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Marcelo Rubens Paiva não desceu a Augusta

9 de Setembro de 2013, 9:33 , por Desconhecido - 0sem comentários ainda | No one following this article yet.
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(Publicado no Quadrado dos Loucos)

Ontem, o Marcelo Rubens Paiva narrou na sua coluna no Estado de São Paulo a descida da Rua Augusta de manifestantes em tática black bloc. Classificando-os como “vândalos” e “arruaceiros”, o escritor expôs a sua repulsa, disse que morreu de medo e que não tem nem quer ter nada a ver com isso.

Eu li três livros do Marcelo. O primeiro, Feliz ano velho, li logo na pré-adolescência e me marcou muito. Gostei menos de Blecaute, devorado na mesma época. Mais tarde, li também Ua:Brari, que eu considero o melhor dos três, uma mistura de J. Conrad com road movie subdesenvolvido. Depois meus interesses livrescos mudaram bastante, não li mais nada dele e não acompanho o blogue que mantém na mídia corporativa. Não tinha lido nada dele há uns vinte anos, até ontem, quando o Marcelo veio engrossar o caldo de opiniões de famosos sobre a atual fase das manifestações no Brasil.

É curioso, porque na semana anterior, eu também descera a Augusta. Passando o fim de semana em Sampa, tinha combinado de à noite encontrar com Isabella, Hugo, Carlos, Renata e Carol num café do Centrão, perto da estação São Bento. Resolvi ir caminhando. Partindo da Avenida Paulista, percorri toda a baixa Augusta. Passei pelos últimos inferninhos que ainda resistem até a beira da Nove de Julho, atulhada de trânsito. Subo na passarela por uma escada em caracol e, de repente, me deparo com três pessoas ao redor de um homem caído. Estava numa posição estranha, enrolado em trapos, sobre a plataforma. Visivelmente, um sem teto agonizante. Pergunto o que houve. Foi esfaqueado. Ainda parecia vivo. As pessoas não faziam nada, contemplavam. Fui pedir ajuda pra um segurança que encontrei do nada. O cara ficou ali ligando pra emergência e eu voltei. Quando volto, já está morto, dizem. Não tive coragem de tirar o pulso, mas toquei na poça de sangue ao lado (sim, eu fiz isso). Estava cremosa demais e numa temperatura que não parecia recente (que sei eu sobre essas coisas). Olhei mais concentrado e, sim, ele estava morto. Passado desta vida pro mundo das estatísticas. Não fiquei pras diligências policiais. O resto da minha caminhada até o café, subindo a Líbero Badaró deserta, o leitor imagine como foi tenso. Por ruas cinzentas pontuadas por lixo e trapos humanos, via sombras por todos os lados. Me sentia à exposição de uma violência abrupta de instância irrecorrível. Lembrei (mais tarde) dos labirintos místicos e das flores mortas da música do Criolo.

Me vem à cabeça agora também outro episódio. Não foi descendo a Augusta. Foi na paralela, ao lado, descendo desbragadamente a Consolação com um monte de skatistas, anarquistas e ativistas variados. Era marcha de não sei o quê, não lembro. Lembro que a polícia de São Paulo cercou um grupo de jovens vestidos de preto, perto de onde eu estava. Exigiu documentos, xingou, ameaçou, devassou as mochilas. Numa delas tinha um estilingue e algumas pilhas amarelas. Pra que isso, garoto? Ele: é pra minha proteção. Ao que o policial estalou um tapa: quem te protege é a polícia!

Colhi o seguinte comentário no face, pela Talita, perspicaz: “ele [o Marcelo] tem a coragem de escrever um texto onde a sua saída do cinema à beira da Augusta é toda descrita como se velhinhos e pipoqueiros de uma São Paulo bucólica e ordenada estivessem sendo agredidos pelo caos violento dos black blocs (os quais se deve temer mais do que todos os aparatos da ditadura!). Oh, se não fosse tudo isso o Brasil poderia ser delicado e simples como os filmes argentinos!”

Ao final da soirée na nova e mais segura Augusta, o Marcelo vem falar em pipoqueiros pitorescos, em simpáticos velhinhos encantados pelo charmosíssimo cinema argentino. A contraimagem para a passagem dos black blocs, de quem ele tem horror. Fiquei realmente chocado com essa construção, considerado o contexto de criminalização dos protestos. Chocado pelo charme com que disfarça a participação — direta! — no aparato repressivo.

Nada como o discreto charme da burguesia oposto à barbárie dos pretos que não entenderam nada. A ilustrada e sóbria razão do colunista às paixões descontroladas do Absolutamente Outro, que precisa ser educado. Quem civiliza, ao fim e ao cabo, é a mão grossa que estapeia, dá choque, aperta o gatilho. É a mão que joga a pedra e se esconde, atrás do pano estendido por uma imprensa que só enxerga e aponta bandidos e vagabundos por toda parte. Estes ameaçam a zona de conforto dos Marcelos. A mesma mídia corporativa que aciona as engrenagens do poder punitivo e passa a “senha” para os fascismos cotidianos e os mil comentadores de internet, a quem opiniões como a de Marcelo ou Marilena apenas envernizam, com seus dotes literários ou filosóficos, passados como bom gosto e pensamento iluminado.

