Este blog foi criado em 2008 como um espaço livre de exercício de comunicação, pensamento, filosofia, música, poesia e assim por diante. A interação atingida entre o autor e os leitores fez o trabalho prosseguir.
Leia mais: http://comunicatudo.blogspot.com/p/sobre.html#ixzz1w7LB16NG
Under Creative Commons License: Attribution Non-Commercial No Derivatives
Por que a Vale foi eleita a pior empresa do mundo?
28 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaWilliam, de Pequiá de Baixo (Foto: Jeremy Bigwood) |
Por Marina Amaral
Duas visões de mundo se confrontam no 16º andar do edifício localizado no cruzamento da avenida Graça Aranha com a rua Santa Luzia, no centro do Rio de Janeiro. Desta vez, longe das câmaras de TV que meses antes registraram, na mesma esquina, o congestionamento provocado pela concentração de mais de duas mil pessoas que vieram da Cúpula dos Povos – o encontro dos movimentos sociais paralelo à Rio+20 –, trazendo faixas pedindo o veto da presidente Dilma Rousseff ao novo Código Florestal e a paralisação das obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, obra emblemática do Plano de Aceleração de Crescimento (PAC) do governo federal que se tornou causa mundial do ativismo ambientalista e de apoio aos indígenas.
As fotografias estavam proibidas na reunião de 31 de outubro entre o comitê da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale e Murilo Ferreira, o presidente da segunda maior mineradora do mundo, acompanhado de seu staff: a diretora de Sustentabilidade e Energia, Vânia Somavilla; Isis Pagy, diretora do Departamento de Relacionamento com as Comunidades; mais três ou quatro assessores que não se apresentaram aos visitantes.
Campanha da Public Eye Awards (Imagem: Divulgação)
Foi um desses assistentes que pôs fim ao suspense que se instalou no ambiente quando a advogada Andressa Caldas, a última a falar pelo comitê, estendeu o Public Eye Awards 2012 para o anfitrião, Murilo Ferreira, que o deixou pairando no ar. O funcionário apanhou o troféu das mãos da representante da ONG Justiça Global e colocou discretamente embaixo da mesa o símbolo conferido à “pior empresa do mundo” desde 2000 promovido anualmente pelas ONGs Greenpeace e Declaração de Berna, com o objetivo de expor violações ambientais e sociais das corporações internacionais.
Os 25 mil dos 88 mil votos totais obtidos na rede mundial foram suficientes para ofuscar o logotipo verde-amarelo da Vale S/A, empresa de capital aberto com acionistas brasileiros e estrangeiros que receberam US$ 9 bilhões em dividendos no ano passado, provenientes de suas atividades em 37 países. E empanar o brilho do aniversário de 70 anos da empresa que se tornou símbolo de progresso para os brasileiros desde que o presidente Getúlio Vargas criou a Companhia Vale do Rio Doce S/A, nacionalizando a empresa de origem inglesa que extraía minério de ferro em Itabira, Minas Gerais.
Murilo Ferreira, pós-graduado em finanças pela Fundação Getúlio Vargas e especializado em administração e marketing, entrou na companhia em 1998, menos de um ano depois da privatização da Vale – também sob protestos – pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Até hoje, 69 ações contestam a transação na Justiça.
Por isso, a reação do presidente ao prêmio surpreendeu o padre Dario Bosso, que fazia parte do comitê. “Ele fez uma fala agressiva, nacionalista, quase beirando a xenofobia. Disse que não considerava prêmios internacionais – ‘nem os que valorizam, nem os que criticam’ – concedidos por organizações estrangeiras que ‘querem bloquear o desenvolvimento do Brasil’, e que o prêmio tinha o claro intento de denegrir a imagem da Vale e alimentar a concorrência estrangeira, depois saiu da sala sem despedir de ninguém”, conta, com leve sotaque italiano, o missionário comboniano, que há anos trabalha na defesa dos direitos humanos no Maranhão.
Além do padre e de seu companheiro na Rede Justiça nos Trilhos, o advogado Danilo Chammas, compunham o comitê o diretor da Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos, Marco Polo Santana Leão, o sindicalista Paulo Fier, do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Petroquímicas do Estado do Paraná (Sindiquímica-PR), outros representantes do movimentos populares (Fórum de Carajás, central sindical Conlutas, Movimento pelas Serras e Águas de Minas) e das ONGs internacionais Pax Christi e Justiça Global.
Padre Dario Bosso (Foto: Jeremy Bigwood)
O título de “pior empresa do mundo” contrasta, e muito, com a imagem que a mineradora tem buscado projetar internacionalmente, nos últimos anos. “A história da Vale é a história do Brasil verdadeiro, do Brasil vitorioso”, enuncia no vídeo institucional “Nossa História” a voz de um dos 150 funcionários de várias partes do mundo convocados a narrar, em suas diversas línguas, a história da companhia brasileira que conquistou o mundo, entremeada por cenas de futebol, concurso de miss e desfile de escola de samba patrocinados pela Vale. O filme, de 26 minutos, foi feito para a empresa pela badalada produtora Conspiração Filmes e conquistou recentemente o prêmio Golfinho de Ouro no 3º Cannes Corporate Media & TV Awards.
Além de prêmios por sua comunicação institucional, a Vale tem colecionado recordes de produção e faturamento. Desde 1974, é a maior empresa exportadora de minério de ferro do mundo. Em 2004 se tornou a líder das exportações brasileiras. Em 2006, tornou-se a segunda maior mineradora do mundo. Em 2010, alcançou a 19ª posição no ranking das maiores corporações mundiais. Como entender, então, essa impopularidade diante dos movimentos sociais da região onde atua, a ponto de arrebatar o título de “pior empresa do mundo”?
Durante a reunião com os movimentos sociais, o presidente da Vale fez um chiste: ele disse que poderia ter impedido esse resultado simplesmente pedindo para uma parte das dezenas de milhares de funcionários da Vale votarem na Tepco, a corporação responsável pela Usina Nuclear de Fukushima, onde aconteceu, em 2011, o desastre nuclear mais grave das últimas décadas em todo o mundo. A empresa japonesa ficou em segundo lugar na votação do Public Eye por uma diferença de 500 votos. Tarde demais, o prêmio já foi entregue, ainda que Ferreira tenha se negado a recebê-lo. Agora, falta entender o que significa.
É certo que a votação para o prêmio teve muito a ver com a participação da empresa em Belo Monte, hidrelétrica em construção no rio Xingu, em Altamira (PA), que tem ensejado ampla oposição de grupos ambientalistas e de apoio aos povos indígenas em todo o mundo. Apesar de ressaltar o fato de não ter controle sobre o projeto, a Vale tem 9% de participação no Consórcio Norte Energia, capitaneado pela Eletrobrás, e mantém grande interesse na obra, já que provém de hidrelétricas 96% da energia que a empresa consome no Brasil, o correspondente a 5,6% do consumo residencial de todo o país.
A área onde atuam os grupos que indicaram a empresa ao prêmio, contudo, fica a mais de 500 quilômetros do lugar onde está sendo construída a usina, e a disputa dos movimentos sociais com a mineradora tem, muitas vezes, raízes pouco conhecidas fora da região. Ao percorrer, entre o sudeste do Pará e o oeste do Maranhão, 2,4 mil quilômetros de estradas esburacadas entre julho e agosto deste ano, a equipe de reportagem da Pública encontrou um território em conflito em torno da Vale S/A. Foi desse chão que nasceu a indicação ao indesejado prêmio, feita pela Rede Justiça nos Trilhos, sediada em Açailândia (MA), em nome dos Atingidos pela Vale.
Estrada de ferro Carajás no Maranhão (Foto: Jeremy Bigwood)
A articulação que se opõe à Vale, como se vê, tem tudo a ver com a Estrada de Ferro Carajás (EFC). Foi em 1984 que o último presidente da ditadura militar, João Figueiredo, inaugurou a ferrovia, ao presenciar a partida da primeira carga de minério de ferro no maior trem do mundo – hoje com 330 vagões em média – pela linha que segue das minas de Carajás, no Pará, até o Porto de Ponta Madeira, em Itaqui (MA), em 892 quilômetros de trilhos.
Ali, um volume de minério de ferro de alto teor, com valor médio de US$ 380 milhões por dia (valores de 2011), é embarcado nos navios para abastecer os mercados internacionais. “O minério de ferro de Carajás construiu mais da metade de Xangai”, celebra mais uma voz anônima, de um brasileiro, no filme premiado. O valor embarcado diariamente já está devidamente dispensado de uma série de impostos, graças à Lei Kandir, vigente desde 1996.
A China é o maior mercado do produto mais lucrativo da Vale e o que traz maior saldo para a balança comercial brasileira, outro ponto de convergência de interesses entre o governo e a empresa. O projeto mais importante da companhia – com previsão de US$ 19,4 bilhões de investimento até 2016 – é a expansão da mineração na Província Mineral de Carajás, que além de ricas jazidas de níquel, manganês, cobre tem as maiores reservas do mundo minério de ferro de alto teor.
Curiosamente, o filme premiado da Vale traz apenas uma imagem de relance da simbólica ferrovia, hoje uma concessão pública explorada e administrada pela empresa. O Relatório de Sustentabilidade da Vale registra 23 conflitos pelo uso da terra no mundo em 2011. No Brasil, foram 14 os considerados significativos por envolver “ocupação ou bloqueio de acesso a unidade da Vale, com impacto nas operações e/ou projetos e repercussão junto às comunidades e imprensa local”.
Dez aconteceram na região de Carajás, bloqueando, pontes, estradas, e a ferrovia, para protestar contra os poluentes que vêm da mineração, o atraso em promessas de indenização e investimento em projetos sociais, mas também a falta de crédito agrícola, educação, saúde e de moradia para os despejados de terrenos públicos.
