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A guerra dos megawatts
2 de Dezembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaUsina hidrelétrica de Jirau, em Rondônia (Foto: Marcelo Min) |
Por Ana Aranha
Uma briga entre peixes grandes revolta o curso do rio Madeira. As usinas hidrelétricas de Jirau e de Santo Antônio, segundo e terceiro maior potencial hidrelétrico do Programa de Aceleração do Crescimento, disputam cada megawatt a ser extraído das águas de Rondônia.
Desde que ganharam o leilão para explorar o rio, entre 2007 e 2008, os empreendimentos tentam antecipar as obras e fazem alterações ao projeto para aumentar a geração de energia. Mas, construídas com 110 quilômetros de distância entre elas, ambas as usinas alegam que as mudanças pleiteadas pela vizinha prejudicariam o seu projeto. E batem na porta do governo federal, responsável por autorizar cada alteração, com argumentos técnicos e ameaças jurídicas.
Literalmente à margem das decisões, os habitantes de cidades e vilas banhadas pelo Madeira ainda tentam se adaptar às reviravoltas pelas quais o rio já passou. Impactos que podem ser agravados com a expansão das usinas. Como as ondas gigantes que engoliram casas e provocaram desmoronamentos em Porto Velho e duas outras comunidades rio abaixo. Ou as 11 toneladas de peixes mortos encontrados nas proximidades da barragem – o cheiro era tão forte que podia ser sentido do centro da capital (leia mais em Um rio em fúria)
“Como se pode sequer pensar em autorizar a expansão de um empreendimento que ainda não mostrou como vai mitigar os impactos já detectados?”, questiona o promotor Aluildo de Oliveira Leite, do Ministério Público Estadual de Rondônia. Acompanhando o processo há alguns anos, ele não confia que o governo vai cobrar a dívida ambiental e social das usinas antes de injetar mais dinheiro nos empreendimentos. Por isso, move uma ação exigindo que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) se abstenha de licenciar qualquer expansão enquanto as empresas não derem uma resposta satisfatória aos problemas constatados.
Margem com pedras para contenção do desbarrancamento (Foto: Marcelo Min)
Ele não está sozinho. Os Ministérios Públicos estadual e federal, além de organizações ligadas ao meio ambiente, já moveram mais de uma dezena de ações questionando os impactos provocados pelas usinas e o modo como o governo deveria controlá-los.
O receio dos promotores e ambientalistas é que o interesse público e os direitos dos milhares de moradores afetados pelas obras fiquem pequenos quando confrontados com as forças envolvidas nessa disputa.
Queda de braço
De um lado está a multinacional de origem francesa GDF Suez, que comprou as ações da construtora Camargo Correa e virou sócia majoritária da sociedade Energia Sustentável do Brasil, responsável por Jirau. A empresa também tem entre seus sócios a Eletrosul e a Chesf, ambas vinculadas ao Ministério de Minas e Energia.
Do outro lado, o consórcio Santo Antônio Energia é liderado pela Odebrecht e fatiado entre Andrade Gutierrez, Eletrobrás-Furnas (vinculadas ao Ministério de Minas e Energia) e Cemig (subordinada ao governo de Minas Gerais).
Juntos, os dois empreendimentos devem receber mais de R$ 30 bilhões para construir e explorar uma estrutura capaz de gerar 6,9 mil megawatts – o equivalente a 6% de toda a energia produzida no país, suficiente para abastecer mais de 20 milhões de residências. A potência máxima de Jirau é de 3.750 megawatts, a de Santo Antônio 3.150.
O motivo da corrida e da disputa entre as empresas é que apenas uma parcela da energia a ser produzida por essas usinas, cerca de 60%, será vendida para o mercado cativo (ambiente de compra e venda controlado pelo governo). A outra parte pode ser vendida no mercado livre, ao preço que a usina conseguir, assim como toda a energia que for produzida antes da data prevista no contrato com o governo.
Obra da usina de Santo Antônio em vila que foi removida (Foto: Marcelo Min)
Por isso, desde que o leilão foi encerrado, as duas concessionárias tentam antecipar o início de sua operação e pleiteiam autorizações para aumentar a potência de geração. Mas, o cálculo para aumentar o rendimento financeiro não leva em conta os custos sociais e ambientais – que também crescem com as mudanças.
“As greves que estouraram em Jirau em 2011 foram consequência dessa aceleração. A empresa contratou mais funcionários do que era previsto, e mais do que ela era capaz de administrar. Tudo para vender energia antes”, diz a economista Alessandra Cardoso, assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), ONG que monitora os investimentos nas usinas hidrelétricas na Amazônia.
Além da greve, o inchaço no número de trabalhadores – o dobro do planejado – representou uma explosão demográfica na região. Não havia leitos nos hospitais para os operários acidentados, nem matrícula nas escolas para os filhos dos trabalhadores. Os moradores de Jaci Paraná, povoado mais próximo de Jirau, vivem sufocados pela violência depois que a vila de pescadores triplicou de tamanho em três anos (Leia mais na reportagem “Vidas em trânsito”).
Todos os impactos são previstos de acordo com o tamanho e cronograma da obra. A partir desse plano, são calculados os valores e as ações para criar a estrutura pública necessária. Por isso, é importante que o plano seja cumprido. “As empresas não têm o direito de passar por cima de tudo isso para aumentar rentabilidade”, diz Alessandra.
