Está lá no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: “Release – substantivo masculino. Material informativo distribuído entre jornalistas antes de solenidades, entrevistas, lançamentos de filmes etc., com resumos, biografias, dados específicos que facilitem o trabalho jornalístico”. Bons tempos aqueles em que recebíamos material informativo antes de solenidades, entrevistas coletivas, lançamentos. E tudo para facilitar o trabalho jornalístico, ora veja... Sim, porque hoje uma coisa é certa: não há mesmo limites para a insânia – os releases enlouqueceram, na forma e no conteúdo.
E, junto com eles, nós outros, pobres destinatários, obrigados a engolir uma feira livre de abobrinhas por meio do Outlook. Oh! Vida dura! No século passado, o jornalista e escritor Humberto Werneck se vingava de uma maneira sui generis quando recebia papéis da mais absoluta irrelevância. Naquela época, até o começo dos anos 1990, era comum a presença de assessores de imprensa nas redações – para sugerir pautas, divulgar eventos e produtos.
Pois bem, depois de ler cuidadosamente o conteúdo, Werneck olhava para a moça – não me perguntem por que motivo, mas 95% eram mulheres – e, com a cara mais angelical do mundo, indagava: “Você sabe qual a grande invenção deste século que ainda não foi patenteada?” E, diante da previsível negativa, dizia com diabólica candura: “O release que já vem rasgado”.
Ah, o release que já vem rasgado... Que criação mais sublime. Tivesse sido patenteada há 20, 30 anos, certamente teríamos hoje a evolução da espécie: o release que já vem deletado. Que alívio para nossas caixas de entrada. Deixaríamos de ser informados, por exemplo, sobre a terceira (!) edição, em São Paulo, do Sarau do Doutor Fofinho, apelido de um psiquiatra cujo nome o bom senso nos aconselha a ocultar. Aberto ao público e com a presença de uma cantora e um violonista, o evento teve como tema a Cidade Maravilhosa. “Todo mundo pode participar cantando e recitando versos que ilustrem as belezas do Rio de Janeiro”, dizia o Doutor Fofinho no texto de divulgação.
Que fofura! Melhor que isso só mesmo um tal Willaboo, brinquedo sexual inflável que prometeu agitar a Erótika Fair 2013 com seu design surpreendentemente eficaz. “Durante a inflação, um tubo interior é formado no desenho, que dá uma fantástica sensação de ‘apertado’”, dizia o release. “Quanto mais você inflar seu Willaboo, mais apertado fica.” Não é perfeito para qualquer pibinho?
E, antes que os assessores de im- prensa elejam o supra-assinado como inimigo número 1 da categoria, vamos a alguns exemplos. Eles comprovam a tese mayrinkiana da absoluta falta de limites para a insânia.
Desculpa qualquer coisa
Um bom começo é a falta de foco, a ausência total de parâmetros na hora de apertar a tecla “enviar”. Em um mundo em que qualquer criança de cinco anos é capaz de juntar com eficiência correio eletrônico a banco de dados, é no mínimo curioso que a editora de uma revista feminina receba regularmente material sobre leilões de sêmen de touros nelore, correto? Ou que o repórter de uma revista de agronegócio seja constantemente bombardeado com novidades sobre batons e perfumes, certo? E-r-r-a-d-o. Qual fragata alemã na Segunda Guerra, perdida no nevoeiro do mar do Norte em dia de chuva fina, a ordem é atirar em tudo que faça barulho. Esse descaso com o destinatário só pode levar o remetente ao descrédito – para dizer o mínimo.
Para o máximo, vamos a um tipo de diálogo que, volta e meia, a gente enfrenta ao telefone:
– Fernando Paiva?
– Sim.
– Aqui é a Juliana, da XPTO Assessoria Global em Comunicação. Você recebeu meu release?
– ... [como foi que essa diaba conseguiu o meu direto?]
– Te mandei ontem, você não recebeu?
– Olha, Luciana, acho que não. Qual é o assunto?
– Juliana, Paiva. É que o Pedro Ludovico vai estar hoje à noite na inauguração da Fuzz. Vocês vão mandar alguém pra cobrir?
– Pedro Ludovico? Fuzz?
– É, ele é a mais nova revelação do sertanejo universitário. Tá fazendo um sucesso danado. E vai estar prestigiando a inauguração da Fuzz, lá na Barra Funda. Posso contar com vocês?
