Depressa com isso. Em Cenas da Corte no Rio, de 1826, o imperador diante dos bajuladores. Foto: Reprodução do livro História da Caricatura Brasileira |
O curioso é perceber como o Brasil de muito tempo atrás sabia disto, e o ensinava por meio de uma imprensa ocupada em ferir a brutal desigualdade entre os seres e as classes. Ao percorrer o extenso volume da História da Caricatura Brasileira – Os precursores e a consolidação da caricatura no Brasil (Gala Edições, 528 págs., R$ 120), do pesquisador nascido em Nilópolis há 40 anos Lucio Muruci (e que, à moda dos caricaturistas antigos, usa um nome artístico, Luciano Magno, quando publica seu trabalho), compreendemos que tal humor primitivo não praticava um rosário de ofensas pessoais, como o observador contemporâneo se habituou a presenciar. Naqueles dias, humor parecia ser apenas, e necessariamente, a virulência em relação aos modos opressivos do poder.
A amplitude de trabalhos de três centenas de artistas exibida é inédita na história cultural do gênero. E a importância da obra reside na impressionante variedade de estilos e autorias caricaturais que ela desfila. Saem da obscuridade, por conta do trabalho, os nomes que sucederam e precederam o mais recentemente aclamado dos artistas a produzir arte naquele Brasil, Angelo Agostini (1843-1910). Corcundas magros, corcundas gordos, corcovas com cabeça de burro, mutucas picantes, todos esses seres compostos em aspecto polimórfico, com expressivo valor gráfico, muitas vezes produzidos a partir de talentos anônimos, eram os responsáveis por ilustrar a subserviência a estender-se pela Corte Imperial. Contra a escravidão, o comodismo dos bem-postos e dos covardes imperialistas portugueses (os “corcundas”), esses artistas operavam seu espírito crítico em jornais de todos os cantos do País, a maioria deles no Rio de Janeiro, a capital, mas não somente lá.
O símbolo da nacionalidade enfrenta a degola no deenho de Cândido de Faria para O Mosquito, de 1876. Foto: Reprodução do livro História da Caricatura Brasileira |
“De Porto Alegre ninguém poderá tirar a condição de patrono. Ele foi o primeiro profissional desta arte e o primeiro a produzir caricatura regularmente no Brasil”, sustenta em entrevista por telefone Luciano Magno, que, nascido em Nilópolis, apaixonou-se pelos gibis de Mauricio de Sousa na infância, conheceu Henfil no quadro TV Homem, dentro do programa TV Mulher, da Rede Globo dos anos 1980, e se embrenhou pela charge política durante a efervescência do movimento Diretas Já e dos acontecimentos a partir da morte do presidente Tancredo Neves.
Magno coleciona e estuda a caricatura brasileira há um quarto de século. Começou a pesquisa para suaHistória da Caricatura há 15 anos, durante estudos na cidade do Rio de Janeiro, e a escreve há dez sua obra de fôlego, com patrocínio da Petrobras. Antes, fez um mestrado em torno de Luiz Sá (1907-1979), o inventor das formas arredondadas do personagem Reco-Reco, Bolão e Azeitona para o jornal Tico-Tico, um doutorado sobre Álvaro Marins, o Seth (1891-1949), fundador em 1911 da revista ilustrada Álbum de Caricaturas, e realizou no Rio o Festival de Humor Gráfico, com 11 exposições sobre a história da caricatura desde J. Carlos (1884-1950), a partir de 2002. Em um Brasil ainda não de todo mapeado por seus arquivos, ele arrancou preciosidades dos sebos e comprou originais diretamente da família de alguns artistas, como Seth, que de 1910 a 1950 ilustrou a publicidade do bazar Casa Mathias com cartazes sobre a vida carioca.
José Neves pratica a crítica religiosa em O Diabo a Quatro, de 1877. Foto: Reprodução do livro História da Caricatura Brasileira |
Desde a impressionante representação do beija-mão ao imperador, em 1826, na colorida Cenas da Corte no Rio, pelo artista do qual somente se conhecem as iniciais A.P.D.G., ao índio degolado de Cândido de Faria emO Mosquito, de 1876, à crítica religiosa de José Neves na revista O Diabo a Quatro, de 1877, e ao triunfante “carro do progresso nacional” movido por tartarugas, de autoria de Aurélio de Figueiredo para a A Comédia Social,de 1870, esta obra inaugural, com tiragem de 2,8 mil exemplares, parece orgulhar-se de uma vocação nacional. Como advertia o jornal alternativo A Mutuca Picante, naquele editorial de 15 de setembro de 1834: “A Mutuca declara, zunindo às orelhas de todos, que ela não se importa com este ou com aquele para pregar a sua ferroada, e que só o cheiro de suas manhas, e vista de suas mazelas, aguçará o seu apetite picante”.
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