Entre os episódios descritos pela companhia estão: em Canaã dos Carajás, a PA-160, ficou sem acesso por uma noite e uma manhã, impedindo o acesso à mina de cobre do Sossego. Em Ourilândia do Norte, na Mineração Onça Puma, lavradores bloquearam todos os acessos à mina de níquel reivindicando indenização e remanejamento, além da conclusão de projetos sociais oferecidos em contrapartida pela companhia. No episódio mais grave, manifestantes puseram fogo na ferrovia em protesto pelo assassinato de um casal de líderes comunitários que denunciou a extração ilegal de carvão teve repercussão mundial – a sobrinha do casal e seu marido, ameaçados de morte, continuam no assentamento agroextrativista em Nova Ipixuna, onde ocorreu o crime.
Moradora da área rural de Canaã (Foto: Jeremy Bigwood)
No encontro entre a direção da Vale e os movimentos sociais, o assunto mais importante era a expansão da produção em Carajás, “prioridade absoluta da Vale”, como reafirmou Murilo Ferreira, sem responder às perguntas do padre Dario sobre a responsabilidade da empresa em relação ao minério que vende para fabricantes de ferro-gusa do Maranhão e Pará, acusadas de uma série de irregularidades, ou a possibilidade de rever a duplicação da Estrada de Ferro Carajás.
Em agosto, o BNDES aprovou uma parcela de R$ 3,9 bilhões para a primeira etapa do projeto de expansão em Carajás – 40 dias depois de a empresa obter a licença prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a implantação da primeira mina de ferro no lado sul da Floresta Nacional de Carajás, que exigiu oito anos de negociações com os órgãos ambientais e inovações tecnológicas para reduzir o impacto ambiental, apresentadas pela Vale em uma bonita maquete no filme premiado.
Se passar pelas próximas etapas de licenciamento, o projeto, chamado de S11D, fará a produção anual de Carajás passar de 110 milhões para 230 milhões de toneladas de minério de ferro em quatro anos. As obras de logística vão consumir US$ 11,4 bilhões para ampliar a capacidade de transporte de minério de ferro pelo corredor de exportação que vai da mina ao porto.
De Canaã dos Carajás a São Luís do Maranhão, a aceleração da ocupação do território é anunciada pelo apito do trem. As obras vão reduzir ainda mais o intervalo entre as composições que fazem de 9 a 12 viagens por dia (dados da Vale) atravessando 94 localidades habitadas por índios, quilombolas, ribeirinhos, lavradores assentados por projetos de colonização e de reforma agrária quase falidos, ou que lutam por terra nos acampamentos dos movimentos de sem-terra.
A Rede Justiça dos Trilhos atuou nos bastidores da ação civil pública movida pelo Conselho Indigenista Missionário, Centro da Cultura Negra do Maranhão e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, que resultou na paralisação das obras de duplicação da ferrovia no trecho maranhense por uma decisão liminar da Justiça Federal do Maranhão no final de julho.
A tutela antecipada que adveio da liminar justificava-se como medida de cautela diante de obras dispensadas de estudos de impacto ambiental (EIA-Rima) no processo de licenciamento do Ibama, em um território com “28 áreas de conservação ambiental”, terras indígenas e comunidades quilombolas, protegidas pela Convenção n°169 da OIT, que prevê a consulta prévia e o direito de veto de qualquer obra que possa impactar seu território.
Desde 1982, a partir de uma exigência do Banco Mundial ao financiar as obras do projeto Grande Carajás, os índios passaram a celebrar acordos de indenização e assistência com a Vale, frequentemente cobrada pelo Ministério Público Federal por não cumpri-los. Em 2006, a empresa, com o apoio da FIDH (Federação Internacional de Direitos Humanos) denunciou o governo brasileiro à Organização dos Estados Amerricanos (OEA) por destinar recursos aos índios através da União, sendo incapaz de estabelecer políticas públicas para eles.
As comunidades de remanescentes de quilombos enfrentam situação mais complicada porque só tiveram sua existência reconhecida na Constituição de 1988, o que as obriga a passar por um longo processo para provar a origem da terra onde vivem, que culmina no Relatório Técnico de Identificação (RTDI), feito pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No ano passado, a companhia pediu a impugnação administrativa dos relatórios de identificação de duas comunidades, Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, ambas no município de Itapecuru. As duas ficam no trecho de 60 quilômetros já licenciado pelo Ibama para as obras de duplicação.
O episódio foi superado por um acordo obtido pelo Ministério Público Federal do Maranhão – em março deste ano. Também foram estipuladas condições preliminares para retomar a obra: recuperação de rios e igarapés, construção de viadutos e melhoria das passagens de nível para assegurar a travessia de moradores e veículos, medição de poluição do ar e sonora, e disponibilização de R$ 700 mil, no prazo de 60 dias, para a construção de uma escola de ensino médio e um projeto de agricultura familiar.
Segundo a Fundação Palmares, há 86 comunidades remanescentes de quilombos na área afetada pela ferrovia, além de comunidades “não-tradicionais” estabelecidas nas mesmas terras da União que abrigam as operações da mineradora. “A Vale reitera o respeito à diversidade cultural, aos processos participativos e as normas vigentes e tem a Convenção n°169 da OIT como diretriz de atuação”, afirma a empresa, por meio de sua assessoria, a respeito desses embates.
Em 20 de novembro passado, a Vale obteve a licença de instalação para as obras de duplicação.
A ação civil promovida pelas entidades de direitos humanos articuladas pela Justiça dos Trilhos, segue adiante. A liminar que paralisava as obras foi revogada por recurso da Vale ao TRF, em Brasília, no mês de setembro.
Pixilinga, o peão trecheiro que chegou a Canaã
Pixilinga, e a mulher Petronílha, na Vila Planalto em Canaã (Foto: Jeremy Bigwood)
Não é difícil encontrar histórias de pessoas simples cujas vidas foram afetadas pela mineradora. O maranhense José Ribamar da Silva Costa, o Pixilinga, 53 anos, é o que se pode chamar de expert em projetos de desenvolvimento da Amazônia. Antes de se instalar em Canaã dos Carajás, município sede da nova mina de minério de ferro da Vale, ganhava a vida como “peão trecheiro, com a buroca nas costas fichando em firma pra aqui pra acolá”, como ele diz. Trabalhou na construção do Porto de Itaqui – o cais da Vale em São Luís –, na barragem de Tucuruí e na Estrada de Ferro Carajás, que o trouxe à região em 1984, quando Canaã e Paruapebas ainda faziam parte do município de Marabá.
“Cheguei em um março chuvoso, e não estavam fichando ninguém. Aí eles me disseram: ‘Rapaz, estamos dando lote de dez alqueires (50 hectares) pra quem quer trabalho’. Eu fiquei com medo. Será que os índios não vão tirar a gente daqui? E os garimpeiros?”, lembra. No sorteio lhe coube um lote de um desistente, no alto da serra. “Era uma aberturazinha na mata e um barraquinho de pau a pique e palha. O caboclo caiu fora porque uma onça correndo atrás de uma anta atravessou o barraco com um monte de menininho lá dentro, a família fez as malas e sumiu”, conta rindo.
Entre 1982 e 1985, o governo federal, por meio do Getat (Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins), assentou 1551 famílias em projetos de colonização em torno da área de mineração com o objetivo formar um cinturão de produção de alimentos e reduzir os conflitos de terra na região Bico do Papagaio – palco da Guerrilha do Araguaia durante a década de 1970. “Nos colocaram aqui como vigias, que isso não era habitado de gente não. Quando cheguei aqui, era só mata, só floresta. ‘Cabra que pegar a terra e não desmatar o lote vai ter que sair’, eles diziam”, lembra, espantando a nuvem de mosquitos que invade a varanda de sua casa em Vila Planalto, a 12 km da sede do município de Canaã dos Carajás.
Quando a produção de milho e mandioca aumentou, os vizinhos formaram uma associação, a Aproduz (Associação dos Produtores da Serra Dourada), e decidiram comprar um caminhão. Ao buscar crédito no banco, Pixilinga descobriu que eles não tinham o título de propriedade da terra colonizada. “Como assentados, a gente devia ter tomado o crédito no Procera, mas quem explicou? Os mais sabidos vieram com a oferta de um financiamento de banco, chamaram a gente de posseiro e cobraram aqueles juros”.
Foi nesse período que começou o que chama de “a perseguição da Vale”. “Eles entravam nos lotes, abrindo picão na terra de todo mundo sem explicar nada. Mas em 1997, 1998 começaram a comprar terra e botar cancela e cadeado nas nossas estradas, que eram do Incra”, indigna-se.
A vila da Serra Dourada foi extinta no processo da implantação da mina que inaugurou a produção de cobre da Vale em Carajás em 2004. Das 67 famílias que se comprometeram com o empréstimo, 29 venderam os lotes para a Vale, e os que ficaram não tinham como pagar as parcelas dos que foram embora. A dívida cresceu. “Hoje não existe mais Serra Dourada nem Aproduz, mas o nome da gente está no Serasa, no SPC por uma dívida de R$ 800 mil”, lamenta.
A Pública questionou o Incra sobre a falta de títulos de propriedade, a comercialização dos lotes dos colonos e a assistência prestada a eles. A resposta foi sucinta: “O Incra, hoje, não tem domínio sobre as terras tituladas à época do Getat, visto que os colonos já possuem título de propriedade”. Ou seja, o “mico” das 38 famílias de Serra Dourada não existe para o governo brasileiro. “Nem para a Vale, que causou o problema e ofereceu a assistência jurídica da companhia pra individualizar a dívida, o que não adianta nada”, atalha Pixilinga. Hoje presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás, ele tira o sustento de uma vendinha instalada na frente do terreno e da roça nos fundos da casa, erguidas no lote trocado com um fazendeiro, que expandia sua área para a região abandonada pelos colonizados do Incra.
Entre 2001 e 2010, a população urbana do município de Canaã dos Carajás quintuplicou, passando de 3.924 para 20.738 habitantes, enquanto a população rural caiu 14%, passando a 5.989 habitantes, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) analisados na dissertação de mestrado da pesquisadora Dalva Maria Vasconcelos dos Santos, da Universidade da Amazônia.