– Juliana, você já viu alguma de nossas revistas? [Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres...]
– Nunca. Mas me disseram que são bem legais. É por isso que mandei o release sobre o Pedro Ludovico.
– Juliana, fazemos revistas customizadas. Trimestrais. E infelizmente não cobrimos eventos, digamos, ligados à música sertaneja, digamos, universitária. Nem temos seções que contemplem, digamos, esse tipo de assunto nas nossas publicações.
– Ah, tá bom, Paiva. Um beijo! Desculpa qualquer coisa, viu?
A língua no beleléu
Tá desculpada, Juliana. Tá desculpada. De desculpa em desculpa a gente vai se divertindo por essa vida afora. Aliás, uma das grandes alegrias para quem tem pelo menos aquilo que se chamava outrora de “primeiras letras” é travar conhecimento com o idioma no qual os releases são vazados atualmente. Já nos dois primeiros versos de seu célebre soneto “Língua Portuguesa”, Olavo Bilac (1865-1918) profeticamente cantou a bola: “Última flor do Lácio, inculta e bela/ És, a um tempo, esplendor e sepultura”. O que jamais poderia ter passado pela antecâmara do pensamento do vate carioca é que a última flor do Lácio – região da atual Itália onde nasceu o latim – descambasse, com o perdão da expressão, para uma verdadeira suruba vernacular, a última flor do felatio.
Exagero? Então tá. No momento em que escrevo, 17 de junho de 2013, acaba de chegar à minha caixa de entrada – essas coisas não param – uma pérola.
“AfroReggae é condecorado com a Ordem do Rio Branco”, diz o título. Perfeito. A ordem é a mais alta condecoração da diplomacia brasileira e o AfroReggae tem um trabalho consistente, merece recebê-la.
O que ninguém merece, porém, é este lide: “O Grupo AfroReggae recebe nesta segunda-feira, 17 de junho, em Brasília, uma insigma da condecoração Ordem do Rio Branco [...]. A presidente Dilma Rousseff entrega a insigma às mãos de José Junior [...].”
Uma insigma entregue às mãos! Valha-me, meu São Francisco de Salles, padroeiro dos jornalistas.
Melhor ainda é esta maravilha estilística. No melhor jeitão Abelardo “eu-vim-pra-confundir-não-pra-explicar” Barbosa, o saudoso Chacrinha, ela tenta divulgar obra, digamos, literária: “O livro traz o surpreendente olhar da autora para o código humano que leva à motivação erótica e existencial e envolve os leitores com a fala profunda e arrebatadora que desvela as forças sutis do Tesão na vida, elevando-nos ao Divino ou envolvendo-nos no mundano”.
Ave Maria! Deu para entender tudinho, né mesmo? Perde apenas para um release que começa assim, na maior intimidade: “Olá, tudo bem com você? A cueca agora também é elemento fashion e usada até para compor o look. Há quem diga que de acordo com o estilo da cueca é possível traçar um pouco do perfil e da personalidade de quem as usa”.
Não é somente a confusão mental que dá pistas sobre a, digamos, personalidade de quem escreve. A ortografia também diz muito. Procuro nos meus arquivos e descubro que, há dois anos, um release informava algo inacreditável sobre a cantora Mallu Magalhães – numa entrevista a conhecida publicação masculina. “Mallu confessou alguns medos e manias, como pegar ônibus ao léo só para ficar entre pessoas, afligir-se ao tomar banho sozinha, ou chorar ao ver um mendigo na rua.”
Ônibus ao léo... Que maravilha! É com textos assim que a língua vai definitivamente para o beleléo.
Mas o mundo gira, a Lusitana roda, e o besteirol prossegue – intimorato e fagueiro. Informação sobre um hotel recém-inaugurado no sul do país revela que o cardápio foi elaborado por um célebre chef de cuisine francês “erradicado há mais de 30 anos no Brasil”. Erradicado, ora veja. Mal chegou ao país, três décadas atrás, e já arrancaram as raízes do pobrezinho. Caso clássico, como se brincava antigamente nas redações, de chamar Jesus de Genésio. Ou Jenésio, tanto faz.
***
(Por Fernando Paiva: diretor da Editora Custom. Foi editor das revistas Elle e Playboy e das customizadas da Editora Trip) Reproduzido da Revista de Jornalismo ESPM nº 6, jul/ago/set 2013.
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
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