As mudanças para baixar o custo de Jirau já nasceram antes mesmo de a obra começar. O consórcio Energia Sustentável apresentou uma proposta que alterava o local da barragem em 9,4 quilômetros. Em vez da cachoeira de Jirau, a usina foi construída na corredeira chamada Caldeirão do Inferno.
A alteração trouxe economias de R$ 1 bilhão no custo da obra, mas gerou o alagamento adicional de 400 hectares da Floresta Estadual Rio Vermelho, segundo o Ministério Público de Rondônia. O órgão moveu uma ação de improbidade administrativa contra a presidência do Ibama por ter autorizado a mudança sem refazer os estudos de impacto ambiental.
Desmatamento em área a ser alagada pela usina de Jirau (Foto: Marcelo Min)
Não demorou muito para o rio ficar pequeno para as duas usinas. A briga começou em 2010, quando a Energia Sustentável pediu para adicionar mais seis turbinas ao projeto original, que tinha 44. A solicitação foi aprovada pela Agência Nacional de energia Elétrica (Aneel), e o empreendimento ganhou empréstimo adicional de R$ 5 bilhões – 50% dos R$ 10 bilhões iniciais.
Um mês depois, Santo Antônio também enviou plano para aumentar sua geração. A Aneel condicionou essa aprovação ao Ibama, já que, além do aumento de turbinas, a Santo Antônio também precisará alagar 1.300 hectares de terra para aumentar sua potência. Nessa área há vilas, uma estrada federal e duas unidades de conservação.
Mas o impacto ambiental e social não gerou comoção equivalente à reação da usina vizinha. Seguindo a correnteza do rio, Jirau fica antes de Santo Antônio. Por isso, o aumento do volume represado na segunda aumenta a altura do rio e diminui a queda d’água da primeira – o que reduz sua possibilidade de aumentar a potência.
À Aneel, a Energia Sustentável pediu a suspensão da análise de expansão de Santo Antônio. O argumento é que a alteração decorreria em riscos na estrutura de Jirau, que poderiam provocar um “acidente sem precedentes”. A mudança está agora nas mãos do Ibama. Segundo Thomaz Miazaki de Toledo, coordenador de Infraestrutura de Energia Elétrica, o instituto aguarda o levantamento do número de famílias a serem removidas e a área a ser desmatada – informações levantadas pelo consórcio que pede a expansão.
A Aneel já sinalizou que a decisão será pela solução que agregue maior energia ao complexo, considerando a soma das duas usinas.
O plano de Dilma
A corrida por energia tem, como pano de fundo, os estímulos do governo federal para o setor. Os recursos que financiam as obras saem dos cofres públicos. Jirau, que tem previsão de investimentos de R$ 15,5 bilhões, já recebeu R$ 9,5 bi do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por meio de empréstimos diretos e indiretos. O mesmo banco também é o maior financiador da Santo Antônio, orçada em R$ 15,1 bilhões. A usina ainda recebeu empréstimos de dois fundos públicos: o Fundo Constitucional do Norte e o Fundo de Desenvolvimento da Amazônia.
Para quitar esse empréstimo, as empresas têm a garantia de que mais da metade da energia produzida será vendida. Além disso, a taxa cobrada pelo BNDES é camarada, a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). As usinas ainda podem ficar isentas de pagar Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). Em agosto de 2011, a Assembleia Legislativa de Rondônia aprovou uma lei que estende a isenção, dada a algumas empresas locais, às usinas do rio Madeira. Um mês depois, o Ministério Público Estadual entrou com um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade e obteve liminar que suspendeu provisoriamente a validade da lei.
As usinas recebem tantos incentivos porque estão no centro do plano da presidenta Dilma Rousseff para o crescimento econômico do país. Santo Antônio e Jirau são o carro-chefe de um ambicioso plano registrado na Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O governo já contratou a construção de 19 usinas hidrelétricas, e há mais 29 projetos da mesma natureza em estudo pela Aneel.
Torres de transmissão (Foto: Marcelo Min)
A meta é saltar dos 116 mil megawatts que circulam pelo Sistema Interligado Nacional, para 182 mil em 2021. Essa projeção se baseia nas previsões para uma expansão do Produto Interno Bruto: 5% anuais. O governo vincula diretamente o crescimento da economia e a oferta de energia. A promessa, ainda, é não só que não haverá novos apagões, como também que essa energia será vendida a custos mais baixos, o que aumentaria a competitividade dos produtos brasileiros.
Zonas de sacrifício
O problema é que, no caminho do plano do governo, e no meio da queda de braço entre as construtoras, está a população do estado de Rondônia e o ecossistema do rio Madeira – recentemente apontado como berço fluvial de maior riqueza biológica do mundo. Quando contrastadas com o plano macro, muitas vezes essas áreas são consideradas “zonas de sacrifício”, na análise do cientista político Luiz Novoa, professor da Universidade Federal de Rondônia e coordenador de grupo de pesquisa sobre as comunidades afetadas pelas usinas.
“Na guerra pelo desenvolvimento, é como se essas regiões fossem efeitos colaterais de um objetivo maior a ser conquistado em nome do bem comum”, afirma. Ele lembra que, quando surgiram os primeiros projetos de Jirau e Santo Antônio, criou-se a expectativa de que o complexo seria um novo referencial. Em especial com o anúncio do uso de um novo tipo de tecnologia, as turbinas bulbo, que funcionam com o fluxo normal do rio – diminuindo a quantidade de água que precisa ser represada.