A guerra nos números
O maior argumento da Vale quando vai abrir um projeto são os empregos– contraditoriamente, ou não, os números mais difíceis de obter da companhia. Para começar, os números quase sempre agregam “empregados próprios e terceiros permanentes”; quando há essa separação, não são divididos por setores ou localizações geográficas.
Segundo a assessoria de imprensa da Vale, em julho de 2012, “a empresa emprega 107 mil pessoas no Brasil, entre empregados próprios e permanentes, essa cifra corresponde a 76% dos empregados da empresa no mundo”. Segundo dados do Relatório de Sustentabilidade da empresa, é possível, ainda, concluir que a Vale tem 60 mil empregados com “ contrato por tempo indeterminado”.
Quando a Pública quis saber quantos empregados da Vale trabalham nas minas de ferro, cobre, níquel e outros metais, a resposta foi: “Nos estados do Pará e Maranhão trabalham 31 mil empregados (18,5 mil próprios e 12,5 mil terceiros permanentes), além de 22,6 mil terceiros em projetos”.
Não se sabe, dessa conta, quantos trabalham em cada setor, nem quantos foram contratados nas comunidades onde a empresa atua, o que atrapalha definitivamente a compreensão da questão que atormenta os empregados das minas da Vale, da África a Carajás:
“Os números por Sistema não estão disponíveis. Em todo o Brasil, o percentual de contratação local da Vale foi de 68% em 2011. O número de membros da alta gerência provenientes da comunidade local era de 36% ao final do ano passado”.
Obviamente se a “comunidade local” é o Rio de Janeiro, sede da companhia, ou os rincões do Maranhão, os percentuais fornecidos seriam radicalmente diferentes.
Assim como são diferentes as realidades entre os países, como mostra outro item do relatório, o das ações judiciais. Ali figuram cinco ações trabalhistas no Brasil, entre elas duas em que o Ministério Público do Trabalho questiona condições de segurança em Minas Gerais e no Complexo de Tubarão. No ano passado, 11 trabalhadores da Vale morreram em acidentes de trabalho, sendo oito no Brasil.
Outra ação se refere ao pagamento de horas in itinere (gastas no deslocamento ao trabalho) aos empregados das minas de Carajás. De acordo com a Justiça de Trabalho de Parauapebas, em 2010, a empresa foi condenada a empresa a pagar R$ 100 milhões por danos morais coletivos e R$ 200 milhões por “dumping social”. Segundo o sindicato Metabase, que congrega os trabalhadores da Vale: “Os trabalhadores transportados nos ônibus fretados pela empresa recebiam por seis horas de trabalho e ficavam o dobro do tempo à disposição da companhia; um acordo está em curso”.
O mesmo relatório relata 11 ações judiciais e autuações “relevantes” no campo ambiental em 2011, sendo nove na Justiça brasileira, em quatro estados.
No total de 2011, a empresa registra a existência de 293 processos envolvendo a companhia, “136 judiciais e 157 administrativos relevantes”, mais de 90% no Brasil. As ações contra privatização (69) são seguidas por 52 ações judiciais e 145 processos administrativos que se referem à cobrança de royalties, a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), com alíquota média de 2% sobre o faturamento da empresa.
No ano passado, foram arrecadados menos de R$ 1 bilhão em royalties, em todo o país. O número aparece em estudo feito pelo professor Rodrigo Salles Santos, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Ele baseou-se em cálculos do presidente da Comissão Especial de Informática e Estatística do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Guilherme Zagallo. A Vale não divulga a informação, e o departamento de arrecadação do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) alega ser sigilosa.
A Cubatão da Amazônia
O mapa da Estrada de Ferro de Carajás é o centro das atenções no 4º Encontro Regional dos Atingidos pela Mineração, realizado no final das férias de julho na Escola Lourenço Galetti, em Açailândia (MA), uma cidade de 110 mil habitantes onde os esgotos correm nas ruas, e os moradores têm que escolher entre viver sob a fumaça das guseiras na BR-222 ou no entroncamento da Belém-Brasília. Ali também está um dos pátios mais importantes da Vale, que, além de fornecer minério de ferro às guseiras e retirar o ferro-gusa, entrega combustível e recolhe grãos.
Marcelo Carneiro da UFMA (Foto: Jeremy Bigwood)
Os cerca de 80 representantes das 20 comunidades que conseguiram chegar ao encontro – o transporte mais barato é o trem de passageiros que passa na mesma EFC, em dias alternados – são recebidos por um trio de música sertaneja e vão apresentando as localidades em que vivem, de Canaã dos Carajás a São Luís do Maranhão.
O desenho esquemático da linha férrea se transforma em um “mapa falado” dos povoados, acompanhados dos problemas que vivenciam. A discussão vai dos atropelamentos de pessoas e animais na ferrovia, ao desmatamento e assoreamento dos igarapés; da desestruturação das escolas rurais e hospitais à falta de emprego para os jovens que não veem perspectiva nos assentamentos sem crédito agrícola e não são preparados para disputar os melhores (e poucos) empregos produzidos pela mineração, tornando-se os peões das empreiteiras terceirizadas.
“O complexo-mina-ferrovia-porto se insere na rede global da produção do aço, que produz os carros, as geladeiras, os computadores”, explica o doutor Marcelo Carneiro, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), acadêmico convidado pelos organizadores do encontro. “Nós queremos que o valor produzido por essa cadeia seja incorporado pelos territórios que cedem seus recursos naturais a um modelo de exportação que se relaciona de maneira predatória com a economia regional, desestruturando as atividades econômicas locais sem criar alternativas dignas nem se preocupar com o legado”, ensina à plateia atenta que vai aumentando com a chegada dos retardatários.
Os efeitos dessa “disputa desigual pelo valor”, como diz o professor, ganham mais uma dimensão nas falas dos defensores dos direitos humanos, conselheiros tutelares, membros do Ministério Público Federal presentes à reunião: trabalho forçado na cadeia de carvão em Buriticupu (MA), exploração sexual de crianças em Açailândia, violência extremada em Marabá.
O promotor Leonardo Tupinambá, de Açailândia, é o porta-voz de um problema surpreendente para os que não conhecem o magnetismo que a Vale exerce nos rincões do Maranhão: os embarques clandestinos de crianças e adolescentes nos imensos trens da companhia, escondidos embaixo do minério de ferro carregado pelos vagões. No ano passado, o promotor de Santa Luiza (MA) moveu uma ação civil contra a Vale por descumprir “reiteradamente” o Estatuto da Criança e do Adolescente “quanto ao controle de embarque de menores, tanto em trens de transporte de passageiros quanto em trens cargueiros, de forma clandestina, aproveitando-se do fato da empresa não adotar qualquer medida de vigilância”.
Nem sempre os meninos conseguem chegar ao destino almejado, Parauapebas – que concentra o dinheiro da mineração por sediar o complexo da Vale. O município fica com 65% dos royalties advindos da mineração, o Estado do Pará com 23% e a União com 12%. “O que é produzido em Carajás tem dois caminhos: o porto de exportação e as guseiras de Marabá e Açailândia”, atalha o professor Carneiro.
“Em Minas Gerais, parte importante desse minério é beneficiada em cadeias produtivas adensadas; o estado do Pará exporta quase tudo in natura. O projeto máximo de beneficiamento que o complexo minerador pensou para essa região é o ferro-gusa que oferece empregos de baixa qualidade e cria um cenário de destruição à sua volta”, explica.
Associação de moradores de Pequiá (Foto: Jeremy Bigwood)
Uma das comunidades homenageadas no encontro é Pequiá, que se tornou símbolo mundial da destruição da Amazônia depois de um relatório do Greenpeace, que sobrevoou a região, documentando a destruição. Ali vivem cerca de 300 famílias entre as guseiras que produzem ferro-gusa com carvão vegetal e minério de ferro, vomitando poluentes no ar, nos rios, no solo. O produto é embarcado nos trens da Vale, que também fornece a matéria-prima. A Pública visitou as casinhas cobertas de poeira, cujo dano para a saúde dos moradores, a água e o solo foi constatado por um laudo da Secretaria de Meio Ambiente realizado por ordem de Promotoria de Justiça de Açailândia, que instaurou um inquérito para investigar as denúncias dos moradores e resultou em um Termo de Ajustamento de Conduta assinado em 2011. O acordo obriga o sindicato patronal das empresas, o Sifema, a transferir os moradores do local para um terreno desapropriado pela prefeitura.
Na passeata que encerrou o encontro naquele 27 de julho, a alegria estava nos rostos da juventude do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), nas palavras de ordem puxadas pela representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e nas vozes embargadas de emoção dos que há anos usam o próprio corpo para deter o trem. Eles haviam acabado de receber a notícia da paralisação das obras pela Justiça do Maranhão. Dessa vez tiveram a gentil escolta da Polícia Militar para caminhar pelas ruas e dar as mãos formando um círculo em torno da rotatória rodoviária, sem se incomodar com os caminhões pesados, bufando de impaciência contra os que bloqueiam o progresso.
Dentro da floresta, a Vale tem pressa
27 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaVista da floresta a partir da canga (Foto: Jeremy Bigwood) |
Por Marina Amaral
“Você tem um morro, coberto de floresta, depois um platô – que é onde aflora o minério de ferro – e, na vertente do platô, um vale, também coberto de floresta. Para abrir a mina, você vai desmatar esse platô – que parece pelado, mas está coberto pela canga, a savana metalófila de Carajás –, fazer uma cava, e, da terra que você tira, desmata esse vale todinho, faz uma pilha. Então, onde era vale, vira montanha, e onde era platô, vira um buraco”, explica o biólogo mineiro Frederico Drumond Martins, funcionário do Instituto Chico Mendes (ICM-Bio) e há cinco anos gestor da Floresta Nacional (Flona) de Carajás.