Quem desce junto dos manifestantes pela mesma rua, verá como o medo já aconteceu na cidade. Há muito tempo. A nuvem de medo está aí, e não foi causada por nenhuma tática de ação direta. Nivelar a violência como mal em si é perder de vista que ela é seletiva, concentra-se em certas áreas e sobre certos corpos, em níveis distintos de brutalidade e autolegitimação. Que não é só violência da noite. Não é medo só da polícia, da milícia, do crime organizado do poder. O Marcelo deve saber muito bem como a violência está cristalizada no ônibus, no metrô, no hospital, na escola, na arquitetura. Os mascarados afrontam, mesmo, o bom tom, o bom senso, o bom manifestante (i.e., dócil, cara-pintada, anticorrupção, bonito).

A verdadeira máscara é o charme de “gente bonita “, — essas que se comprazem de ler regularmente os grandes jornais (mesmo não lendo), — a esconder uma civilização baseada no medo, na humilhação cotidiana e na divisão social que lhe garante privilégios. Seus gestos de bom senso, seus comportamentos de bom gosto, toda essa naturalidade é forjada socialmente, exatamente para sustentar o intolerável nas alegorias da cultura.

Vou citar o amigo blogueiro Fabiano, num texto que mereceria ser lido inteiro: “(…) A violência policial, um costume, um hábito, é tacitamente justificada pela coletividade e se dirige contra aquilo que nossa cultura significa como passível de ser violentado: corpos índios, corpos negros, corpos pobres ou miseráveis, corpos femininos cisgêneros, corpos transgêneros, corpos não-heterossexuais — motivo pelo qual não nos surpreende, não nos indigna (…).”

Mas a ti te indigna, a ti te supreende. Eu acredito, Marcelo. Deixo a dica: preste mais atenção nesses mascarados que o jornal tenta passar como um bando de malucos quebrando tudo. Que a filósofa máxima da universidade máxima insiste em palestrar como fascistas irresponsáveis, uma multidão irracional e passional… onde foi mesmo que a professora defendeu essa tese? De que adianta completar a gincana do Lattes para falar de orelhada, a serviço do Grande Projeto (o PT)? Falta discutir qual alta razão o movimento afronta, e de que paixões estamos falando e, finalmente, o que significa marretar o real para caber nesse Grande Projeto de Brasil.

Em vez de de chauir, em vez da simplicidade delicada de Pablo Giorgelli, vamos pensar com Chico Science e os caranguejos. Menos o caos do que a lama ultranutritiva. Quem foi ao Grito dos Excluídos no 7S do Rio, por exemplo, viu como os blacks (essa tática) compuseram bem com uma esquerda mais tradicional. No final da marcha da Presidente Vargas, diante da estátua de Zumbi, hastearam as bandeiras pretas, acenderam sinalizadores e, em gesto convocatório com máscaras Anonymous, levantaram a faixa: “O governo não terá paz”. Quem conhece de que é feita a pacificação do Rio em tempos de megaeventos sabe o grau insolente de inversão midiática desta mensagem. Há tempos a esquerda estamos precisando renovar e recuperar pungência, deixar o gabinete e reencontrar o imponderável da rua. Revigorar a própria razão, voltar à prancheta dos projetos. Não só ela: todas as instituições democráticas, cuja regeneração nunca deixou de precisar da lama, do subdesenvolvimento das ideias reais, pulsantes, cruéis. De que adiantam teorias utópicas, passadistas, para a revolta e revolução, se não passam de flores de estufa?

Você acertou, Marcelo, quando disse que saíram dos quadrinhos. Tem um lance noir, tipo Frank Miller, como em Sin City (ou, cavando mais fundo, Luigi Ricca). A fantasia calçou botas e desceu a Augusta. Quem vai nas manifestações talvez perceba como o visual atrai, como tem uma vibração pop de história em quadrinhos. Os blacks magnetizam e conferem ritmo aos eventos deste ciclo de lutas. Não é nenhuma narrativa tola ou maniqueísta: tantos afluentes subterrâneos aí reúnem vazão. Sucede um processo de qualificação: ciclos virtuosos em muitas escalas e que vão aprofundando e espessando propostas, táticas, mídias, poéticas. Foram só três meses! Quem disse que já começa pronto? É no processo: ou você acha que os punks, os indigenistas, o movimento negro ou os anarquistas de Módena já sabiam tudo de antemão, já nasceram revolucionários?

Pode não dar certo, pode ser que a direita vença novamente, pode ser que daqui a um ano nada disto faça sentido. Ou pode ser que sim, que as “ideias poéticas e militância horizontal” funcionem. Que bom que tudo possa acontecer, porque do jeito que está não presta. Quem quer viver o tempo histórico preste bastante atenção e se coloque. Pior do que não assumir um lado porque está confuso, é precipitar-se no lado errado por segurança, por não enxergar a alteridade de que precisamos.

Talvez seja por isto — e é por isto mesmo! — que precisamos descer a Augusta. Antropofagicamente.
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..

Fonte: http://feedproxy.google.com/~r/blogspot/UkDc/~3/hXDQ312TUuk/marcelo-rubens-paiva-nao-desceu-augusta.html

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