“Criou-se a expectativa que se superasse o histórico de Tucuruí e Balbina, hidrelétricas construídas na Amazônia durante o regime militar e depois reconhecidas como desastres ambientais”, diz Novoa. “Afinal, hoje temos novas tecnologias e espaços democráticos para debater. Mas não foi isso que aconteceu.”
Embora o país tenha novas ferramentas, o controle dos impactos tem um preço que o governo não está disposto a pagar: tempo.
O prazo do governo já estourou antes mesmo do leilão ter início. Em 2005, o Ibama recebeu o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima), chave para o controle dos impactos. Esse estudo deve analisar todas as possíveis alterações ao meio provocadas pelo empreendimento. E elenca as medidas necessárias para prevenir, reduzir ou indenizar os prejuízos à população, meio ambiente e patrimônio público.
A avaliação e aval do Ibama a esse estudo são fundamentais porque quem elabora o EIA-Rima são as mesmas empresas interessadas em construir a obra. Nesse caso, o estudo foi feito sob encomenda de Furnas e Odebrecht, empresas que depois ganharam o leilão de Santo Antônio.
O problema é que o EIA-Rima das usinas do rio Madeira foi considerado incompleto pelos técnicos do Ibama. Havia lacunas. Por dois anos, o órgão pediu diversos complementos às empresas.
Ao longo desse tempo, o Ibama e a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, passaram a receber críticas públicas. O ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau chegou a declarar a jornalistas que construiria usinas térmicas e nucleares caso as hidrelétricas do Madeira não fossem aprovadas logo. A pressão também vinha da presidente Dilma, então chefe da Casa Civil, e do ex-presidente Lula. Durante reunião do conselho político, ele teria dito frase que ficou célebre: “jogaram um bagre no colo do presidente”.
Lula fazia piada com um dos muitos pontos não esclarecidos pelo EIA-Rima: a quebra no ciclo de reprodução dos grandes bagres migradores, fonte de renda de cerca de 15 mil pescadores da região. Outra lacuna importante era a falta de avaliação dos impactos da obra rio abaixo das barragens. Mesma região onde, depois, ocorreram os desbarrancamentos nas margens, provocando a destruição de casas (leia mais em Um rio em Fúria).
As dúvidas eram tantas que o Ministério Público Estadual moveu uma ação obrigando as empresas a realizarem outro estudo.Esse material apontou inúmeras falhas do EIA-Rima, entre elas a necessidade de se avaliar os efeitos na Bolívia, a montante das usinas. Um dos especialistas a apontar esse problema foi o biólogo Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos ganhadores do Prêmio Nobel da Paz em 2007, com estudo coletivo que alertava sobre os riscos do aquecimento global.
Rio Madeira visto de Porto Velho (Foto: Marcelo Min)
Já que a área alagada por Jirau chega até a divisa com a Bolívia, país onde o rio nasce, para Fearnside, os impactos no território boliviano são bastante óbvios. “Quando o rio entra na reserva de Jirau, a velocidade diminui brutalmente, fazendo com que os sedimentos caiam no fundo”, afirma. “Com o tempo, isso formará uma montanha de sedimentos, que funciona como uma segunda barragem. Ao barrar o fluxo d’água, o nível do rio sobe, inundando parte da Bolívia”.
Um grupo de pesquisadores fez ainda um requerimento ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), solicitando estudos sobre os impactos na Bolívia. “Entregamos na mão do embaixador boliviano documentos sobre o impacto na reprodução dos peixes na Bolívia”, diz Telma Monteiro, pesquisadora independente que fez parte do grupo.
A tensão estourou em março de 2007, quando uma equipe de especialistas contratados pelo Ibama para dar parecer final sobre os estudos de impacto concluiu que Jirau e Santo Antônio não deveriam obter o licenciamento. O parecer, de 221 páginas, foi concluído assim: “Dado o elevado grau de incerteza envolvido no processo; a identificação de áreas afetadas não contempladas no Estudo; o não dimensionamento de vários impactos com ausência de medidas mitigadoras e de controle ambiental (…) Recomenda-se a não emissão da Licença Prévia” (leia mais aqui).
Esse parágrafo foi lido pelo então presidente do Ibama, Marcus Barros, em reunião com Dilma e Lula. Na sequencia, o ex-presidente teria encerrado o encontro abruptamente para que todos pudessem “esfriar a cabeça”. Uma semana depois, o diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, Luiz Felippe Kunz fez despacho controverso. Nele, afirmava que o Ibama não acolheria o parecer dos técnicos no sentido de refazer o EIA-Rima. Mas concordava que a licença só poderia ser emitida depois da elaboração de estudos complementares – indicando que faria consultas sobre impactos em “outros países” (leia aqui).
Vinte dias depois desse despacho, em abril de 2007, o Ibama sofreu uma baixa até então inédita no órgão na gestão Lula: a troca de seis cargos de comando, entre eles o presidente do instituto e o secretário executivo. Marcus Barros foi presidente ao longo de todo o primeiro mandato de Lula. Desde que saiu, o instituto teve seis presidentes diferentes em sete anos. Kunz, o diretor de Licenciamento, também foi exonerado.