A paisagem que serve de exemplo para a rápida lição sobre o impacto da mineração na serra de Carajás se avista da estrada asfaltada que vai da cidade de Parauapebas à área das minas da Vale S/A dentro da floresta. Nesses 411.949 hectares de terras federais – distribuídos entre os municípios de Parauapebas e Canãa dos Carajás – convivem o maior complexo mineral do mundo, com reservas estimadas em 18 bilhões de toneladas de minério de ferro de alta qualidade, além de jazidas de manganês, cobre, níquel, ouro e outros minerais, e uma unidade de conservação “de extrema importância para a conservação da biodiversidade brasileira”, de acordo com o Mapa de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente.
A riqueza de espécies reflete a transição entre os biomas da Amazônia e do Cerrado nessa variedade de relevos e solos cortados por igarapés e cobertos pelas florestas tropicais úmidas (ombrófilas) da Amazônia – que ali abrigam castanheiras de 50 metros de altura, maçarandubas e outras madeiras de lei e são entremeadas por florestas secas e palmeirais nas encostas dos morros. Nos platôs, que chegam a 900 metros de altitude, abrem-se as clareiras de savana metalófila (canga hematítica), uma vegetação que cresce sobre as jazidas de ferro e que, na região amazônica, só existe ali. Um levantamento recente da fauna da Flona Carajás, feito pela Vale e o ICM-Bio, encontrou 945 espécies de vertebrados, sem contar os peixes, e uma das avifaunas mais ricas do país, com 545 espécies, diversas ameaçadas de extinção.
O principal objetivo do decreto que criou a unidade de conservação em 1998, porém, era garantir à recém-privatizada Vale “o uso de todas as terras da União com portarias de lavra registradas desde 1969”, ou seja, a concessão de todas as jazidas de minério de ferro e de lavras de manganês, minério de cobre, níquel e ouro dentro da Flona Carajás. De acordo com o Plano de Manejo de 2003, um quarto da unidade – 104 mil hectares – é zona de mineração, incluindo toda a área de canga, que ocupa 5% do total da área ainda preservada.
O melhor minério do mundo extraído de Carajás (Foto: Jeremy Bigwood)
Em contrapartida pela exploração das jazidas dentro da unidade de conservação federal, administrada pelo ICM-Bio desde 2007, a companhia assumiu a responsabilidade de preservar todo o cinturão de áreas protegidas que compõem os 8.073 km² do Mosaico de Carajás – metade disso ocupada pela Flona de Carajás e a outra metade pelas Flonas Itacaiúnas e Tapirapé-Aquiri (onde a Vale pesquisa tântalo, cobre, estanho, ouro, minério de ferro e níquel e ainda extrai cobre das minas de Salobo, no município de Marabá), além da Reserva Biológica de Tapirapé e da Área de Proteção Ambiental do Igarapé Gelado.
Entre 2005 e 2009, de acordo com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação, a Vale foi autuada nove vezes pelo Ibama por infrações ambientais cometidas dentro da área que deveria ajudar a proteger. Às vésperas de a Vale implantar o seu maior projeto em Carajás, a convivência entre ambiente e mineração ali está longe de estar bem resolvida.
Em junho deste ano, depois de oito anos de negociações com os órgãos ambientais, a Vale conseguiu obter a licença prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para o projeto S11D, a primeira mina de ferro na Serra Sul da Floresta Nacional de Carajás, planejada para entrar em operação em 2016. Em quatro anos, a produção anual de minério de ferro de Carajás vai passar dos atuais 110 milhões de toneladas para 230 milhões de toneladas de minério de ferro. O projeto – com investimento de US$ 8 bilhões para a abertura da mina e US$11,4 bilhões para obras de logística para escoar a nova produção – ainda depende de outras licenças (de Instalação e Operação) para ser implantado.
Minerando na floresta: uma cratera é uma cratera
Frederico Drumond Martins, gestor da Flona, mostra a barragem de resíduos (Foto: Jeremy Bigwood)
Percorremos 140 quilômetros de estradas dentro da Flona no jipe Mitsubishi 4×4 do ICM-Bio, observando três das quatro minas em operação na Serra Norte, a partir dos mirantes suspensos sobre as cavas, e passeando pela natureza quase intocada da Serra Sul. A Vale não estava disposta a mostrar sua área de produção aos jornalistas da Pública: embora nossa visita tivesse programada com antecedência de um mês, a assessora de imprensa que nos recebeu disse que a ida às minas estava cancelada por “falta de escolta” e nos levou para ver as antas, araras, macacos e onças que vivem nos recintos do Parque Zoobotânico – o zoológico, como é conhecido pela população de Parauapebas, que abriga 260 animais resgatados pela fiscalização dos órgãos ambientais.
Atualmente a companhia ocupa menos de 4% do território (13 mil hectares), principalmente na porção norte da Serra de Carajás, onde ficam as três minas de ferro – N4E, N4W e N5, abertas em 1984, 1994 e 1998, respectivamente. No ano passado, as três minas produziram 109,8 milhões de toneladas de minério de ferro, um terço de toda a produção brasileira, equivalentes a cerca de US$ 13 bilhões.
A operação funciona 24 horas por dia e, na virada dos turnos (são três), as estradas ficam tomadas pelos ônibus que trazem os operários de Parauapebas. A Vale não informa o número de trabalhadores das minas – estimados entre 10 mil e 20 mil (incluindo os que atuam para 35 empresas terceirizadas) pela Justiça do Trabalho de Parauapebas. Em 2010, por sinal, a companhia foi condenada a pagar aos operários R$ 100 milhões de reais de indenização por danos morais e R$ 200 milhões por dumping social pelas horas perdidas no itinerário, que não eram computadas nas jornadas de oito horas diárias – a companhia recorreu do valor, e um acordo está sendo negociado.
As estradas com trânsito pesado e as linhas de energia que servem ao complexo minerador são os impactos ambientais mais visíveis antes de chegar às cavas de onde se extrai o minério, cercadas por pilhas de estéril (a terra que sobra da extração de minério) que transformam platôs em buracos e vales em montanhas, como descreveu o gestor da Flona.
Um quarto da Flona é zona de mineração (Foto: Jeremy Bigwood)
Do mirante da N5, uma estrutura de madeira suspensa na imensa cratera cor de chocolate – a mais nova e mais produtiva –, parecem de brinquedo as escavadeiras de 80 toneladas de peso e as pás carregadeiras que trabalham dentro da cava, assim como os caminhões de 8 metros de altura com capacidade para transportar 400 toneladas de terra.
No fundo do vale fica a barragem de resíduos da mineração em um dos braços do rio Parauapebas; embora esses resíduos não sejam tóxicos (como ocorre no caso da mineração do cobre), assoreiam o rio. A barragem reduz a sedimentação, mas provoca uma interferência significativa nos cursos d’agua e em seu entorno, principalmente na época das chuvas. “A mineração tem um grande efeito no sistema hídrico, porque, além de usar muita água no beneficiamento do minério (que depois será bombeada para o rio e contida pela barragem), para minerar você tem que drenar as jazidas, que são um aquífero poderoso”, destaca o gestor da Flona. Comunidades rurais visitadas pela Pública, como a Vila Bom Jesus e a Vila Planalto, queixam-se de enchentes que inundam as casas e matam os animais desde a implantação de uma mina de cobre – a Mina do Sossego – em 2004, do lado de Canãa dos Carajás.
Passamos pelas estruturas de suporte operacional das minas – oficina, central de resíduos, refeitórios para empregados, estação de tratamento de água, central de inteligência – e avistamos a usina de beneficiamento, onde o minério é lavado, classificado de acordo com o tamanho, britado e peneirado. Nesse estado quase bruto, é transportado pela Estrada de Ferro Carajás por 892 quilômetros até o porto de Ponta de Madeira, o terminal marítimo da Vale em São Luís do Maranhão, de onde é exportado para a China e outros países da Ásia, principalmente.
A cava N4E, que visitamos a seguir, é a mais antiga de Carajás e impressiona pela profundidade vertiginosa e pelo movimento bem menor de máquinas e caminhões – conforme a extração avança, vai entrando mais fundo atrás do corpo do minério, o que torna a exploração menos lucrativa.
Quando o Projeto Grande Carajás foi instalado, nos anos 80, os militares falavam em 500 anos de recursos minerais ali. Ao ritmo de 100 milhões de toneladas por ano, crescendo para 230 milhões a partir de 2016, as reservas devem se exaurir antes no final do século, segundo calcula o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, que há mais de 30 anos pesquisa a mineração em seu estado. “Carajás levou 15 anos para produzir os primeiros 500 milhões de toneladas de minério de ferro. Outros 500 milhões foram alcançados nos sete anos seguintes — em menos da metade do período anterior, portanto. Esse mesmo volume foi registrado nos últimos cinco anos. E, com a entrada em operação da nova mina, ao sul da atual, a produção de 500 milhões de toneladas será batida a cada três anos. Significa dizer que a produção acumulada de Carajás chegará a dois bilhões de toneladas em quatro anos, e os 18 bilhões de reservas terminarão 80 anos depois”, explica.
A canga de Carajás: o obstáculo para explorar a Serra Sul
Dizem que foi ao avistar as manchas de canga no topo dos morros, em 1967, a bordo de um helicóptero da US Steel – a sócia norte-americana da então estatal Companhia Vale do Rio Doce –, que o geólogo Breno Santos descobriu a presença de ferro na Serra de Carajás, a maior província mineral do mundo. Vista como uma cobertura vegetal rala que só tinha importância por sinalizar a presença de minério, a canga de Carajás começou a ter seu valor para a biodiversidade reconhecido a partir de 2004, quando a Vale passou a realizar estudos sistemáticos sobre o ecossistema a partir de uma exigência do Ibama na renovação da concessão das minas da Serra Norte.
