Emblemático. No dia da segunda reconstituição do caso Amarildo, recebo o vídeo sobre a ação de um capitão do Batalhão de Policiamento de Choque da Polícia Militar do Distrito Federal. Simplesmente o capitão anda entre os manifestantes distribuindo alguns jatos de spray de pimenta. Quando indagado sobre sua ação, afinal os manifestantes não haviam desobedecido às ordens sobre os limites estabelecidos pelo Batalhão, o oficial sorridente responde: “Porque eu quis, pode ir denunciar”.
Antes deste final “triunfal”, devemos prestar atenção à frase dita anteriormente: “a partir do momento em que vocês definirem o objetivo, de repente a gente pode estabelecer metas para vocês”. Vamos tentar compreender o discurso do oficial: ele pressupõe que deve negociar a ação policial com os manifestantes, certo? “A partir do momento em que”. Condiciona a ação policial ao conhecimento dos objetivos do grupo. Primeira parte esclarecida. A segunda parte torna a questão muito mais complexa. Iniciarei destacando apenas um termo : “de repente”. Todos sabemos das dificuldades no emprego correto da língua portuguesa, e sob pressão, como afirmou o comandante geral Jooziel Freire, é possível que o capitão tenho dito algo que não fazia o menor sentido.
“De repente” é uma locução adverbial de tempo que deve ser usada apenas como indicação de algo súbito, repentino, jamais como algo que “talvez possa acontecer”. Mas este foi o emprego da locução. Quer dizer, “talvez” possamos não abusar de nossa autoridade. O final da frase, demonstra o grave problema do homem responsável por coordenar a ação policial : “a gente pode estabelecer metas para vocês”. O capitão Bruno deveria se envergonhar. Não apenas por ser um péssimo profissional, mas por sua total incapacidade de produzir uma frase com sentido. Quem é “a gente” capitão? É o Estado, que o senhor representa? É a corporação? Que metas, capitão? Os manifestantes não são seus subordinados, não são seus filhos. Nem seus parentes. Não há nada que o senhor possa estabelecer para eles. Seu ofício não o autoriza a estabelecer metas para população civil. No entanto, a fala do capitão Bruno diz muito sobre os policiais, suas hierarquias e sua forma de atuação.
Sempre me perguntei sobre a possibilidade de diálogo dentro dos quartéis com os policiais militares. Nada poderia ser mais estranho que propor uma reflexão sobre direitos humanos e Estado Democrático de Direito dentro de uma Academia de Polícia Militar. Como eles mesmos diziam: meu treinamento foi lavando chão de quartel e cantando o hino, não entendo nada de democracia. E indagavam realmente curiosos: como vou chamar o marginal de cidadão? Pois bem, o capitão Bruno sintetizou a concepção de um percentual expressivo (boa parte, pelo que temos visto) da polícia que segue vigorando sobre o que é a sociedade civil, manifestantes, jornalistas, moradores de favela e pobres em geral: marginais. Ou nas versões atuais, vândalos.
O capitão Bruno, deu um passo à frente. “Por que eu quis”. É isto que falta ao governador do Rio de Janeiro, ao secretário de Segurança, ao comandante da UPP da Rocinha. Admitir. Como Amarildo sumiu, por que um jovem foi morto no Jacarezinho no dia de seu aniversário, por que uma jovem ficou cega com arma “não letal” utilizada pela polícia? Eis a resposta, dada no feriado de 7 de setembro! E que data seria melhor? “Por que eu quis”. Ele quis. Não há outra justificativa, não foi necessário que nada ocorresse. Nem invasão, nem desacato. Ou seja, não há justificativa que possa ser empregada pelo Estado nos meses atuais e este capitão sintetizou as ações do Estado.
São centenas de policiais, comandantes, governantes, “querendo”. Querer, sinônimo de desejar, ter a vontade ou a intenção, neste caso da ação policial, ter consciência sobre a ação. Capitão Bruno não agiu “sob stress”, basta ver a imagem para comprovar isto. O jovem Israel Mallet foi alvejado com tiros de fuzil na favela do Jacaré. A polícia alega troca de tiros, a mãe nega. O policial atirou no rapaz. É simples, ele “quis”, tinha os meios e poder para efetuar os disparos. Em dezembro de 2008, Matheus de 8 anos, recebeu um tiro de fuzil quando saía para comprar pão na Baixa do Sapateiro no Complexo do Alemão. O comandante das Unidades Especiais, Alvaro Garcia, alegou que não foram os policiais e sim uma troca de tiros entre facções rivais. Apenas um projétil foi encontrado. O que matou Matheus. Quem comandou, quem decidiu, quem ordenou, quem atirou? Desejo, querer, poder, matar. Nesta ordem.
Há um problema de treinamento? Há um problema de recrutamento? Há um problema de compreensão dos direitos dos moradores de favela, dos manifestantes? Há uma continuidade das formas históricas de repressão utilizadas no Brasil desde Palmares? A fala do capitão Bruno realmente suspende boa parte das explicações dadas sobre uso da força pelo Estado no Brasil. Foi isto que os policiais da UPP pensaram quando levaram Amarildo? Nós podemos, queremos. E assim foi feito. Ignoraram a possibilidade de que suas justificativas não fossem aceitas. Nem o delegado Ruchester Marreiros convenceu ao tentar alegar o envolvimento de Amarildo e sua esposa com o tráfico. Suas 1000 páginas de investigação são pífias. Como em outros casos, o Estado resolve culpar o morto.
O que fez um homem como Ruchester, professor de Direito Penal da EMERJ e estudante em Direitos Humanos na Argentina, cometer tal ato? Incompetência? Leviandade? Ou, vontade? Concluo que o Capitão Bruno possibilita avançar nesta discussão. Sua frase é a síntese das ações policiais atuais. O Estado de Direito, é suspenso. Parte dos treinamentos, já na década de 90, consistiam em mostrar aos aspirantes qual é o verdadeiro trabalho policial. Através de espancamentos, humilhações constantes, submissão a rituais violentos para surgimento da identidade policial militar, os alunos deveriam compreender que na selva seu corpo pertencia não mais a sociedade civil e sim a Corporação. Um novo homem, um “caveira” deve surgir destes ritos. Provavelmente este tipo de treinamento é aprovado pelo Capitão Bruno. Ele próprio deve ter sido humilhado e violentado constantemente para que surgisse esta identidade capaz de movimentar-se com tanto orgulho, vestindo preto, mascarada, usando gás de pimenta. Esta é sua vontade: submeter.
Creio que para ele, não é suportável perceber atos de liberdade, de crítica. Não está no currículo ou nas interações dentro da Academia. Não é possível a aceitação de discursos ambíguos sobre as ações policiais. Não mais. Ou desmilitarizamos a polícia ou rasgamos a Constituição. Ou, como sugeriu o capitão Bruno, vamos lá denunciá-lo na Corregedoria. Mas caso alguém opte pela última opção, sugiro a leitura do Processo, de Kafka. O capitão Bruno não acredita na Corregedoria. O capitão Bruno faz o que “quer”.
Por Luciane Soares da Silva é do Núcleo de Estudos de Exclusão e da Violência -NEEV, professora associada Universidade Estadual Darcy Ribeiro
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
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