Entra finalmente em cartaz o filme brasileiro mais incensado dos últimos anos, O som ao redor. Premiado em festivais no Brasil e no exterior, elogiado unanimemente pela crítica, o longa de Kleber Mendonça Filho entrou nas listas de melhores do ano do New York Times e da Film Comment, entre outras publicações de prestígio.
Todo esse auê se justifica. É um filme que, como poucos, radiografa sua época sem perder de vista o processo histórico de longa duração em que ela se insere. Não se perde nas aparências do presente, não fetichiza o novo, mas, pelo contrário, revela a presença do arcaico no moderno, a reiteração sob novas formas de um modelo civilizatório ao mesmo tempo perverso e fascinante – tudo isso sob a aparência de uma prosaica crônica urbana ambientada num bairro recifense de classe média.
Escrevi há alguns meses sobre o filme e não quero me repetir. Só acrescento um dado que àquela altura eu desconhecia e que pode ajudar a enriquecer a leitura do filme. Na crítica, eu qualificava de estranhas e misteriosas as aparições fugazes de um garoto negro – num telhado, numa casa vazia, no alto de um árvore. Depois fiquei sabendo que se tratava de alusões ao “menino-aranha” que povoou a crônica policial de Recife na década de 90: o garoto Tiago João da Silva, que desde os nove anos de idade escalava com as próprias mãos prédios residenciais da cidade para assaltar apartamentos. Tiago foi detido e fugiu várias vezes, até ser morto a tiros aos 17 anos, em 2005.
Saci atualizado
O curioso é que no início de 2012, quando O som ao redor já estava pronto, surgiu em Recife outro garoto com as mesmas características, o que levou a imprensa a rememorar o caso. No contexto do filme de Kleber Mendonça, esse fait divers de página policial ganha um sentido histórico-social poderoso: o medo da classe média e das elites brancas diante da ameaça difusa de invasão do “seu” espaço pelos pretos e pobres. É, de certo modo, uma atualização urbana da lenda do traiçoeiro e imprevisível saci-pererê.
A reforçar o viés político dessa fabulação, numa cena do filme uma menina de classe média levanta de sua cama no meio da noite, vai até a janela e vê uma horda de meninos-aranha se espalhando pelos telhados e árvores do bairro. Não sabemos se é uma visão, um sonho ou uma imagem “real” – o fato é que poucas cenas sintetizam de forma tão eficiente o momento que vivemos, de ascensão dos que não tinham nada e de apreensão dos que têm alguma coisa em face ao que pode acontecer.
Duas últimas observações sobre O som ao redor: apesar de seu inegável valor cultural, ele está entrando em relativamente poucas salas pelo Brasil afora. No Rio, por exemplo, entra em quatro cinemas, enquanto De pernas pro ar 2 está em mais de cinquenta. Sinal dos tempos. Além disso, outro perigo ronda o filme: o das falsas expectativas. Depois de tanto aplauso e elogio, muitos espectadores talvez entrem no cinema esperando ver algo espetaculoso (como foram Cidade de Deus e Tropa de elite, por exemplo). E a qualidade maior de O som ao redor é, justamente, a sutileza, o subtom, a entrelinha.
Janeiro histórico
A acreditar nos cronogramas das distribuidoras, este será o melhor mês de lançamentos nos nossos cinemas em muitos anos, talvez décadas. Estão previstos, entre outros, os seguintes títulos: Django livre (Quentin Tarantino), Amour (Michael Haneke), Além das montanhas (Cristian Mungiu), César deve morrer (Paolo e Vittorio Taviani), Lincoln (Steven Spielberg), O mestre (Paul Thomas Anderson), A hora mais escura (Kathryn Bigelow), Killer Joe (William Friedkin), Querida, vou comprar cigarros e já volto (Gastón Duprat e Mariano Cohn) e País do desejo (Paulo Caldas). Bom proveito.
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*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.
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