Logo no segundo parágrafo aparece “persecutório”, adjetivo discutível no contexto das atribuições da Comissão Nacional da Verdade e cheio de implicações revanchistas. Pior é encontrar, logo em seguida, “seus membros são livres para fazer constar no texto as recomendações que julgarem mais convenientes”. Por que a reiteração da obviedade? Quem pediu o aval da Folha?
“A proposta de mudar a Lei de Anistia”, segue o texto, “fomenta a discórdia no próprio grupo”. A iniciativa é associada à intriga, em oposição a um suposto espírito conciliador da maioria. Exatamente a tese dos ditadores civis e militares que redigiram a Lei. Então ressurge explicitamente o usual “revanchismo”, para justificar a falta de colaboração dos militares nas audiências. Coitados, eles estão apenas se protegendo.
Citar o endosso do Supremo Tribunal Federal é uma tentativa de conferir estatuto inquestionável a uma decisão de legitimidade no mínimo duvidosa. E também joga um apelo demagógico aos leitores que corroboram a atuação recente da corte. A frase seguinte inclui um trecho da medida de 1979, sem aspas, naturalizando a inaceitável expressão “motivações políticas” usada para unificar os crimes de agentes do Estado e de seus adversários, como se tivessem os mesmos recursos, meios e objetivos.
A idéia dos “ímpetos” e “conflitos e divisões” refreados insiste no caráter intransigente e irracional dos que defendem a punição dos bandidos. E que lutariam contra “o reencontro da sociedade consigo mesma” e “a reconstrução da democracia”. O estranho teor psicanalítico da primeira figura talvez se refira ao apoio majoritário recebido pelo golpe militar, inclusive da própria Folha. Mas o complemento lhe traz uma conotação apaziguadora, pois, “reencontrando-se”, os defensores do autoritarismo descobrem o âmago republicano desde sempre incutido nas suas boas intenções. Não foi assim que os ditadores explicaram a derrubada do fantasma comunista?
Reproduzo o nono capítulo: “Goste-se ou não, a passagem do regime de exceção para o Estado de Direito foi fruto de lutas, mas também de entendimentos. Antes de uma imposição, a anistia ampla foi um pacto que assegurou a transição democrática.” A expressão inicial é bem característica do vocabulário da autoridade. Mas o veredito da Folha independe mesmo de “gostarmos” dele? O próprio texto contradiz a negativa da “imposição”, outorgando um “pacto” que não permite discordância.
O indulto a assassinos, estupradores e torturadores “tem contribuído para que o país não se dilacere em lutas internas”, finaliza o editorial. As últimas palavras são fortes, algo ameaçadoras, típicas do alarmismo golpista. E completam-se muito coerentemente sugerindo que a comissão “deveria se concentrar em sua tarefa em vez de abraçar propostas inoportunas que extrapolam o seu próprio escopo”. A Folha ordena que os inconvenientes se coloquem nos seus lugares. Senão...
De fato, a defesa do indefensável exige uma retórica apropriada.
(Publicado por Guilherme Scalzilli)
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
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