Em julho do mesmo ano, as duas usinas receberam o Licenciamento Prévio, sob protesto de organizações ligadas ao meio ambiente. O parecer foi assinado pelo novo diretor de Licenciamento, Roberto Messias Franco, promovido a presidente do Ibama um ano depois, com a saída de Marina do governo. Ao assumir o Meio Ambiente, o novo ministro Carlos Minc deu prazo de um mês para que o Ibama apresentasse uma simplificação da burocracia para acelerar a concessão de licenciamentos ambientais.
Rápidos para licenciar, lentos para cobrar
A mesma celeridade, porém, não é observada na hora de cobrar as ações de compensação ambiental. Pela lei, os consórcios são obrigados a investir 0,5 % do valor total dos empreendimentos no fortalecimento da proteção às unidades de conservação. Isso deveria ser feito durante a construção das usinas. No entanto, Santo Antônio já está gerando energia, Jirau tem previsão para começar em janeiro, e o Ibama ainda não decidiu onde esse dinheiro deve ser aplicado. No caso de Jirau, sequer se definiu o valor total a ser investido.
Thomaz Miazaki de Toledo, coordenador de Infraestrutura de Energia Elétrica do Ibama, explica que isso aconteceu porque a empresa responsável por Jirau enviou um valor inferior ao que era esperado. A lei estabelece que o valor de compensação ambiental deve ser 0,5% do custo total da obra. O problema é que a empresa usa um valor como referência (R$ 6,7 bilhões) que é bem inferior ao valor total da obra. Só até agora, Jirau já recebeu R$ 9,5 bilhões do BNDES.
Ao receber valor inferior ao que era esperado, em vez de exigir a readequação das contas, o Ibama caiu em um imbróglio. “O empreendedor é que fornece essa informação, o Ibama não é expert em valor de projeto, quem aprova isso é a Aneel”, afirma. “Mas essa discrepância nos causou estranheza, vamos investigar.”
Um dos fatores que, segundo Miazaki, dificultou as decisões foi a divisão entre Ibama e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão criado em 2007, logo depois das mudanças no comando do Ibama. O ICMBio é o responsável pela aplicação da compensação ambiental, mas é um comitê criado dentro do Ibama que decide sobre como ela deve ser aplicada.
O destino da verba está tão confuso que o único montante que o ICMBio conseguiu acessar virou caso de justiça. O instituto antecipou R$ 6,9 milhões da compensação ambiental de Santo Antônio (definida em R$ 54 milhões). O dinheiro foi usado para a compra de carros tipo pick-ups, retroprojetores, cadeiras e mesas – material distribuído pelos escritórios do instituto em diversos estados.
Incêndio na beira da BR que liga Porto Velho à usina de Jirau (Foto: Marcelo Min)
O Ministério Público de Rondônia interpretou a aplicação como desvio de finalidade e moveu uma ação contra o instituto. Os promotores entenderam que a verba de compensação ambiental deveria ser investida nas unidades de conservação da região afetada. Não seria por falta de demanda. Com a chegada das usinas, explodiu a densidade populacional na região, e um dos impactos indiretos foi o aumento dos conflitos de terra e o desmatamento na região, todos fatores de risco para as unidades de conservação na área.
O presidente do ICMBio, Roberto Vizentin, defende a aplicação, mas admite que é difícil saber os limites sem os parâmetros bem definidos. “Quando esses recursos foram aplicados, ainda não havia sido definido com exatidão quais as regras para aplicação”. A proposta de destinação da compensação ambiental das usinas do rio Madeira só foi aprovada no dia 10 de outubro deste ano.
Referência para o futuro
Para quem acompanhou o licenciamento dessas usinas desde o início, a preocupação é sobre qual tipo de referência esse caso vai virar. O maior receio é que vire um marco legal a ser seguido pelos futuros empreendimentos na construção das dezenas de usinas previstas no país.
Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra, tenta reverter esse processo e transformar Jirau e Santo Antônio em um marco do “como não fazer”. “Depois que o técnico do Ibama se manifestou contra um parecer, acabou. Não pode ter licença assinada por cargo de confiança”, afirma.
Numa tentativa de evitar que a prática vire praxe, ele aposta na Ação Civil Pública movida pela ONG em 2007, quando se pedia a anulação da licença prévia: “A construção é irreversível, agora queremos a reparação de danos”. A estratégia é punir as partes responsáveis pelos prejuízos. Quem sabe assim, num futuro próximo, os governos tenham receio de autorizar uma obra sem conhecer os seus impactos.
Ao longo de um mês, a reportagem esteve em contato com a Santo Antônio Energia e a Energia Sustentável do Brasil, construtora de Jirau, com solicitações para visitar as usinas e entrevistar os responsáveis sobre os aspectos ambientais e sociais das obras. Os empreendimentos não autorizaram nossa entrada e alegaram falta de agenda para conceder entrevista.
O Tupi, o Guarani, o Nheengatu e o Português
2 de Dezembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaTudo começou anos atrás, quando li O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. O livro é fabuloso, denso, apaixonado, inteligente e, como costumo dizer, obrigatório para qualquer pessoa que pretenda dizer: "eu sou brasileiro".