Canga de Carajás (Foto: Jeremy Bigwood)
Desde então, a subestimada vegetação vem revelando alto grau de endemismo (espécies que só existem ali) de seus habitats únicos – os campos brejosos de arroz selvagem, rodeados de babaçus e uma profusão de cavernas entre lagoas doliniformes permanentes (depressões rochosas que acumulam água de chuva).
Os estudos sobre “a área mínima de canga”, como são chamados, estão sendo concluídos agora, o que retardou a abertura da mineração na intocada Serra Sul – com reservas de 10 bilhões de toneladas de minério de ferro. A ideia inicial da Vale era obter o licenciamento ambiental para explorar toda a jazida, mas, depois de quatro anos de negociações infrutíferas com os órgãos ambientais, a companhia apresentou ao Ibama, em 2008, a versão atual do que será “o maior projeto da companhia”, segundo seu material promocional: a exploração de um dos quatro blocos – o “D” – do corpo mineral 11, na Serra Sul (daí a denominação dada pelos geólogos, S-11-D).
Até obter a licença prévia do Ibama, em junho deste ano, o projeto passou por mais cinco anos de alterações – incluindo o desenvolvimento de um novo sistema de lavra e beneficiamento do minério para reduzir o impacto ambiental.
Embora a produção da multinacional brasileira em Minas Gerais, estado onde a empresa nasceu, ainda seja maior do que a do Pará, Carajás é o polo em expansão porque tem maior potencial de reservas e oferece minério com teor de ferro acima de 66% (o de Minas tem pureza em torno de 53%). “Sempre vai ter mercado para Carajás, a nossa vantagem competitiva é a qualidade do minério”, afirma Jamil Sebe, o diretor do Projeto Ferrosos Norte da Vale, quando questionado sobre a conveniência de investir US$ 19,4 bilhões no projeto S11D em um momento de baixa dos preços e crise da indústria siderúrgica internacional.
Espécies endêmicas da Serra Sul (Foto: Jeremy Bigwood)
Para o diretor, o projeto S11D merece o “aval da sociedade” pelas inovações tecnológicas que apresenta: o sistema de lavra truckless, que substitui os caminhões por correias transportadoras e equipamentos modulares para levar o minério da mina à usina – localizada fora da Floresta Nacional de Carajás, em área de pastagem, onde também serão despejadas pilhas de estéril –, e um processo de beneficiamento do minério com uso da umidade natural, que promete economizar 93% da quantidade de água utilizada.
“Adotamos um sistema de peneiras, fruto de dois anos de pesquisa, que permite a lavagem do minério a seco. Mas isso não pode ser usado em todas as minas. É a granometria do minério da Serra Sul que permite que ele passe na tela”, explica, contabilizando uma redução de 77% de combustível e 50% dos gases estufa com o novo sistema de lavra.
Apesar do entusiasmo do porta-voz da Vale, os documentos do processo de licenciamento ambiental da S11D mostram que as mudanças não foram espontâneas. Segundo os estudos de impactos ambientais (EIA-Rima) apresentados em 2010, o sistema de lavra era o mesmo da Serra Norte, e sacrificaria 2.591 hectares de vegetação – entre floresta e canga – e dezenas de cavernas, além de destruir as lagoas do Violão e do Amendoim – que representam 45% das superfícies lacustres da Serra Sul, desempenham função ecológica importante para a fauna e apresentam “grande beleza cênica, com potencial turístico”, outro atributo para ser considerada área de preservação, segundo o Plano de Manejo.
Em parecer técnico de julho de 2011, o Ibama considerou que os cinco volumes do EIA-Rima não forneciam “subsídios para avaliar a viabilidade ambiental do projeto” e solicitou novos estudos. Três meses depois, a Vale protocolou quatro volumes de informações complementares, incluindo um capítulo “Melhorias/Meio Físico”, em que propunha o sistema de lavra truckless e a locação de pilhas de estéril fora da Flona, poupando “207 hectares de savana metalófila, 63 hectares de floresta estacional decidual (floresta seca) e 806 hectares de floresta ombrófila, uma redução da interferência em ambientes naturais da ordem de 43%”, segundo parecer do Ibama. A cava também foi redesenhada para respeitar o perímetro de 250 metros das cavidades de “máxima relevância” (cavernas protegidas por lei por sua importância espeleológica, arqueológica e/ou biológica), e preservar as lagoas do Violão e do Amendoim.
O mesmo parecer do Ibama, porém, considera o projeto insuficiente para preservar as lagoas do Violão e do Amendoim, por impactar o entorno, alterando a absorção das águas da chuva, e reforça a importância de preservar “espécies novas para a ciência, registradas exclusivamente no Corpo S11D e localizadas nas margens das lagoas perenes, ao alcance das áreas que sofrerão o chamado efeito de borda (até 500 metros)”.
A disputa entre as exigências ambientais e os interesses econômicos atingiu o impasse em maio deste ano, um mês antes da Licença Prévia do Ibama, quando a Vale apresentou sua resposta ao parecer técnico do Ibama. No item “Abordagem aos Aspectos da Viabilidade Econômica do Projeto Ferro Carajás S11D”, a empresa afirmou: “As perdas de reserva de minério de ferro, em decorrência da obrigatória manutenção dos perímetros de proteção das cavidades de relevância máxima e as áreas de contribuição das Lagoas do Violão e do Amendoim, representariam uma redução das reservas da ordem de 1,85 bilhão de toneladas de minério de ferro explotáveis, resultado que corresponde a 52% de toda a reserva. Tal fato representaria o comprometimento da viabilidade econômica do Projeto S11D”.
Quanto valem as Lagoas da Serra Sul?
“Aqui onde vocês veem essas palmeirinhas é um buritizal, um terço de todos os buritizais da Flona estão aqui, no bloco D”, explica o gestor da Flona, quando descemos do jipe para conhecer uma parte da área ameaçada pelo S11D. O buritizal ficam em torno de um brejo, na verdade um campo de arroz nativo, “de grande relevância alimentar para aves e pequenos roedores”, como descreve um dos pareceres técnicos do ICM-Bio.
“As consultorias contratadas pela Vale para fazer os levantamentos de flora já encontraram dez espécies novas na Serra Sul, oito no corpo S11, e três que só existem aqui, no bloco D. E ainda há coisas a descobrir”, conta Frederico Drumond, enquanto caminhamos pela canga, povoada de bromélias e cactos.
Passamos pela Cachoeira do Peladão, uma formação rochosa de altura impressionante, completamente seca no verão amazônico, e, alguns metros adiante, avistamos as águas azuis perenes – que chegam a 14 metros de profundidade – na lagoa de pedra, batizada de Cachoeira do Violão, por causa do desenho de seu contorno. Os moradores dos sítios e povoados próximos preferem chamá-la de Lagoa da Dina, em homenagem a uma das mais carismáticas guerrilheiras do Araguaia. Nos anos 70, a guerrilha ocorreu na mesma mesorregião de Carajás, o Bico do Papagaio.
A lagoa da Dina corre risco (Foto: Jeremy Bigwood)
Bem perto da lagoa, já está montada uma pequena infraestrutura para dar início ao projeto: torre de energia elétrica, alojamentos de madeira para os funcionários terceirizados responsáveis pelas sondagens minerais. “Tudo isso vai ter que sair daqui”, diz o gestor da Flona Carajás, referindo-se à distância obrigatória de 500 metros entre a área de produção e a lagoa que consta da autorização do ICM-Bio, emitida junto com a Licença Prévia do Ibama. As exigências expressas nos dois documentos têm de ser cumpridas até o requerimento da Licença da Instalação.
A reportagem da Pública apurou, porém, que a Vale não terá necessariamente que respeitar essa distância. Depois da alegada “inviabilidade econômica do projeto” por conta das restrições ambientais, uma série de reuniões entre os órgãos ambientais, representantes do governo federal e mineradora resultou em um acordo expresso na Licença Prévia do Ibama: a companhia poderá apresentar estudos concluindo que a proteção de 500 metros no entorno das lagoas não é imprescindível para preservar sua integridade e funcionalidade ecológica.
Sem admitir o acordo, ICM-Bio e Ibama afirmam que é aparente a divergência entre os documentos da licença prévia emitidos pelos dois órgãos. Ambos aguardam as análises da companhia para decidir quanto ao seguimento do processo de licenciamento ambiental. “As lagoas serão preservadas, o que está em estudo é a necessidade da preservação do seu entorno em 500 metros”, explicita mensagem enviada pela assessoria de imprensa do Ibama.
“Nós vamos cumprir todas as condições do Ibama, mas ainda não completamos os estudos”, diz o porta-voz da Vale, Jamil Sebe, ressalvando não acreditar na “inviabilidade econômica do projeto”. Questionado sobre o que fará a companhia se for obrigada a reduzi-lo, respondeu: “Nesse caso ainda temos o bloco A, B, C. A Serra Sul tem 120 quilômetros, o bloco D tem 9 quilômetros”.
O que significaria, porém, o início de um novo processo de licenciamento e um atraso dos planos – que aparentemente não interessa também ao governo brasileiro, em luta para retomar o crescimento econômico diante da crise mundial? O minério de ferro é o principal produto de nossa balança comercial, hoje, e responde por cerca de 10% das exportações do país.
Que futuro aguarda as minas de Carajás?
De acordo com o relatório da Vale para a Bolsa de Nova York – chamado de F-20 –, em 2021, a mina N4E estará esgotada. As outras duas minas da Serra Norte – N5 e N4W– têm datas de exaustão previstas para 2027 e 2037, respectivamente. Para o projeto S11D, na Serra Sul, a previsão de exaustão é de 39 anos, segundo Sebe – 2055, portanto, se se mantiver o cronograma da empresa.
A mina mais produtiva da Vale se esgota em 2037 (Foto: Jeremy Bigwood)
As antigas cavas terão de ser fechadas, e o ambiente, recuperado, segundo a legislação brasileira. Não há, contudo, precedentes para que se saiba o que vai acontecer com a área degradada. Em Minas Gerais, onde atua desde seu início, há 70 anos, a Vale anuncia um projeto de recuperação da mina de Cauê, no Complexo Itabira, que estaria sendo feito “em sinergia” com as demais minas do complexo – Conceição e Minas do Meio – aproveitando-se a pilha de estéril e os rejeitos da unidade de tratamento de minério para preencher a antiga cava.
