Rio de Janeiro, terra sem lei |
Estupro coletivo em van, ônibus que despenca na Av Brasil, aumento da passagem do metrô e das barcas são exemplos de como o Rio de Janeiro não vive sob o império da lei
Por Rodrigo Elias*
Os governos são a prova de como os homens podem ter sucesso no ato de oprimir em proveito próprio, não importando se a opressão se volta também contra eles.
H. D. Thoreau, em A desobediência civil (1848)
A Inglaterra vive sob o império da lei. Os súditos ingleses, durante muitos séculos, aprenderam que todas as pessoas – por mais que vivam sob uma monarquia – estão igualmente submetidas às regras reconhecidas e codificadas de convivência social. Há crimes, evidentemente, mas há processo judicial e, como previsto, punição. No geral, entretanto, conflitos que poderiam desencadear uma violência generalizada são, na maior parte das vezes, canalizados para soluções jurídicas não-violentas. Esgarçar a lei a favor de um grupo específico não é, entre os ingleses, uma forma normal de reprodução social.
O Brasil não vive sob o império da lei. A relação entre os agentes sociais, mesmo quando mediada pelo estado (e, a rigor, principalmente quando mediada pelo estado), é típica de regimes absolutistas ou de exceção – impactados por uma guerra, uma grave ameaça externa, uma grande calamidade: as leis não estão acima de todos os indivíduos e grupos, as regras socialmente aceitas podem ser quebradas episodicamente a favor deste ou daquele indivíduo, deste ou daquele grupo; regras específicas podem ser criadas para favorecer aqueles que, de fato, controlam o estado. Esgarçar a lei a favor de um grupo específico é, entre os brasileiros, uma forma normal de reprodução social.
O Rio de Janeiro tem dado, nos últimos dias, exemplos muito claros de que somos uma sociedade que não vive sob o império da lei. Há, evidentemente, indivíduos (dentro da própria estrutura estatal) interessados em aproximar nossa realidade do que ficou conhecido como “estado de direito”. Entretanto, pelo que se pode ver nas ruas e nos noticiários, estes indivíduos estão perdendo a batalha. O que nos faz lembrar de um aspecto importante em relação às formações estatais: o estado, do ponto de vista mais geral da humanidade, não é necessário – trata-se apenas de um artifício, entre outros, de organização social.
No final do mês de março, três indivíduos em uma van irregular (isto é, que circulava contrariando a lei) seqüestraram um casal de estudantes, agrediram os dois e submeteram a moça a um estupro coletivo. Fizeram isto enquanto se deslocaram entre Rio de Janeiro e São Gonçalo, ida e volta, atravessando duas vezes a Ponte Rio-Niterói. Durante este tempo, não foram incomodados por autoridades municipais, estaduais ou federais (a ponte é parte de uma rodovia federal, a BR-101, possui pedágio e policiamento federal).
No início de abril, um ônibus que trafegava em alta velocidade despencou de um viaduto em péssimas condições de conservação após uma briga entre um passageiro e o motorista-cobrador-velocista. O veículo aterrissou com o teto na Avenida Brasil, a via mais movimentada da cidade, matando instantaneamente sete passageiros.
Engarrafamento na Linha Vermelha no final dos anos 1990Sistema de transporte público: problema sem solução
O sistema público de transportes do Rio de Janeiro é administrado a partir de interesses que não são o do público. O modelo rodoviário privado, que não foi inventado pelos atuais políticos que controlam todas as esferas do estado brasileiro, foi incorporado como sendo o mais “natural”, que precisa apenas ser aperfeiçoado e expandido. As soluções hidroviária e ferroviária (que inclui o metrô), obviamente essenciais em qualquer outro país, são tratadas como questões estruturais insolúveis; uma vez que não podem ser implementadas no período de um único governo – na verdade, entram em conflito com outros interesses, os já estabelecidos em torno do transporte rodoviário, agora também aproveitado pelos milicianos e outros, sempre acobertados por autoridades locais, que acabam se tornando a única alternativa de transporte. A expansão unilinear do metrô para a Barra da Tijuca, em implementação atualmente, não atende o desejo da população carioca ou fluminense, mas se encaixa nos planos de curto prazo do governador e do seu grupo político.
Enquanto as autoridades constituídas entre o plano municipal e federal tratam o transporte como assunto menos importante, a população fluminense é massacrada diariamente – o país conta com ministérios dos Transportes e das Cidades que, como outros tantos, acabam servindo de moeda para a conquista de apoio político, mais do que para implementar transformações estruturais; no caso dos executivos estadual e municipal, as relações indecentes entre os mandatários e grandes empreiteiros e empresários do setor são mais do que notórias.