Em suas páginas descobri o tal do nheengatu, entre muitas outras coisas maravilhosas. Fiquei fascinado. Algumas semanas atrás, depois de muitas leituras e estudos sobre história brasileira e os índios, resolvi iniciar um estudo sobre tupi-guarani (que não é exatamente uma língua) e nheengatu. Na verdade, tive e tenho muita dificuldade para encontrar material como livros, dicionários, etc, principalmente gratuito e digital. Mas como estou fazendo isso por esporte, não tenho pressa.
Conversando com dezenas de pessoas desde a leitura do livro, percebi que quase ninguém ouviu falar sobre essas línguas genuinamente brasileiras, nem mesmo na escola. Sendo assim, resolvi criar uma tag ou Marcador (Tupi Guarani Nheengatu), com o qual agruparei textos sobre essas línguas.
O primeiro texto que reproduzo foi publicado em 2008, no Estadão.
Sotaque vem do nheengatu, a língua brasileira
Por Valdir Sanches, Lagoinha (SP) - O Estadao de S.Paulo
Caipira é aquele que fala o dialeto caipira. É português, mas com palavras tupi e sotaque da língua brasileira. A língua brasileira é o nheengatu, que existiu no Brasil até ser proibida por Portugal, no século 18. Seu nome parece coisa de índio, e é. O nheengatu incorpora a fala dos índios tupi, que ocupavam o litoral brasileiro. Na verdade, até hoje, quem se refere ao Ibirapuera, fica jururu, come abacaxi ou se pendura num cipó está se expressando nessa língua.
Há algum tempo, quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso usou a expressão "chega de nhémnhémnhém", estava falando puro nheengatu. No Brasil Colônia, era falada fluentemente em uma grande área do País, que ia de Santa Catarina ao Pará. A elite também se expressava por meio dela, embora não em todos os setores. Durante os processos, o juiz dispunha de um intérprete.
"Tivemos uma língua brasileira até o século 18", diz o professor José de Souza Martins, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP. "Só os portugueses, que eram estrangeiros, falavam português."
A língua foi criada no século 16 pelos jesuítas, destacando-se o Padre Anchieta. O fundador de São Paulo era lingüista. Para se entender com os nativos, classificou o tupi e criou uma gramática da língua geral. Ou seja, o nheengatu. "Uma língua de travessia, não é português, nem índio, eram ambas", diz Martins. O português, nesse caso, era o que hoje chamamos arcaico. Convidava-se uma dona para uma função, em vez de uma senhora para um baile. E dizia-se coisas como agardece (agradece), alevantá e inorância.
Os índios tinham dificuldade em falar palavras portuguesas como os verbos no infinitivo. E também palavras com consoantes dobradas (rr) ou terminadas em consoante. Além disso, colocavam vogal entre consoantes. Mulher, colher e orelha viraram muié, cuié e oreia. De sua dificuldade com o "erre", vem o "pooorta", reflexivo, com a língua tocando o céu da boca. Martins esclarece que "o dialeto caipira não é um erro, é uma língua dialetal". Mais do que isso: "É uma invenção lingüística musical e social."
Os brasileiros viviam muito bem com ela, até que, no reinado de d. José I (1750 a 1771), Portugal a proibiu. O veto veio em um decreto do primeiro-ministro, o Marquês de Pombal. Bania o ensino do nheengatu das escolas. A decisão foi acatada nas salas de aula, mas o povo continuou falando no dialeto caipira. O tempo acabou por impor o português, mas o dialeto puro resiste.
Ainda é falado em alguns pontos da fronteira com o Paraguai. E, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a 860 quilômetros de Manaus, uma lei de 2002 tornou o nheengatu língua co-oficial do município. Na contramão do decreto do marquês, determina que seja incentivado seu ensino nas escolas, e o uso nos meios de comunicação (o tucano e o baniva também se tornaram línguas co-oficiais).
E ficou o "caipirês" da roça. Por essas bandas, ensina Martins, a língua se multiplica. "Quando o novo aparece, o caipira inventa, a partir da matriz da palavra, algo que tem sentido para ele." Há certo tempo, Martins e um grupo de estudantes apresentaram questões a algumas pessoas. Perguntaram a um homem: "Você concorda ou não concorda?" O homem não entendeu. A pergunta foi sendo repetida, sem sucesso, até que um dos estudantes mudou a forma: "Você concorda ou disconcorda?" Deu certo.
O Concurso Público, o pen drive e o Brasil
29 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários ainda
Por Felipe Liberal para o Acerto de Contas
Depende. Se estivermos falando de um “concurseiro”, nenhuma. E não fiquem com raiva de mim, pois um amontoado de chips e gigabytes não expressam sentimentos, muito menos ódio.
O Brasil está transbordando oportunidade. Oportunidade de negócios, de criação, de inovação, empreendedorismo e crescimento. Desde 1500, nunca houve um momento tão próspero em nossa prometida terra. O futuro que diziam antigamente chegou. Chegou vigoroso, sólido e otimista. Chegou galopante, ávido e contundente.
E o que mais da metade dos jovens brasileiros fizeram com tudo isso? Foram estudar pra concurso!! É isso mesmo! O maldito futuro chegou e os anestesiados jovens estão decorando incisos, alíneas e artigos, a única coisa que fazem é memorizar, lembrar, gravar e arquivar.