O fechamento teria que ser acompanhado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral a partir de comunicações da companhia que, segundo o órgão, nunca foram feitas. Ou, esse processo não está sendo fiscalizado, como se percebe pela resposta obtida pela Pública por meio da Lei de Acesso à Informação: “Prezada Senhora Marina, até onde temos conhecimento a Vale nunca nos apresentou um ‘comunicado de fechamento de mina’, mas para ter certeza desta informação teríamos que ler integralmente as centenas de processos que a Vale possui no DNPM/MG, o que é totalmente inviável na prática, isto é, impossível de ser realizado. Aproveito para dizer que, de acordo com a Portaria 201/2006 do Diretor Geral do DNPM, os processos do DNPM são sigilosos, tendo acesso aos mesmos apenas os titulares e seus procuradores e eventualmente pessoas que comprovem serem interessadas, devendo ser comprovada esta condição de acordo com art. 3º da citada Portaria. Atenciosamente, Geól. Paulo Ribeiro de Santana”
Chico Buarque em: O Maraca é Nosso
26 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaVocê sabia que o governo do estado tá querendo vender o Maracanã pro Eike Batista em uma das transações mais criminosas da história?
>> https://www.facebook.com/events/487508294628007/
É um escândalo: desde 1999, foi investido cerca de R$ 1,5 BILHÃO de nosso dinheiro no Maraca. O projeto que querem aprovar foi feito pela empresa do próprio Eike Batista e prevê que, ao fim de 35 anos, o empresário não pague de volta nem 20% disso! Não daria nem pra pagar os juros dos financiamentos feitos para as reformas. Em compensação, o sr. Eike espera ter um lucro de cerca R$ 3 BILHÕES!
Mas não é só isso: o projeto ainda prevê as DEMOLIÇÕES do Estádio de Atletismo Célio de Barros, do Parque Aquático Júlio Delamare, da Escola Municipal Friedenreich e do prédio histórico do antigo Museu do Índio. No lugar, Eike Batista quer construir estacionamentos e shopping centers! Atletas olímpicos e paraolímpicos ainda não sabem onde iriam treinar. Jovens, crianças, idosos e deficientes físicos atendidos por projetos sociais ficariam a ver navios. Os indígenas, antropólogos, historiadores e arquitetos que defendem o Museu do Índio também. E os alunos, pais e professores perderiam uma das dez melhores escolas públicas de ensino fundamental do país. Ou seja: em lugar de equipamentos de uso esportivo, social e cultural, espaços para que o multibilionário amigo do governador ganhe mais dinheiro!
Mas o Maraca não é shopping e a gente não é bobo! Vamos pra rua mostrar o Maraca que queremos: um parque PÚBLICO que sirva ao esporte, à saúde, ao lazer, à cultura e à educação da população, e não a interesses de grupos empresariais.
NÃO ACEITAMOS A DEMOLIÇÃO do Julio Delamare, do Celio de Barros, da Escola Municipal Friedenreich e do prédio do Museu do Índio. Queremos um estádio com SETORES POPULARES e ingressos a preços acessíveis para todos após a Copa.
SÁBADO, DIA 1º, DE MANHÃ -- DA PRAÇA SAENS PEÑA AO MARACA
Mas o Maraca não é shopping e a gente não é bobo! Vamos pra rua mostrar o Maraca que queremos: um parque PÚBLICO que sirva ao esporte, à saúde, ao lazer, à cultura e à educação da população, e não a interesses de grupos empresariais.
NÃO ACEITAMOS A DEMOLIÇÃO do Julio Delamare, do Celio de Barros, da Escola Municipal Friedenreich e do prédio do Museu do Índio. Queremos um estádio com SETORES POPULARES e ingressos a preços acessíveis para todos após a Copa.
SÁBADO, DIA 1º, DE MANHÃ -- DA PRAÇA SAENS PEÑA AO MARACA
Viagem a Canaã
26 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaNo Pará, a caminho do “maior projeto da história da Vale”, nossa equipe mostra a região onde tudo “tem, mas não está tendo”: empregos, royalties e desenvolvimento
Por Marina Amaral
Marabá é a porta de entrada da Amazônia que aparece nos cadernos de Economia dos jornais, não nos de Turismo. Essa é a primeira lição para não se decepcionar com a paisagem do hotel, ao lado do aeroporto, em plena rodovia Transamazônica. Entre postos de gasolina e serrarias, à margem da estrada, meia dúzia de hotéis oferecem ar condicionado, internet e um serviço feito por jovens simples metidos em uniformes “internacionais”, que chocam no verão amazônico. A chuva que nos recebeu na manhã de 14 de julho, foi a última da temporada, e tardia.
A alegria da cidade é o rio Tocantins, a orla de restaurantes que servem tambaquis, filhotes e tucunarés imensos, cozidos ou assados em óleo de palmeiras e ervas – e aos domingos reúne os que se esbaldam nas praias e bancos de areia ou participam das competições de pescaria, a única atividade que atrai turistas para lá.
A maioria dos visitantes vem em busca de negócios: a cidade de 233 mil habitantes oferece mais de 60% de empregos no setor de serviços e comércio que gira em torno das atividades econômicas da região: fazendas de gado, empreiteiras e, a 150 quilômetros dali, o complexo de mineração da Vale S/A na Província Mineral de Carajás – que exporta cerca US$ 13 bilhões anuais do melhor minério de ferro do mundo, além de níquel, cobre, manganês.
São 110 milhões de toneladas de minério de ferro extraídas da Floresta Nacional de Carajás por ano. Segundo propagandeia a Vale, foi com esse metal que se ergueu mais da metade de Xangai, na China – o principal importador de minério. E a companhia pretende dobrar a produção em quatro anos: em junho deste ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu a licença prévia para o “maior projeto da história da Vale”, a mina S11D, com investimento de US$ 19,4 bilhões entre abertura de mina e obras de logística para escoar a produção.
John Lennon, recepcionista do hotel, usa a moto para ir do trabalho à faculdade de administração, o que diz ser melhor do que usar os ônibus precários para circular pelo complexo rodoviário assustador que funciona como malha urbana em Marabá – uma característica de muitas cidades que visitamos na viagem.
Entre Marabá e Novo Repartimento, também no Pará, ficam os únicos 63 quilômetros contínuos de asfalto dos 4.226 quilômetros da Transamazônica, que se não conseguiu “unir o Brasil”, como queriam os militares nos anos 70 e 80, mudou para a sempre a vida dos que viviam nos povoados e aldeias alcançados pelas escavadeiras.
Localizada no ponto da confluência de três rios – Araguaia, Itacaúnas e Tocantins –, o complexo rodoviário de Marabá ergue-se sobre os resquícios dos castanhais ocupados por fazendas nos anos 1950, transformando em trabalho forçado a coleta tradicional dos ouriços da castanha-do-pará de caboclos e índios. As pontes e os viadutos dividem os bairros que brotaram dos sucessivos ciclos das fazendas de gado e da mineração a partir de Marabá velha, à beira do Tocantins. No povoado, surgiam os bordéis e as vendas que abasteciam o garimpo nos afluentes dos rios, nos grotões e nas serras.
Foram os garimpeiros que descobriram o tesouro primeiro e, incentivados pelo governo da ditadura, retiraram com as próprias mãos 30 toneladas de ouro (número oficial – estima-se que pode ser muito mais) de Serra Pelada. Hoje, o tesouro está nas mãos de uma mineradora canadense, no município de Curionópolis, sinistramente batizado em homenagem ao major da ditadura que conquistou o direito de disciplinar o formigueiro humano e colher parte da riqueza depois de caçar e matar os últimos guerrilheiros do PCdoB no Araguaia em 1972.
A perda do território que concentrava a maior parte da riqueza mineral foi uma imposição que surgiu a partir do Projeto Grande Carajás – que, nos anos 80, implantou-se definitivamente nas terras da União, ordenado a partir do complexo mineral de exportação da Companhia Vale do Rio Doce.
Em 1987, dois anos depois de a primeira carga de minério de ferro partir da mina escavada na Serra de Carajás pelos trilhos da Estrada de Ferro Carajás e ser embarcada no Terminal de Ponta Madeira, em Itaqui, litoral do Maranhão, o território da Vale na Serra de Carajás passou a se chamar Parauapebas – hoje, o munícipio que tem o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) de Pará (R$ 5,6 bilhões), atrás apenas da capital, Belém.
Os royalties de mineração não chegaram a quem lhes abriu a porta, e hoje Marabá é a cidade mais violenta do Pará, e a terceira mais violenta do Brasil, com 120,5 homicídios por 100 mil pessoas, quatro vezes a taxa nacional, segundo o Mapa da Violência 2012.
A índia esquartejada
Marabá vive uma crise econômica com a baixa do mercado de ferro-gusa. A principal indústria local, baseada no minério de ferro, oferece poucos empregos e de baixa qualidade. O sonho de abrir uma siderúrgica, a Alpa (Aço Laminados do Pará), para verticalizar a produção, parecia próximo a se realizar quando, em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a inaugurar com grande pompa o canteiro de obras da “siderúrgica da Vale”. Em outubro, o projeto foi definitivamente engavetado pela mineradora. Como diz o comerciante Eliomar Freitas, que transferiu sua peixaria de Belém apostando no crescimento da cidade: “Depois de 30 anos tirando minério, em Marabá não tem uma fábrica de faca para o sujeito se matar”.
A cidade com nome de índia assistiu impotente ao progressivo esquartejamento de seu território, perdendo o direito também sobre os vales em que às pastagens griladas se uniram as doadas pelos militares para paulistas, cariocas, mineiros, gaúchos – rodeadas por projetos estatais de colonização que sorteavam lotes de dez alqueires a agricultores familiares que perdiam a terra no Pará, Goiás, Bahia, Maranhão, Piauí.
