos e de movimentos que vão criar muitos problemas aos que tentarem restringir a liberdade. Pouco a pouco, o velho sistema está se consolidando em partidos de direita ou de esquerda que estão de acordo em um ponto essencial: resistir a novas formas de representação democrática. Daí, duas coisas podem acontecer: ou eles realmente se abrem e aceitam redefinir o jogo democrático ou não se abrem, e essa é uma perspectiva muito pessimista. Não acredito nas revoluções violentas, mas em situações de tensão que vão se multiplicar e em uma situação de catástrofe econômica e de não-representatividade política, com as pessoas conscientes e críticas e um sistema cada vez mais pressionado, que começa a se defender.
Francisco Guaita - Você tem esperança?
Manuel Castells - Sempre. Mas porque os movimentos têm esperança. Meu novo livro, que será publicado em breve, chama-se 'Redes de indignação e esperança', dois sentimentos que existem no movimento. A indignação foi fundamental para superar o medo, porque o medo é a emoção que todas as sociedades impõem para não mudar nada. As pessoas têm medo de que, se fizerem algo que não está dentro das normas do sistema, no mínimo perdem o emprego. Como se supera o medo? As próprias experiências neurocientíficas mostram que é com a indignação. Quando se sente muito indignado, você não se importa com o que pode acontecer. Isso acontece.
Mas se não se transforma em um sentimento positivo, se a indignação é pura raiva, isso leva a um enfrentamento. Qual é o sentimento positivo? A esperança. A esperança de que algo irá mudar. Como se constrói a esperança? Quando as pessoas se reúnem. Por isso, o lema na Espanha é: 'Juntos, podemos'. É a ideia de que eu não posso sozinho, e que você não pode sozinho, mas muitos juntos, sim, podemos.
E juntas, não apenas as pessoas que estão na Puerta del Sol, em Madri, mas em outros países também. A vitalidade desse movimento não é apenas em função da internet, a vitalidade é necessária para poder seguir fazendo algo aparentemente impossível, que é reconstruir a democracia a partir dos cidadãos.
Esse texto foi anteriormente publicado em Outras Palavras.
Transcrição e tradução: Daniela Frabasile
"Feminismo é um pecado mortal", diz acusação no caso da banda Pussy Riot
7 de Agosto de 2012, 21:00 - sem comentários aindaJulgamento da banda punk expôs sistema jurídico parcial e grupos da sociedade conservadores e religiososDa Agência Efe. Lido no Opera Mundi
Integrantes da banda punk durante julgamento |
Com frases como “o feminismo é um pecado mortal”, o julgamento da banda punk feminina Pussy Riot completou seu sexto dia e reabriu questionamentos sobre a imparcialidade da justiça, bem como do lado religioso e conservador da sociedade russa.
A Promotoria russa exigiu nesta terça-feira (07/08) uma pena de três anos de prisão para as integrantes da banda, sustentando que representam uma ameaça para a sociedade pela possibilidade de realizarem outros protestos no país. No último dia para as falas da acusação, as artistas foram denunciadas pelo crime de desrespeito à religião.
Os promotores e advogados de acusação sustentam que a apresentação da banda em uma Igreja Ortodoxa, em fevereiro desse ano, não constituiu uma ação política, mas sim de ódio religioso. Prova disso, afirmam eles, é que nenhum político foi citado na canção de nome “Virgem Maria, expulse Putin”. “Elas debocharam e humilharam as pessoas na Igreja”, disse o promotor Alexei Nikiforov. “Usar palavrões numa igreja é um abuso contra Deus”, completou ele.
Os promotores e advogados de acusação sustentam que a apresentação da banda em uma Igreja Ortodoxa, em fevereiro desse ano, não constituiu uma ação política, mas sim de ódio religioso. Prova disso, afirmam eles, é que nenhum político foi citado na canção de nome “Virgem Maria, expulse Putin”. “Elas debocharam e humilharam as pessoas na Igreja”, disse o promotor Alexei Nikiforov. “Usar palavrões numa igreja é um abuso contra Deus”, completou ele.
Perguntas como “O que a religião ortodoxa significa para você?”, “As roupas delas eram apertadas?” e “O que te ofendeu com as máscaras que usavam?” foram feitas para as testemunhas da acusação, que estavam na Igreja no momento da intervenção artística. Uma delas se contradisse ao afirmar que escutou uma música na catedral, sendo que a banda acrescentou depois os instrumentos no vídeo divulgado no YouTube.
Baseando-se nas impressões de fiéis ofendidos com a performance das Pussy Riot, uma das advogadas da acusação chegou a afirmar que o feminismo é um crime. “Todas as rés declararam ser feministas e disseram que isso é permitido na Igreja Cristã-Ortodoxa”, disse Yelena Pavlova. “Isso não corresponde com a realidade. O feminismo é um pecado mortal”, completou.
