Por Marco Aurélio Weissheimer
Em um de seus últimos trabalhos publicados no Brasil (Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo. Companhia das Letras, 2011), Eric Hobsbawm conta a seguinte história para falar da força e da atualidade do pensamento de Marx:
“No Cemitério Highgate estão sepultados dois pensadores do século XIX – Karl Marx e Herbert Spencer – e, curiosamente, da tumba de um se avista o outro. Quando ambos eram vivos, Herbert era considerado o Aristóteles da época, enquanto Karl era um sujeito que morava nas ladeiras mais baixas de Hampstead à custa do dinheiro do amigo [Engels]. Hoje ninguém sabe que Spencer está sepultado ali, enquanto peregrinos idosos, vindos do Japão e da Índia, visitam o túmulo de Karl Marx, e comunistas exilados iranianos e iraquianos fazem questão de ser enterrados à sua sombra” (Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo, p. 14).
Marx foi um autor que acompanhou a vida e a obra do historiador inglês, que morreu na manhã desta segunda-feira (1º), aos 95 anos. O livro citado acima é uma coletânea de textos que Hobsbawm escreveu sobre o assunto entre 1956 e 2009, “um estudo sobre a evolução e o impacto póstumo do pensamento de Karl Marx (e de seu amigo inseparável Friedrich Engels)”, como ele próprio define. Nesta obra, o historiador defende uma tese central: “Marx é hoje, mais uma vez, e com toda justiça, um pensador para o século XXI”. Como uma das melhores formas de homenagear alguém que partiu é manter acesa a memória das obras de uma vida, cabe falar um pouco sobre essa tese que sintetiza uma parte importante das preocupações e compromissos desse historiador extraordinário.
Paradoxalmente, observou Hobsbawm, quem “redescobriu” Marx foram os capitalistas e não os socialistas. O ano de 1998 foi emblemático neste processo. Neste ano, comemorou-se o sesquicentenário do Manifesto Comunista. A data coincidiu, ironicamente, com o início de uma forte turbulência na economia internacional. Hobsbawm relata que ficou espantado quando, num almoço mais ou menos na virada do século, George Soros perguntou o que ele achava de Marx: “Por saber o quanto nossas ideias eram divergentes, preferi evitar uma discussão e dei uma resposta ambígua. Esse homem, disse Soros, descobriu uma coisa com relação ao capitalismo, há 150 anos, em que devemos prestar atenção”.
Alguns depois, em 2008, o jornal londrino Financial Times estampou em sua manchete: “Capitalismo em convulsão”. “Não podia mais haver dúvida de que Marx estava de volta aos refletores. Enquanto o capitalismo mundial estiver passando por sua mais grave crise desde o começo da década de 1930, será improvável que Marx saia de cena. Por outro lado, o Marx do século XXI será, com certeza, bem diferente do Marx do século XX”, advertiu Hobsbwam. Quais seriam essas diferenças?
O Marx do século XXI
A resposta a essa pergunta está intimamente ligada ao diagnóstico sobre quais aspectos da análise de Marx continuam válidos e relevantes. O historiador inglês destaca dois deles: (i) a análise da dinâmica global do desenvolvimento econômico capitalista e de sua capacidade de destruir tudo o que se antepuser a ele; (ii) a análise do mecanismo de crescimento capitalista, por meio da geração de contradições internas, levando a crises sucessivas e a uma crescente concentração econômica numa economia cada vez mais globalizada.
E a força dessas análises reside, em larga medida, no método empregado por Marx, um método que rejeita a ideia de modelo e procura pensar o mundo como um todo. Não se trata de um pensamento interdisciplinar no sentido convencional, assinala Hobsbwam, mas de um pensamento que integra todas as disciplinas, abordando os fenômenos sociais a partir de distintos pontos de vista: econômicos, políticos, científicos e filosóficos. “Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI, mas, quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus vários discípulos”, defende o historiador.
Marx tem, pois, uma lição metodológica que é, de diferentes modos, destacada por Hobsbawm. No método de Marx, não há lugar para determinismos, dogmas ou modelos pré-concebidos que possam ser aplicados mecanicamente a qualquer momento histórico. E esses pressupostos foram assumidos também por Hobsbawm em seu trabalho como historiador. No final do artigo “Marx e o trabalhismo: o longo século” (op.cit. pp. 358-375), ele reflete sobre os fracassos do século XX, os problemas do século XXI, reafirmando sua confiança no método de análise de Marx:
“Paradoxalmente, ambos os lados têm interesse em voltar a um importante pensador cuja essência é a crítica do capitalismo e dos economistas que não perceberam aonde levaria a globalização capitalista, como ele previra em 1848. Mais uma vez é óbvio que as operações do sistema econômico devem ser analisadas tanto historicamente, como uma fase da história, e não como seu fim, quanto de forma realista, isto é, em termos não de um equilíbrio de mercado ideal, e sim de um mecanismo integrado que gera crises periódicas capazes de transformar o sistema.” (op.cit. p.375)
Para Hobsbawm, a crise atual mostra que o “mercado” não tem nenhuma resposta para o “principal problema com que se defronta o século XXI”: “o fato de que o crescimento econômico ilimitado e cada vez mais tecnológico, em busca de lucros insustentáveis, produz riqueza global, mas às custas de um fator de produção cada vez mais dispensável, o trabalho humano, e, talvez convenha acrescentar, dos recursos naturais do planeta”. O historiador conclui: “O liberalismo econômico e o liberalismo político, sozinhos ou combinados, não conseguem oferecer uma solução para os problemas do século XX. Mais uma vez chegou a hora de levar Marx a sério”.
O que fica de um homem?
Paul Valéry, no início de sua formidável “Introdução ao Método de Leonardo da Vinci” (publicado no Brasil pela editora 34), disse que “o que fica de um homem é o que nos leva a pensar seu nome e as obras que fazem desse nome um signo de admiração, de ódio ou de indiferença. Pensamos que ele pensou, e podemos reencontrar entre suas obras esse pensamento que lhe é dado por nós: podemos refazer esse pensamento à imagem do nosso”.
A longa, profícua e aguda obra de Hobsbwam está aí para que nós melhoremos o nosso próprio pensamento sobre a nossa história e, sobretudo, sobre os desafios que o presente desfia a nossa frente. Não há fim da história, o mercado não é um deus e os homens e mulheres seguem lutando para sobreviver e levar a humanidade a um patamar melhor do que o que está aí. As palavras, as reflexões e a vida de Eric Hobsbwam seguirão a nossa disposição para deixar esse caminho um pouco menos sombrio.
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