Paisagem da estrada PA-150 (Foto: Jeremy Bigwood)
À sombra das árvores centenárias, de nomes bonitos como maçaranduba, mogno, angico e a insuperável castanheira, coroada pelo ninho do gavião real, travou-se novamente o conflito pelas terras da União. Enquanto os índios e os coletores de castanha e jaborandi se espremiam na mata cortada pelos igarapés, as balas dos pistoleiros (muitos, ex-garimpeiros) derrubavam colonos e sem-terra que se multiplicavam no rastro dos canteiros de obras da rodovia PA-150, construída pela Vale durante a instalação do complexo de Carajás, na virada da década de 70 para 80, e hoje uma rodovia estadual.
Ao norte, margeando o Tocantins em direção a Belém, seguindo as linhas de transmissão de energia da Usina Hidrelétrica do Tucuruí, os municípios ganharam nomes como Nova Ipixuna, Goianésia, Tailândia, que hoje aparecem nas buscas do Google como endereço comercial de carvoarias e serrarias ou como foco dos relatórios internacionais de violações de direitos humanos. Foi a 70 quilômetros de Marabá – no Assentamento Agroextrativista de Piranheiras do Alto, em Nova Ipixuna –, que, no ano passado, ocorreu um dos crimes recentes de maior repercussão mundial: o assassinato de um casal de líderes comunitários por pistoleiros contratados por grileiros vizinhos, que queimavam carvão nos lotes dos assentados.
Ao sudoeste, no vale em que o Itacaúnas estende seu braço para formar o Parauapebas, ficam Curionópolis e Eldorado dos Carajás. Ali, 19 troncos de castanheira queimados, formando o mapa do Brasil, lembram as vítimas do massacre de sem-terra pela Polícia Militar de Parauapebas, ocorrido em 1996, durante um protesto em que exigiam as terras prometidas por sucessivos e fracassados projetos de reforma agrária – que deixaram um rastro de miséria, desmatamento e violência, do governo militar ao governo do PT.
É nesse ponto que a PA-150 desvia para o Sul em direção ao Eldorado real: Parauapebas e Carajás, as duas cidades que a Vale ergueu escavando a Floresta Nacional de Carajás. É para lá que vamos, com a intenção de descer um pouco mais ao sul para conhecer o novo projeto da Vale – este, sediado na pequenina Canaã dos Carajás, a 70 quilômetros de Parauapebas, prestes a completar 18 anos de idade.
De Marabá a Parauapebas, a cidade que hoje sedia o complexo minerador, a paisagem surpreende pela desolação: essa é a região mais desmatada do Pará. Nas pastagens quase vazias, as cabeças de boi se alternam às faixas de plantações de palmeiras de açaí e buriti – a mesma folha que cobre as casas de plástico preto, humanizadas pelas crianças que correm em direção ao banho no igarapé. Há 12.068 famílias assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nos municípios de Marabá, Eldorado dos Carajás, Curionópolis e Parauapebas e três vezes esse número esperando terra em acampamentos, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Acampamento do MST na estrada PA-150 (Foto: Jeremy Bigwood)
“Tem, mas não está tendo”
Os buracos imensos no asfalto precário exigem a atenção do motorista, que disputa espaço com caminhões de gado, combustível, peças de escavadeiras, tratores, sucata e carvão ou cobertos por logotipos de supermercados e lojas de varejo que abastecem os 153 mil moradores do “Peba”, como dizem maranhenses, piauienses, paraenses, goianos e baianos que saem de casa cedinho uniformizados. A sensação é de que toda a população que embarca nas vans – o único meio de transporte público coletivo – usa crachás de empreiteiras e firmas de limpeza.
Mais do que precário, como quase tudo por ali, me conta a “pioneira” Maria Aparecida Alves de Oliveira, 39 anos, camareira de um dos hotéis que cobram R$ 200 de diária e que oferecem de tudo, mas onde falta tudo também. “Tem, mas não está tendo” é a resposta singela que se ouve em toda parte quando se tenta comprar qualquer coisa – a não ser o cigarro e a cerveja, vendidos pelo dobro do preço nos quiosques do espaço coletivo de lazer, os canteiros centrais da PA-150 onde o funk dos jovens (52% da população têm menos de 29 anos) disputa espaço com a música sertaneja dos pioneiros, entre as buzinas de caminhão.
Falta até água, apesar da abundância hídrica da região, que se mostra aos olhos nas curvas do rio Parauapebas, o “Sebosinho”, como o chamam hoje os que ali se divertiram na infância, silenciando ressabiados quando passava uma onça. Mais de 87% das residências não têm saneamento básico, e a água suja corre pelas ruas.
Cida com rio Parauapebas ao fundo (Foto: Jeremy Bigwood)
O pior, porém, diz Cida, é a falta de ônibus – só os que trabalham para a Vale embarcam nos fretados que entopem a cidade na troca de turnos. Os outros dependem das tais vans, liberadas sem maiores exigências pela prefeitura, de acordo com a TV Parauapebas, que comenta um caso ruidoso, ocorrido três dias antes de nossa chegada: mototaxistas que protestavam pela morte de um colega atropelado por uma van botaram fogo nos canteiros e nas latas de lixo, provocando um tumulto em que obtiveram o apoio da população.
“Eles tratam que nem bicho, xingam de cachorra quando a gente, quase sem respirar já, diz que não tem espaço pra mais um, e ainda dirigem que nem uns loucos”, conta.
E olha que Cida não é mulher de se assustar fácil. Aos sete anos veio com a mãe e os irmãos do interior de Goiás em busca do pai garimpeiro. Ele andava por um grotão em Curionópolis, que ainda se chamava Garimpo dos 30. Com nove anos, foi estudar em Rio Verde, a vila que se tornaria Parauapebas conforme crescia entre peões de obra da Estrada de Ferro Carajás e os garimpeiros que queriam viver com a família – na Serra Pelada não entrava mulher, o bordel ficava um quilômetro acima.
Enquanto o “Peba” era ordenado em lotes urbanizados pela Vale para apaziguar a bagunça dos peões, e o núcleo residencial de Carajás se instalava no alto da serra para abrigar técnicos e engenheiros que vinham de fora, Cida engravidou, aos 13 anos, do primeiro dos cinco filhos: hoje rapazes que trabalham em empreiteiras e moças que fazem faxina nas “terceirizadas”, com exceção da mais nova que passou no “treininho da Vale”, ela diz – o programa de Formação de Mão de Obra que a empresa toca junto com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), primeira etapa para conquistar a cobiçada “camisa verde-mata” da empresa, que garante carteira assinada e participação nos lucros aos que cumprem as metas. A cor verde foi adotada em 2010 em substituição à tradicional “marrom-minério”.
“Ela agora está mais perto de ter um futuro”, Cida me diz. “Essas obras vão e vêm, um dos meus filhos está em Belo Monte, agora, passando aquele aperto nas confusões por lá”, comenta ela, em referência aos protestos de trabalhadores contra o Consórcio Norte Energia, responsável pela obra, em que a Vale tem 9% de participação.
Basta um número para explicar a alegria da Cida com o sucesso da caçula: a Vale tem “31 mil empregados – entre próprios e terceiros permanentes” nos estados do Pará e do Maranhão, segundo a assessoria de imprensa da companhia. Os demais interessados em trabalhar para a Vale têm que se ajeitar nas terceirizadas ou no crescente setor de serviços, como fez Ivo, da lan house Matrix, depois de “cansar de lavar peneira de minério nas terceirizadas”, ele me diz, em mais um dos dias em que a Internet “não estava tendo”.
E por que tanta carência, prefeito?
Os royalties da mineração (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais – CFEM) e a cota-parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS (advinda da pelotização e da comercialização do minério) somaram 75,09% das receitas correntes do município de Parauapebas no ano de 2010, equivalentes a R$ 505 milhões, segundo a prefeitura. De acordo com a legislação, 65% da CFEM (que representa em média 2% do faturamento obtido com a extração do minério) ficam no município, 23% com o Estado, 12% com a União.
“Entre 2000 e 2010 a população cresceu 115%, e urbanizada, porque a população rural foi para a metade, e a grande maioria é de jovens. Optamos por investir o máximo em saúde e educação para deixar um legado. O destino constitucional dos royalties é preparar a população para desenvolver outros ramos de atividade e criar um tecido social capaz de superar o vazio que virá quando essas jazidas se esgotarem”, defende-se o gaúcho Darcy Lermen, do PT, atualmente concluindo o segundo mandato.
A previsão é que as atuais minas de minério de ferro da Serra Norte, que são as que ficam no município de Parauapebas, parem de produzir em 2037, segundo o relatório anual obrigatório da companhia à Comissão Mobiliária dos Estados Unidos.
Em busca de receita para a Prefeitura, Darcy chegou a contratar um escritório de advogados e assinar um convênio com Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para auditar as notas da Vale. “Ela já vinha sendo autuada pelo DNPM por descontar indevidamente o custo do transporte dos caminhões fora de estrada, que circulam dentro da mina, uma loucura”, exalta-se o prefeito, que foi alvo de uma carta de denúncias enviada à presidente Dilma pelo ex-presidente da Vale, Roger Agnelli, por “desviar recursos públicos” contratando advogados. O caso ocorreu no ano passado, pouco antes de Agnelli ser defenestrado pelo Conselho de Administração da empresa – atualmente presidido pela Previ, o fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil que é o acionista com mais força, hoje, na empresa privatizada. Agnelli era considerado alinhado demais ao Bradesco, o maior sócio do bloco “privado”, seguido pela trading japonesa Mitsui.
A Pública teve acesso a um dos processos referentes à CFEM – uma ação de execução fiscal na Justiça Federal de Marabá –, com as notas de infração do DNPM que corroboram a versão do prefeito. Foram ações como essas que resultaram em uma cobrança de R$ 4 bilhões do DNPM, valor contestado pela Vale na Justiça e que deve ser acertado em uma mesa de negociações criada a pedido do governo federal o ano passado.