Qualquer pen drive que ganho de brinde em uma loja de conveniência consegue gravar tudo isso que vocês gravam pra fazer uma prova. Mas garanto que nenhuma máquina consegue criar, inovar e crescer. Nenhum computador consegue construir um legado de coragem e perseverança. Nenhum.
E quando (se) passam? Ficam atrás de uma mesa de madeira velha carimbando papéis, despachando apatia e arquivando reclamações. Mas por quê? Porque preferem ter o salário “estável” mensal do que um dia poder realizar o sonho de crescer e se tornar grande.
Mas já to vendo muitos leitores dizendo: “nem todo mundo quer ser rico, esse salário que ganho (ganharei) é suficiente”. Esse mesmo sujeito(a) é o que fica reclamando pelo reajuste no fim do ano; que chega em casa todo dia reclamando da vida, do salário, do chefe, da secretária, do zelador, da mãe do zelador, do carpete mofado da sala e da tinta do carimbo que acabou. É o mesmo sujeito(a) que odeia a segunda-feira; que reza e ora todos os dias para as férias chegarem porque não aguenta mais aquela rotina. Mas, claro, o que importa é o “garantidozinho” no fim do mês.
Isso é muito pequeno para um Brasil tão grande e próspero.
Ó Concurseiros, desculpem a sinceridade, mas entre vocês e o pendrive, fico com o segundo. Mas não é nada pessoal.
Felipe Liberal – Empreendedor e professor de História
Depende. Se estivermos falando de um “concurseiro”, nenhuma. E não fiquem com raiva de mim, pois um amontoado de chips e gigabytes não expressam sentimentos, muito menos ódio.
O Brasil está transbordando oportunidade. Oportunidade de negócios, de criação, de inovação, empreendedorismo e crescimento. Desde 1500, nunca houve um momento tão próspero em nossa prometida terra. O futuro que diziam antigamente chegou. Chegou vigoroso, sólido e otimista. Chegou galopante, ávido e contundente.
E o que mais da metade dos jovens brasileiros fizeram com tudo isso? Foram estudar pra concurso!! É isso mesmo! O maldito futuro chegou e os anestesiados jovens estão decorando incisos, alíneas e artigos, a única coisa que fazem é memorizar, lembrar, gravar e arquivar.
Qualquer pen drive que ganho de brinde em uma loja de conveniência consegue gravar tudo isso que vocês gravam pra fazer uma prova. Mas garanto que nenhuma máquina consegue criar, inovar e crescer. Nenhum computador consegue construir um legado de coragem e perseverança. Nenhum.
E quando (se) passam? Ficam atrás de uma mesa de madeira velha carimbando papéis, despachando apatia e arquivando reclamações. Mas por quê? Porque preferem ter o salário “estável” mensal do que um dia poder realizar o sonho de crescer e se tornar grande.
Mas já to vendo muitos leitores dizendo: “nem todo mundo quer ser rico, esse salário que ganho (ganharei) é suficiente”. Esse mesmo sujeito(a) é o que fica reclamando pelo reajuste no fim do ano; que chega em casa todo dia reclamando da vida, do salário, do chefe, da secretária, do zelador, da mãe do zelador, do carpete mofado da sala e da tinta do carimbo que acabou. É o mesmo sujeito(a) que odeia a segunda-feira; que reza e ora todos os dias para as férias chegarem porque não aguenta mais aquela rotina. Mas, claro, o que importa é o “garantidozinho” no fim do mês.
Isso é muito pequeno para um Brasil tão grande e próspero.
Ó Concurseiros, desculpem a sinceridade, mas entre vocês e o pendrive, fico com o segundo. Mas não é nada pessoal.
Felipe Liberal – Empreendedor e professor de História
Castells vê “expansão do não-capitalismo”
28 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários ainda Culturas econômicas alternativas teriam sido reforçadas pela crise. Mas sociólogo adverte: sistema não entrará em colapso por si mesmoEntrevista a Paul Mason | Tradução: Gabriela Leite | Imagem: Binho Ribeiro
O professor Manuel Castells é um dos sociólogos mais citados no mundo. Em 1990, quando os mais tecnologicamente integrados de nós ainda lutavam para conseguir conectar seus modens, o acadêmico espanhol já documentava o surgimento da Sociedade em Rede e estudava a interação entre o uso da internet, a contracultura, movimentos de protesto urbanos e a identidade pessoal.
Paul Mason, editor de notícias econômicas da rádio BBC, entrevistou o professor Castells na London School of Economics (Escola de Economia de Londres) sobre seu último livro, “Aftermath: The Cultures of Economic Crisis” (“Resultado: as Culturas da Crise Econômica”), ainda sem tradução para português.
Castells sugere que talvez estejamos prestes a ver o surgimento de um novo tipo de economia. Os novos estilos de viver dão sentido à existência, mas a mudança tem também um segundo motor: consumidores que não têm dinheiro para consumir.
São práticas econômicas não motivadas pelo lucro, tais como o escambo, as moedas sociais, as cooperativas, as redes de agricultura e de ajuda mútua, com serviços gratuitos – tudo isso já existe e está se expandindo ao redor do mundo, diz ele. Se as instituições políticas vão se abrir para as mudanças que acontecem na sociedade – é cedo para saber. Seguem trechos da conversa.
O que é surgimento de novas culturas econômicas?
