Por Carlos Castilho
A crise mundial deflagrada pelo vídeo sobre o profeta Maomé mostrou com cores dramáticas a relevância adquirida pelo contexto na transmissão de notícias, especialmente quando elas circulam de forma quase instantânea pela internet.
A contextualização deixou de ser um requinte jornalístico para converter-se em elemento capaz de deflagrar as mais diversas e estapafúrdias reações a partir de um mesmo fato, dado ou evento. Trata-se de um processo em cadeia que, uma vez iniciado, se autorreproduz e é quase impossível de controlar.
O vídeo sobre o profeta, cujo objetivo ainda é um mistério, mexeu com ressentimentos entre seguidores do islamismo provocando protestos carregados de ódio, que não levaram em conta a indigência mental do diretor e o fato de que o filme seguramente não sairia da obscuridade, caso não gerasse uma crise de proporções globais.
Mas a coisa não parou aí. Os protestos em países árabes geraram novas notícias que alimentaram outros preconceitos porque também circularam pelo mundo afora sem estarem inseridas no contexto adequado. Formou-se, assim, uma sequência potencialmente catastrófica em que uma noticia descontextualizada alimenta outras igualmente ambíguas, tornando a reversão extremadamente difícil.
A velocidade com que as notícias circulam hoje no mundo — e o fato de poderem ser captadas por indivíduos vivendo em situações de grande tensão social, política, cultural e econômica — cria uma situação parecida com a de uma roleta russa: pode não dar em nada mas há o risco de uma tragédia de proporções imprevisíveis, como a que estamos assistindo agora.
A diatribe anti-islâmica do polêmico vídeo provocou protestos e repressão, daí para debates sobre censura, liberdade de expressão e para a Assembléia Geral das Nações Unidas. A falta de contexto transformou o debate mundial sobre censura e liberdade de expressão num diálogo de surdos, porque as partes envolvidas veem apenas o seu lado. Um americano e um árabe dificilmente chegarão a um acordo sobre liberdade de expressão porque ambos vivem histórias, culturas e realidades econômicas muito diferentes. É inviavel julgar o outro pelos proprios padrões.
Contextualizar não significa apenas acrescentar antecedentes e consequências aos fatos e dados noticiados. Implica tentar entender o outro lado para evitar que percepções diferentes sejam tratadas como manifestações de insanidade ou passionalismo. A ausência dessa preocupação é histórica no exercício do jornalismo, apesar da regra básica da profissão ser a de sempre ouvir o outro lado. O problema é que a regra virou um procedimento burocrático.
A consciência de que a contextualização não é uma fórmula automática aumenta a responsabilidade dos jornalistas na hora de produzir uma notícia. O fato objetivo passa a ser menos importante, como é o caso do vídeo sobre o profeta Maomé. O vídeo em si nunca chegaria às manchetes dos principais jornais. Mas os protestos que gerou e que estão ligados diretamente ao contexto de quem recebe a informação, fez toda a diferença.
O que torna a questão do contexto ainda mais complexa é o fato de que o público passou a ter responsabilidades quase idênticasàs dos jornalistas na hora de repassar notícias. A nossa cultura nos induz a sermos irresponsáveis quando entramos no processo boca a boca de transmissão de um fato, dado ou evento novo. A falta de compromisso com o contexto é uma herança dos tempos em que a informação era escassa e concentrada nas mãos da imprensa. Se a notícia estava errada ou descontextualizada, a culpa era dos jornalistas e todos lavavam as mãos em relação às consequências.
Hoje, os profissionais perderam o controle no fluxo das notícias e a responsabilidade com a contextualização passou a ser compartilhada por todos os que participam da corrente informativa. Uma informação, aparentemente sem importância, pode deflagrar uma sucessão de eventos imprevisíveis, como no "efeito borboleta". Segundo a teoria do caos, o mundo está tão interligado que a agitação das asas de uma borboleta na China poderia provocar um furacão no Paraguai.
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