Ver a imagem do próprio rosto em uma nota de dinheiro. Esse é privilégio de poucos, já que a maioria dos homenageados nas moedas pelo mundo não são vivos. Mas na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, duas senhoras notáveis conseguiram esse feito. Com a cara carimbada na moeda social, que circula desde o ano passado no local, elas experimentam a fama para além da comunidade que as elegeu em assembleia, entre os cerca de 40 mil moradores, para estampar as cédulas.
“Sorria, você fica muito mais bonita assim, fazendo o bem, sorrindo com alegria, só alegria não tem fim”, a canção foi lembrada por Dona Geralda, quando ela passou suas compras no caixa do mercado e a funcionária não a tratou, digamos, com muita simpatia. A partir daí, já dá para imaginar um pouco sobre Geralda Maria de Jesus, 83 anos, moradora da Cidade de Deus que estampa a nota de 1 CDD (R$ 1).
O que não dá para imaginar é que, com toda essa felicidade, ela passou por muitas coisas difíceis na vida. Entre elas, a perda de sua casa num deslizamento no Morro do São Carlos, Catumbi, onde vivia com filhos e marido na década de 60. Depois da tragédia, eles foram removidos para a Cidade de Deus, na época um lugar ermo na Zona Oeste do Rio, onde foram construídos conjuntos habitacionais para quem perdeu suas casas por causa das fortes chuvas que caíam na cidade.
Naquele tempo, Dona Geralda não imaginava a ligação que teria com a comunidade. Foram oito filhos de sangue, mas ao longo dos anos se tornou mãe de coração de milhares de moradores dali. “Eu vi quase todo mundo nascer aqui. Ajudei até alguns a vir ao mundo”, revela ela, que há mais de 30 anos dá curso de gestante em sua casa e providencia enxoval para os bebês que estão para chegar.
Nos primeiros 10 minutos de nossa visita à casa de Dona Geralda, pelo menos três mulheres grávidas bateram à porta. E ela não dá mole. “Já fez os exames? Tem que fazer o pré-natal direitinho”, enfatiza. “Então traga aqui para eu ver”.
Além das grávidas, a casa de Dona Geralda também é abrigo para quem tem fome. Ela serve café da manhã e almoço para os mais necessitados. “Isso aqui eu faço porque tenho que fazer. Sabe como é? Eles precisam”, resume ela, que trabalha com a ajuda de voluntários e doações.
Vaidosa, a homenageada está sempre com um lencinho no pescoço, marca registrada. Cada dia se enfeita com um diferente no pescoço. “Quer me dar um presente? Escolhe um lenço”, sugere ela. Na cozinha simples, chama a atenção os mais de 30 panelões, carregados de histórias. “Eu uso eles para fazer os sopões. O número de gente foi aumentando e eu sempre precisava de maiores”, explica Dona Geralda.
Algumas quadras à frente, encontramos Benta Neves do Nascimento, 79. Fundadora da ONG Comitê da Terceira Idade, ela já formou centenas de pessoas em cursos de corte e costura, bordado e artesanato. A senhora que tem o rosto na nota de 5 CDD sabe do seu valor. “Eu falei que não queria estampar nota barata não ”, fala Dona Benta, que brinca com a homenagem. “Vê só, eu com essa idade passando de mão e mão”.
Em sua casa, além das colchas de fuxico, tapetes de pachtwork, máquinas de costura, os detalhes do candomblé chamam a atenção. Dona Benta é “cabeça raspada” – a raspagem do cabelo faz parte da iniciação – e joga búzios. Apresentou-nos um espaço sagrado dentro de sua casa, onde ficam seus santos, o cantinho onde ela se guarda para fazer suas reclamações e chorar. “Eu venho pra cá, penso no que preciso e choro muita vezes”, revela.
Mais dois moradores, já falecidos, foram eleitos pela comunidade para estampar as notas de 10 e de 2 CDD. São, respectivamente, Julio Grooten, o primeiro padre do bairro; e João Batista, que dirigia a Associação Beneficente Obra Social Estrela da Paz, que cuida de crianças e adolescentes em fase de desnutrição. A nota de o,50 CDD (R$0,50) tem como símbolo a Casa do Barão. Antigo dono daquelas terras, Francisco Pinto da Fonseca Telles, o Barão da Taquara, foi um reconhecido benfeitor da Zona Oeste.
O Banco Comunitário da Cidade de Deus foi inaugurado em 15 de setembro de 2011 depois de muitas reuniões dos moradores que defendiam a criação de uma moeda própria para valorizar o comércio local. Desde então já foram realizadas cerca de 4 mil pagamentos de contas, 55 empréstimos, e um valor em torno de R$ 7 mil reais em trocas diárias. Hoje existem mais de 10 mil CDDs em circulação.
Fotos: Allana Amorim
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