Quando menciono essa Cultura Econômica Alternativa, é uma combinação de duas coisas. Várias pessoas têm feito isso já há algum tempo, porque não concordam com a falta de sentido em suas vidas. Agora, há algo mais — é a legião de consumidores que não podem consumir. Como não consomem — por não terem dinheiro, nem crédito, nem nada — tentam dar sentido a suas vidas fazendo alguma coisa diferente. Portanto, é por causa das necessidades e valores — as duas coisas juntas — que isso está se expandindo.
Você escreveu que as economias são culturais. Pode falar mais sobre isso?
Se queremos trabalhar para ganhar dinheiro, para consumir, é porque acreditamos que comprando um carro novo ou uma nova televisão, ou um apartamento melhor, seremos mais felizes. Isso é uma forma de cultura. As pessoas estão revertendo essa noção. Pelo contrário: o que é importante em suas vidas não pode ser comprado, na maioria dos casos. Mas elas não têm mais escolha porque já foram capturadas pelo sistema. O que acontece quando a máquina não funciona mais? As pessoas dizem “bem, eu sou mesmo burro. Estou o tempo todo correndo atrás de coisa nenhuma”.
Qual a importância dessa mudança cultural?
É fundamental, porque desencadeia uma crise de confiança nos dois maiores poderes do mundo: o sistema político e o financeiro. As pessoas não confiam mais no lugar onde depositam seu dinheiro, e não acreditam mais naqueles a quem delegam seu voto. É uma crise dramática de confiança – e se não há confiança, não há sociedade. O que nós não vamos ver é o colapso econômico per se, porque as sociedades não conseguem existir em um vácuo social. Se as instituições econômicas e financeiras não funcionam, as relações de poder produzem transformações favoráveis ao sistema financeiro, de forma que ele não entre em colapso. As pessoas é que entram em colapso em seu lugar.
A ideia é que os bancos vão ficar bem, nós não. Aí está a mudança cultural. E grande: uma completa descrença nas instituições políticas e financeiras. Algumas pessoas já começam a viver de modo diferente, conforme conseguem – ou porque desejam outras formas de vida, ou porque não têm escolha. Estou me referindo ao que observei em um dos meus últimos estudos sobre pessoas que decidiram não esperar pela revolução para começar a viver de outra maneira – o que resulta na expansão do que eu chamo de “práticas não-capitalistas”.
São práticas econômicas, mas que não são motivadas pelo lucro – redes de escambo, moedas sociais, cooperativas, autogestão, redes de agricultura, ajuda mútua, simplesmente pela vontade de estar junto, redes de serviços gratuitos para os outros, na expectativa de que outros também proverão você. Tudo isso existe e está se expandindo ao redor do mundo.
Na Catalunha, 97% das pessoas que você pesquisou estavam engajadas em atividades econômicas não-capitalistas.
Bem, estão entre 30-40 mil os que são engajados quase completamente em modos alternativos de vida. Eu distinguo pessoas que organizam a vida conscientemente através de valores alternativos de pessoas que têm vida normal, mas que têm costumes que podem ser vistos como diferentes, em muitos aspectos. Por exemplo, durante a crise, um terço das famílias de Barcelona emprestaram dinheiro, sem juros, para pessoas que não são de sua família.
O que é a Sociedade em Rede?
É uma sociedade em que as atividades principais nas quais as pessoas estão engajadas são organizadas fundamentalmente em rede, ao invés de em estruturas verticais. O que faz a diferença são as tecnologias de rede. Uma coisa é estar constantemente interagindo com pessoas na velocidade da luz, outra é simplesmente ter uma rede de amigos e pessoas. Existe todo tipo de rede, mas a conexão entre todas elas – sejam os mercados financeiros, a política, a cultura, a mídia, as comunicações etc –, é nova por causa das tecnologias digitais.
Então, nós vivemos numa Sociedade em Rede. Podemos deixar de viver nela?
Podemos regredir a uma sociedade pré-eletricidade? Seria a mesma coisa. Não, não podemos. Apesar de agora muitas pessoas estarem dizendo “por que não começamos de novo?” É um grande movimento, conhecido como “decrescimento”. Algumas pessoas querem tentar novas formas de organização comunitária etc.
No entanto, o interessante é que, para as pessoas se organizarem e debaterem e se mobilizarem pelo decrescimento e o comunitarismo, elas têm que usar a internet. Não vivemos numa cultura de realidade virtual, mas de real virtualidade, porque nossa virtualidade – significando as redes da internet – é parte fundamental da nossa realidade. Todos os estudos mostram que as pessoas que são mais sociáveis na internet são também mais sociáveis pessoalmente.
Existem diversos grupos que hoje protestam sobre o assunto A, amanhã sobre o assunto B, e à noite jogam World of Warcraft (jogo RPG online de aventura). Mas será que eles vão conseguir o que Castro e Guevara conquistaram?
O impacto nas instituições políticas é quase insignificante, porque elas são hoje impermeáveis a mudanças. Mas, se você olhar para o que está acontecendo em termos de consciência… há coisas que não existiam três anos, como o grande debate sobre a desigualdade social.
