“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido” |
Von Kursk esteve em meados dos anos 80 no Rio de Janeiro, jovem e cheio de esperança. Conta que não se lembra muito bem. Menciona um bar, mulheres estranhas e sua mente fica enevoada daí em diante.
Harold tenta entender o momento por que nós passamos. As manifestações são como as da praça Tahrir, no Cairo? A Copa vai ser cancelada? O que são rolezinhos? Quem é Barbosa?
Eu tento explicar o Brasil para o gringo, mas o Brasil é inexplicável. Ou era. Eu preciso mandar a ele um vídeo com a perfeita tradução do país. Aquele mesmo, o registro magnífico do encontro entre um cineasta que se diz “rico”, uma fotógrafa macartista, um francês desavisado e o Batman.
O diretor de cinema – Rodolfo “Dodô” Brandão, de “Dedé Mamata”, cult dos anos 80 — topou com o protético Eron Morais de Melo, que se fantasia como o Cruzado Encapuçado (ai) desde os protestos no ano passado.
Os dois se cruzaram na esquina das avenidas Ataulfo de Paiva e Afrânio de Melo Franco, no Leblon, no dia em que um rolezinho estava marcado para acontecer no shopping.
“ Você é o símbolo da Justiça vestido de capitalismo americano?”, pergunta Brandão, do nada, de graça.
“Eu venho para a rua combater. Quantas vezes você foi às ruas para lutar pela população?”, devolve Eron. “Você quer discutir Batman COMIGO?”. Eron transmitia uma indignação gigantesca ao ver sua legitimidade contestada, logo ele, que provavelmente conhece o personagem melhor do que seu criador, logo ele, que num calor de 40 graus põe uma roupa preta e sai para passear.
No meio do bate boca, entra uma senhora apoplética, se auto-declarando de direita, irritadíssima com o homem morcego. “Manipulado, manipulado!” Ela dá um tapa na lente da câmera (!?!). “Existe um plano, sim! Pode botar aí. Existe um plano de ocupação comunista, totalitarista no país! Será que ninguém quer ver isso?”
Um pobre coitado francês faz perguntas estranhas a Brandão, com tradução capenga do cameraman que o acompanha. Quer saber se há algum tipo de discriminação (?!?). Brandão responde que não, emenda que ganha “muito bem” e que vai beber depois com o “pessoal da Cruzada”, que é, segundo consta, um condomínio famoso na área.
A cena toda é maravilhosa, farsesca, estupidamente brasileira. Nada é o que parece. Num dia lindo, quatro tipos absurdos, diferentes e complementares, sem a mais remota possibilidade de se entender, se encontram numa esquina arborizada para discutir a política e a vida. Há uma tensão crescente e a impressão de que a coisa vai descambar para a pancadaria e o caos num segundo. Tudo se acomoda.
Lembra o final de “Fellini 8 e Meio”, com aquele cortejo, sem a música de Nino Rotta. Lembra mais ainda o comício populista de “Terra em Transe”, de Glauber Rocha. “Por que você mergulha nessa desordem?”, indaga, no filme, a ativista política ao intelectual interpretado por Jardel Filho.
Mas é bem melhor que isso.
Batman é um dentista, o cineasta rico de Havaianas não tem essa grana, a fotógrafa é só uma olavete triste, o francês mora em Santa Teresa. Você não surpreenderia se, na seqüência do bate boca, todos fossem tomar uma cerveja e dividir uma porção de bolinho de bacalhau no boteco.
A única certeza é que aquela bagunça é nossa. Fico pensando em enviar o vídeo ao Harold, mas temo que, ao assistir, ele desista de aparecer por aqui. Ou não — se isso acontece numa esquina carioca num dia de semana, tudo é possível.
“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”, já dizia Bruce Wayne, ou melhor, Sérgio Buarque de Hollanda. Bom, é a mesma coisa.
(Publicado por DCM)
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
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