Revista Placar tenta humanizar o feminicida Bruno, condenado pelo assassinato de Eliza Samudio |
(Escrito e publicado por Letícia F.)
Sou jornalista de formação. Com diploma, mas sem emprego. Também sou feminista autônoma. Mais importante que isso: sou humana e tenho um cérebro com sinapses nervosas funcionando mais ou menos perfeitamente. O suficiente para perceber quão equivocada, misógina e desrespeitosa é a capa da revista Placar de abril.
Como todo mundo, pensei que fosse uma montagem, uma brincadeira de mau gosto. Primeiro, me certifiquei de que era real. Depois, fui até a banca e adquiri um exemplar. Eu queria saber se a condescendência com um assassino aparecia somente na capa ou se continuaria pelas páginas da revista.
“Me deixem jogar”, diz a chamada. Coitado! Alguém o está impedindo de exercer sua profissão! Não é essa a impressão que dá? Que ele está injustamente encarcerado, quando na verdade o devido processo legal foi respeitado, ele teve direito a todas as defesas, e mesmo assim foi condenado a 22 anos por ter possivelmente esquartejado Eliza Samudio?
Sim, porque ao contrário do que diz a capa, Eliza não morreu. Ela foibrutalmente assassinada. Em nenhum momento, durante toda a entrevista ou reportagem, Bruno é chamado do que ele realmente é: assassino.
Na verdade, o tempo todo a revista tenta humanizá-lo. Começa narrando o dia em que os repórteres chegaram à cadeia, dizendo que Bruno estava pregando o evangelho durante o banho de sol. Continua humanizando-o: conta como ele, “enxada em punho”, foi capinar um terreno. Bruno não está fazendo nenhum favor, não, Placar. A cada três dias trabalhados na cadeia (isso mesmo, na cadeia), a pena dele diminui em um dia. É apenas isso.
A reportagem deixa Bruno falar: reencontrou a fé, frequenta a igreja, tem saudade das filhas. E, aí, o primeiro vômito – assassino Bruno fala do filho que teve com Eliza, Bruninho. “O ex-goleiro quer ser um ídolo para Bruninho. ‘Vou conquistar o amor dele’.”
A revista Placar, outrora publicação indispensável na imprensa brasileira, dá espaço para um assassino condenado dizer que irá conquistar o amor de uma criança que ele não ligava quando estava solto (os problemas com Eliza eram justamente por causa de Bruninho) e cuja mãe ele ESQUARTEJOU.
É triste ver no quê o jornalismo brasileiro se transformou. Seria mesmo necessário fazer uma capa “polêmica” como essa? Nas redes sociais, inclusive no próprio Facebook da revista (isto é, página frequentada por fãs da Placar), a reação foi horrenda. As críticas se multiplicam. Hoje há muita gente que vive de clique de indignação, que acha bacanudo falar absurdos para fazer sucesso. Ainda assim, a reação das pessoas que não acompanham/compram a Placar só aconteceu ontem, dia 24, mais de 20 dias depois da edição chegar às bancas. Quer dizer: a capa com o assassino se fazendo de vítima só mostrou a irrelevância atual da Placar.
Triste, porque cresci com a revista ao meu redor. Lembro até hoje da reportagem sobre o trio Bebeto-Cocada-Sorato no Vasco, novinhos… Agora, a Placar está reduzida, segundo o expediente, a um único repórter e a um editor. Na chefia de redação está Maurício Barros, que também cuida da Runner’s (leia a absurda carta aos leitores no final desse post).
Se o jornalismo esportivo quisesse continuar sendo só de oba-oba, de festa, ainda assim seria reprovável. Há meandros e negociações que merecem investigação. Porém, ver um assassino na capa da revista é tripudiar sobre todas as mulheres que sofrem violência diária por parte dos companheiros. No Brasil, dez mulheres são assassinadas todos os dias, o sétimo maior índice do mundo.
Maurício Barros, chefe de redação da Placar, diz que fizeram bom jornalismo, citando os entraves burocráticos para entrevistar um encarcerado. Ora, qualquer estudante de jornalismo fazendo TCC sabe que precisa preencher papelada e falar com assessorias de imprensa para um trabalho como esse. Barros esqueceu-se que era preciso falar, também, com “o outro lado”: entrevistaram Bruno e os advogados dele, mas não há nenhuma palavra da acusação.
A tentativa da revista foi, de fato, humanizar o assassino. Fala-se da carreira; do trabalho no presídio; dos sonhos; da amizade com o cúmplice Macarrão, também condenado. Na última pergunta, o golpe final para quem tem o mínimo de empatia:
Você não mandou matar a Eliza?
Sou firme no que eu falo. Não mandei matar a Eliza. No inquérito não há nenhuma prova, nenhuma escuta que prove que eu mandei matar a menina. Não tinha por que mandar matar a minha garota. Fui omisso e a corda arrebentou para o meu lado.
Tentaram de todo jeito humanizar o assassino Bruno. Que pena que não se pode fazer o mesmo por Eliza, desumanizada quando viva, desumanizada quando morta, e que não teve nem mesmo direito a um enterro digno.
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Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
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