Em termos práticos, o sistema é muito mais forte do que os movimentos nascentes… você atinge a mente das pessoas por um processo de comunicação, e esse processo, hoje, acontece fundamentalmente pela internet e pelo debate. É um processo longo, que vai das mentes das pessoas às instituições da sociedade. Vamos usar um exemplo histórico: a partir do fim do século XIX, na Europa, existiam basicamente os Conservadores e os Liberais, direita e esquerda. Mas então alguma coisa aconteceu – a industrialização, os movimentos da classe trabalhadora, novas ideologias. Nada disso estava no sistema político. Depois de vinte ou trinta anos, vieram os socialistas e depois a divisão dos socialistas… e os liberais basicamente desapareceram. Isso mudará a política, mas não por meio de ações políticas organizadas da mesma maneira. Por quê? Porque as redes não necessitam de organizações hierárquicas.
Onde isso vai dar?
Tudo isso não vai virar uma grande coalizão eleitoral, não vai virar nenhum novo partido, nenhum novo coisa nenhuma. É simplesmente a sociedade contra o Estado e as instituições financeiras – mas não contra o capitalismo, aliás, contra insitituições financeiras, o que é diferente.
Com esse clima, acontece que nossas sociedades se tornarão cada vez mais ingovernáveis e, em consequência, poderá ocorrer todo tipo de fenômeno – alguns muito perigosos. Veremos muitas expressões de formas alternativas de política, que escaparão das correntes principais de instituições políticas tradicionais. E algumas, é claro, voltando ao passado e tentando construir uma comunidade primitiva e nacionalista para atacar todos os outros movimentos e, finalmente, conseguir ter uma sociedade excluída do mundo, que oprime seu próprio povo.
Mas acontece que, em qualquer processo de mudança social desorganizada e caótica, todos esses fenômenos coexistem. E o modo como atuam uns contra os outros vai depender, em última análise, de as instituições políticas abrirem suficientemente seus canais de participação para a energia de mudança que existe na sociedade. Então talvez elas possam superar a resistência das forças reacionárias que também estão presentes em todas as sociedades.
Provincianismo europeu entre gigantes
28 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários ainda O provincianismo dos grandes acabou por fatalmente contaminar a visão da Europa sobre si mesma, e distorcer-lhe a visão sobre o resto do mundo.Por Rui Tavares, publicado no jornal Público de Portugal
Não há provincianismo mais irritante, nem mais perigoso, do que o dos grandes centros, em particular os países grandes e os que se julgam grandes. Mais irritante porque o provincianismo dos pequenos meios reconhece-se; o dos grandes centros é cego perante si mesmo e impossível de extirpar.
Mais perigoso porquê? Porque julgando ver o mundo, não vê senão a sua barriga. Não reconhece a diferença nem os matizes, e aplica a mesma receita estupidamente em todo o lado. Temos exemplos. Nada foi mais letal nesta crise do que ter os problemas da zona euro, respeitantes a dezassete economias, discutidos entre Berlim-Paris e Paris-Berlim. Nas próximas semanas e meses, teremos outro grande momento do provincianismo entre gigantes: o orçamento da União, respeitante a vinte e sete países, discutido entre Londres-Berlim e Berlim-Londres.
Se um pequeno é obtuso e estreito de vistas, em geral, não prejudica a mais ninguém senão ele mesmo. Quando um grande é obtuso e estreito de vistas, prejudica ainda mais aos outros do que a ele, e nem disso se apercebe.
O provincianismo dos grandes acabou por fatalmente contaminar a visão da Europa sobre si mesma, e distorcer-lhe a visão sobre o resto do mundo. Liderada pelos grandes países, a Europa continua sem saber o que fazer das economias emergentes, sem entender que a ascensão dos outros deve ser vivida com naturalidade. Não é possível, nem é necessário ou saudável, que o Atlântico Norte, com apenas dezasseis por cento da população mundial, tenha sessenta por cento do PIB do planeta. E é necessário que a região da Ásia-Pacífico cresça para alimentar os três biliões de bocas (e mais ainda) que ali viverão nas próximas décadas. O crescimento da China e da Índia representam apenas um regresso à normalidade da economia global durante quase dois milénios, com exceção do par de séculos que nos precedeu.
Mas o provincianismo dos grandes europeus também se reflete na maneira como olham para o curto prazo e as pequenas distâncias. Embora tenham já aceitado que, em muito breve, a União vá ter um executivo eleito, é-lhes muito difícil aceitar que os candidatos a Presidente da Comissão Europeia tenham de fazer campanha eleitoral em todos os estados-membros da União. Na próxima quinta-feira será votada no Parlamento Europeu uma emenda que propõe isso mesmo, e tem sido para já inexcedivelmente complicado explicar aos deputados dos grandes países por que é isso importante.
Talvez não o façam por mal; parece-lhes uma bizarria propor que um candidato a ser chefe do executivo de uma União com 27 países tenha de os visitar a todos e em cada um deles apresentar o seu programa eleitoral. Não vêem é claro, que caso contrário uma campanha se poderia concentrar em dois ou três países, e não entendem (pelo menos, não entendem à primeira) o que se perde com isso: ao apresentarem o seu programa em 27 países, os candidatos teriam de saber de que forma esse programa beneficiaria aquelas pessoas concretas, teriam de aprender e teriam de se comprometer com aqueles interesses e aquela maneira de ver o mundo.
Ou seja, teriam de superar a mentalidade mesquinha e tacanha a que injustamente chamamos provincianismo e que, a partir dos grandes centros, tem sido a tragédia da Europa atual.