Nos últimos dias, a tarifa do metrô do Rio saltou de R$ 3,30 para R$ 3,50. Nas barcas, na mesma semana, o salto foi de R$ 4,50 para R$ 4,80. Os serviços prestados, obviamente, são péssimos - do trajeto limitado à escassez de veículos, passando pela violência dos agentes privados de segurança -, mas, para ficar no peso financeiro, basta lembrar que não há nenhum tipo de desconto para o usuário cotidiano (ou seja, o trabalhador), situação inédita no mundo. É claro que os governantes dizem se preocupar, reiteram que o sistema está melhorando gradualmente e usam a questão dos transportes como plataforma política. Às vezes até com um toque de humor: em setembro de 2009, no Dia Mundial Sem Carro (um incentivo ao uso de outros modais), o governador do Rio de Janeiro foi trabalhar de helicóptero.
A lei só beneficia seu autor
O deboche e o descaso, entretanto, não são apenas mostras de um estilo pessoal, mera fanfarronice da mais alta autoridade do Rio de Janeiro: a Assembléia Legislativa do Rio firmou há poucos dias contrato com empresa de indivíduos envolvidos em fraude para fornecimento de 936 litros de combustível por mês para cada deputado, que já possuem carro oficial fornecido pelo estado. Estas atitudes, mais do que fatos isolados, são a face mais aparente de uma histórica ausência de compromisso com a população – que é, sim, conivente, uma vez que o estado não é uma entidade que paira sobre a sociedade.
A inexistência de uma rede de transportes de massa regular e que não esteja exposta à sanha dos criminosos empresários do setor (em associação com os políticos, evidentemente) não apenas agride a população e os funcionários (como os motoristas de ônibus): a falta de um sistema público de transporte que seja eminentemente ferroviário impede a existência de uma malha urbana administrável, rouba a qualidade de vida do cidadão e deixa indivíduos a mercê de bandidos de todos os tipos, incluindo ladrões, assassinos e estupradores. As favelas que se espalharam por toda a região metropolitana, degradando as condições de existência dos moradores, os cartéis de transporte “alternativo”, o domínio de milícias e outras gangues em várias regiões do estado não são conseqüências de um destino histórico inevitável. Trata-se de uma construção de muitas décadas, com a qual políticos e empresários aprenderam a lucrar.
Acidente com ônibus na Avenida Brasil / CET-RIONa maior parte das vezes, as medidas que são implementadas para que este estado de coisas seja mantido estão amparadas na lei: senadores, ministros, deputados, governadores, vereadores e prefeitos têm direito de não usar transporte público – direito que é mais ainda assegurado na medida em que o estado (o contribuinte) arca com a despesa do seu transporte ou da sua moradia. Os empresários que têm suas concessões continuamente renovadas, ao arrepio do bom senso, são favorecidos por governadores, prefeitos, secretários, deputados e vereadores no plano da legislação. Trata-se de mais uma situação desconhecida de países que vivem sob império da lei. Entre nós, entretanto, a lei é feita para garantir o privilégio do seu autor.
O estado que assegura estes privilégios para os seus próprios administradores em detrimento da população e a favor dos magnatas e quadrilheiros é o mesmo que não se importa com a violência endêmica. A desgraça que se abate cotidianamente sobre vastas parcelas da sociedade só é alvo de atenção do ponto-de-vista publicitário-eleitoral. A grande preocupação, ultimamente, é a “imagem internacional” da cidade por conta dos grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas – oportunidades de negócio para empresários-criminosos e os seus associados governantes, uma onda na qual a própria imprensa tristemente embarcou. A resolução definitiva deste enorme abacaxi com caroço que é o transporte metropolitano fluminense associado aos interesses escusos empresário-estatais traria mais desenvolvimento e recursos para o Rio de Janeiro do que qualquer megaevento internacional.
Assim, favelas são ocupadas e “pacificadas” pela polícia nas áreas que ficarão sob holofotes durante os próximos anos – enquanto bandidos são avisados com antecedência suficiente para que se alojem em locais mais periféricos da região metropolitana, como Niterói e São Gonçalo, atualmente cidades inteiramente controladas por facções criminosas. A gangue de ladrões-estupradores da van que saiu de Copacabana, por sua vez, foi rapidamente desbaratada após o horrendo episódio que vitimou a estudante norte-americana, no meio de uma comoção que chegou justamente às manchetes internacionais – mas o estado pouco fez em relação às 23.501 mulheres estupradas no Rio de Janeiro em números crescentes entre 2008 e 2012 (algumas delas pelos mesmos criminosos).
O Rio é apenas uma parte do todo, apenas uma batalha em uma guerra perdida. O estado brasileiro tem sido relapso em relação às principais questões que afetam diretamente as populações urbanas que não pertencem àquela parcela capaz de manipular o arcabouço jurídico em benefício próprio – e tem sido bem forte para assegurar por muitas décadas esta sua auto-reprodução. Assim, vivemos longe do império da lei. Bem longe, aliás. Vivemos em um império que, se não rouba, mata e estupra, deixa roubar, matar e estuprar.
* Rodrigo Elias é historiador e professor das Faculdades Integradas Simonsen.
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