“Elas tem de ser isoladas da sociedade”, afirmou Alexei Nikiforov que pediu três anos de prisão para todas as integrantes da banda pela apresentação. O promotor poderia ter exigido a condenação máxima de sete anos, mas parece ter seguido os conselhos do presidente russo. Vladimir Putin na semana passada (02/08) disse que as mulheres não “fizeram nada de bom”, mas não devem ser julgadas tão duramente.
Resistência
O presidente russo parece ter seguido o conselho do advogado de defesa, Mark Feigin, das Pussy Riot que alertou que uma condenação “romperia definitivamente as relações entre a sociedade e o governo russo”. O julgamento, assim com a marcha contra as eleições que reelegeram Putin, uniram grupos de oposição que sustentam que o governo russo persegue seus críticos.
Resistência
O presidente russo parece ter seguido o conselho do advogado de defesa, Mark Feigin, das Pussy Riot que alertou que uma condenação “romperia definitivamente as relações entre a sociedade e o governo russo”. O julgamento, assim com a marcha contra as eleições que reelegeram Putin, uniram grupos de oposição que sustentam que o governo russo persegue seus críticos.
Agência Efe
Manifestante russo é preso pela polícia em protesto pela libertação da banda
Segundo eles, as denúncias contra a banda punk fazem parte de um esforço de Putin para intimidar a sociedade e russa. “Eles declaram guerra contra nós!”, alertou o líder esquerdista Sergei Udalstov em protesto no final de julho pela libertação das músicas que reuniu milhares de pessoas. “Para a sua rejeição da lei, existe uma resposta da rua", disse Feigin.
Na sexta-feira (03/08), três homens escalaram as paredes do tribunal, utilizando gorros em suas caras como o das mulheres, e gritaram “Liberdade às Pussy Riot!” das janelas, informou o jornal britânicoThe Guardian. Segundo a correspondente do jornal em Moscou, outros atos semelhantes aconteceram em outras cidades do país.
Figuras importantes da arte na Rússia protestaram a favor das acusadas, como Petr Pavlesnky que costurou sua boca em solidariedade à banda punk. A luta das artistas atravessou os oceanos e mobilizou diversos famosos, como Sting e Red Hot Chili Peppers e até Madonna que realiza shows no país nesta semana.
Segundo eles, as denúncias contra a banda punk fazem parte de um esforço de Putin para intimidar a sociedade e russa. “Eles declaram guerra contra nós!”, alertou o líder esquerdista Sergei Udalstov em protesto no final de julho pela libertação das músicas que reuniu milhares de pessoas. “Para a sua rejeição da lei, existe uma resposta da rua", disse Feigin.
Na sexta-feira (03/08), três homens escalaram as paredes do tribunal, utilizando gorros em suas caras como o das mulheres, e gritaram “Liberdade às Pussy Riot!” das janelas, informou o jornal britânicoThe Guardian. Segundo a correspondente do jornal em Moscou, outros atos semelhantes aconteceram em outras cidades do país.
Figuras importantes da arte na Rússia protestaram a favor das acusadas, como Petr Pavlesnky que costurou sua boca em solidariedade à banda punk. A luta das artistas atravessou os oceanos e mobilizou diversos famosos, como Sting e Red Hot Chili Peppers e até Madonna que realiza shows no país nesta semana.
“Em um primeiro momento, depois dos protestos contra Putin em dezembro, as autoridades se assustaram”, explicou o advogado de defesa Nikolai Polozov. “Agora, eles se recuperaram e começaram a reagir – o julgamento da Pussy Riot é claramente o primeiro passo”, acrescentou de acordo com o Guardian.
Imparcialidade da justiça
Grupos russos e internacionais que apoiam a luta das artistas estão cada vez mais indignados com as atitudes da justiça na condução do processo. Enquanto todas as testemunhas de acusação foram autorizadas pela juíza Marina Syrova, apenas 3 das 13 testemunhas nomeadas pela defesa puderam ser interrogadas no julgamento. Syrova também foi responsável por permitir uma série de perguntas da acusação às testemunhas, mas vetou que a defesa realizasse as mesmas questões.
A justiça russa já recusou diversos pedidos judiciais da defesa, incluindo uma apelação para enviar o processo de volta à Promotoria já que não existem provas suficientes. Os advogados de defesa da Pussy Riot impetraram pedido no tribunal para chamar o representante da instituição religiosa a testemunhar no processo que foi negado, informou a rede Interfax.
“Mesmo nos tempos soviéticos, nos tempo de Stalin, os julgamentos eram mais honestos do que esse”, afirmou Polozov durante o tribunal.