O candidato do prefeito perdeu às vésperas da eleição. Mais do que o “não está tendo” do povo do Peba, o que o tirou da disputa foi um episódio obscuro que ganhou repercussão nacional: a descoberta de R$ 1,1 milhão no jatinho de um empresário da região. Depois de publicar que o dinheiro tinha sido vinculado pela Polícia Federal ao PT, a imprensa desmentiu a notícia – e ainda não se sabe a quem se destinava o dinheiro.
A partir de uma denúncia anônima, o flagrante foi feito no “aeroporto de Parauapebas”, disseram os jornais do Sudeste. Mas, em Parauapebas, não tem aeroporto. Onde tem tudo, e continua tendo, é em Carajás.
Na portaria da Floresta Nacional de Carajás
As jazidas da Vale ficam dentro da Floresta Nacional (Flona) de Carajás. As do lado norte incidem sobre o município de Parauapebas, e as do Sul, no município de Canaã dos Carajás. A unidade de conservação federal, com 411 mil hectares, foi criada em 1998, para garantir a renovação da concessão de exploração da Vale depois de privatizada. Hoje é administrada em parceria com o Instituto Chico Mendes (ICM-Bio).
Portaria da Flona Parauapebas (Foto: Jeremy Bigwood)
A portaria fica dentro da cidade, ostentando o logo verde-amarelo da companhia, e frequentemente é fechada por protestos – de professores a operários. A cidade que foi criada pela Vale e vive em função da companhia sabe que a única maneira de chamar a atenção de autoridades do governo ou diretores da companhia é fechando o caminho que leva às minas – assim como os moradores de outros municípios ao longo da Estrada de Ferro Carajás costumam parar a ferrovia. Não custa lembrar: tanto a ferrovia como a floresta são propriedades da União.
Enquanto os caminhões e carros aguardam a liberação da Vale ou do ICM-Bio – quando o assunto é turismo –, seguem livres os ônibus fretados que conduzem os operários e as caminhonetes usadas nas áreas de operações. Locadas da Avis e vistas por toda a cidade, elas exibem códigos na lataria sinalizando o trajeto que estão autorizadas a fazer para guiar a vigilância no asfalto liso, que sobe a serra por entre a floresta.
Essa vigilância funciona como a polícia da Flona Carajás – a Vale é a responsável pela segurança ambiental e patrimonial, de acordo com parceria que mantém com o ICM-Bio. Os que se dirigem ao idílico núcleo residencial, que abriga 1.300 famílias “de fora” que vieram para trabalhar nas operações da Vale, têm que pedir autorização da companhia um dia antes da visita.
Se o destino é o “zoológico” – o Parque Zoobotânico que abriga animais resgatados por órgãos ambientais –, passam pela portaria do ICM-Bio. De vez em quando são flagrados caçando um tatu que continuam a assar na brasa como faziam nos canteiros de obras que ergueu o maior complexo de minério de ferro do mundo em Carajás.
Mina na Serra Norte de Carajás (Foto: Jeremy Bigwood)
“As regras mudaram hoje, que falta de sorte”
A Pública entrou na floresta na caminhonete da Vale, conduzida pela assessoria de imprensa, em visita combinada um mês antes, mas acabou tendo o mesmo destino dos turistas – o tal “zoológico”. Depois de visitar os animais, a equipe de reportagem foi convidada a saborear a comida do melhor bandejão entre os três que servem comida no núcleo residencial aos que ali trabalham – dos operários terceirizados que limpam ruas e praças impecáveis aos que ganham a vida nos balcões das butiques e supermercados, passando pelas áreas de suporte e tecnologia da companhia.
Depois de pagarmos a conta na fila da balança do restaurante dos “camisas verdes” – ali só havia funcionários da Vale – e sentar em uma das mesas de plástico branco, tivemos a confirmação de que não seria possível o acesso à área de operações por falta de “escolta” de segurança. Nem os apelos de ir ao menos até os mirantes das minas para fotografar foram ouvidos, o que chegou a causar espanto no jovem maranhense que há quatro meses enverga o uniforme dos motoristas da Avis.
“As regras mudaram hoje, ontem mesmo fui com esse carro nas minas e não precisava de escolta, que falta de sorte”, comentou candidamente, para o constrangimento da assessora.
Voltamos no dia seguinte, desta vez com autorização do ICM-Bio, contatado em Parauapebas, que nos levou para conhecer a área de operações – com exceção do interior das minas e de outras áreas de segurança que realmente exigem escolta.
Dos mirantes sobre as cavas da Serra Norte, que chegam a 300 metros de profundidade, as escavadeiras de 80 toneladas que extraem o minério da cratera cor de chocolate parecem de brinquedo, assim como os caminhões “fora de estrada” que levam 400 toneladas de terra a cada viagem, trazendo o que sobra depois de lavar e peneirar o minério – o estéril – para ser empilhado em morros que cercam a cava.
A área de operações da Vale ocupa atualmente cerca de 4% da Floresta Nacional de Carajás. O ecossistema mais ameaçado em seu interior – a canga ou savana metalófila – ocupa 5% do território. Essa vegetação brota nas clareiras do topo dos morros, denunciando a presença de minério e, conforme se aprofundam as pesquisas, revela-se cada vez mais importante para manter a rica biodiversidade das serras, como explica Frederico Martins, o biólogo mineiro que é o gestor da Flona Carajás. “Essa vegetação é única nesse ambiente equatorial, tem características diferentes daquela de Minas Gerais, espécies endêmicas, ainda não foi suficientemente estudada”, diz.
Fred, como é conhecido por todos, também foi nosso guia na área do projeto S11D, o primeiro a invadir o território inexplorado da Serra Sul da Flona e suas dezenas de cavernas, espécies endêmicas da fauna e flora e lagoas doloniformes, reservatórios naturais de pedra que acumulam chuva e mantêm o nível de suas águas azuis mesmo quando os igarapés secam no verão, quando se tornam a única opção para as espécies que vivem no topo dos morros, algumas apenas ali.
O relato dessa visita e a explicação sobre o projeto da Vale e seu longo processo de licenciamento ambiental você acompanhaaqui.
Por ora, vamos contornar a Lagoa do Violão – como aparece nos relatórios técnicos – ou Lagoa da Dina, como é chamada pelo povo da região em homenagem à mítica guerrilheira do Araguaia, Dinalva Teixeira, a geóloga que diziam ser capaz de se transmutar em borboleta quando se embrenhava nas matas fugindo do Exército. Aos 29 anos, em 1974, Dina desapareceu depois de presa pelos militares.
O povo do Racha-Placa
Entre 1982 e 1985, o governo federal, por meio do Getat (Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins), assentou 1551 famílias em projetos de colonização em torno da área de mineração. O objetivo era formar um cinturão de produção de alimentos e reduzir os conflitos de terra na região Bico do Papagaio – palco da Guerrilha do Araguaia durante a década de 1970.
Muitos vieram para se instalar em três centros de Desenvolvimento Regional – os Cedere. Um deles, o Cedere II acabou se transformando no município de Canaã dos Carajás, em 1994, hoje uma cidadezinha de 30 mil habitantes que vive seu segundo ciclo de crescimento: o primeiro ocorreu com a implantação da Mina do Sossego, a partir de 2000, que inauguraria a extração de cobre em Carajás pela Vale, em 2004. Entre 2000 e 2010, a população triplicou, conforme estudo desenvolvido por Dalva Maria Vasconcellos dos Santos, em sua dissertação de mestrado, apresentada no ano passado na Universidade da Amazônia.
Com a chegada do projeto S11D, novas comunidades rurais serão desalojadas, entre elas uma que, desde o governo militar, luta para permanecer em suas terras, como revela seu sugestivo nome: o Racha-Placa, a cerca de 80 quilômetros da cidade de Canaã.
Desde 1980, os militares sabiam que as reservas de minério da Serra Sul – onde fica a nova mina – eram ainda maiores do que as da explorada Serra Norte. Por isso, tentaram expulsar logo de cara os trabalhadores rurais que moravam nos arredores, vivendo de plantar as roças e de lidar com o gado dos fazendeiros – Canaã já foi a segunda bacia leiteira do Estado.
No Racha Placa – ao centro, Tonhão e Manelão (Foto: Jeremy Bigwood)
“Nessas matas tem muita caça, castanha, manga, cupuaçu, jaca, banana, açaí, limão”, me conta Tonhão, como é conhecido o goiano Antonio Maurício Gustavo, que, em 1979, veio “de pé” de Xinguara, no Araguaia, em três dias de viagem. “Aí cada um cedeu um pedacinho da terra para a gente construir uma vila, uma roça coletiva, um pomar”, conta, acomodado sob a sombra de uma mangueira.
“Quando a gente estava roçando o terreno, chegou um helicóptero da Vale, desceram os militares e botaram a placa: ‘É proibido o desmatamento, a venda de madeira, a pescaria’. Aí, pensamos: se a Vale tem pretensão nessa área, nós também temos, e chegamos primeiro. E rachamos a placa, daí o nosso nome”, conta.
Isso foi em 1984, lembra. Os moradores acabaram fazendo um acordo com os militares, cedendo uma área para eles abrirem a picada que iria permitir as sondagens de minério, e levaram adiante o projeto de construir uma vila, que chegou a reunir quase 100 famílias.
“Nós conseguimos que os missionários redentoristas de Trindade organizassem o colégio, que era muito bom, tinha até o 2º grau (Ensino Médio), tinha ainda o grupo escolar (fundamental I), postinho de saúde e um comércio que atendia todo o povo dessa região com bar, lanchonete, sorveteria, igrejas”, lembra. “Mas, há uns dez anos, o pessoal da Vale voltou e disse assim: ‘Vocês estão em cima da maior jazida de minério de ferro do mundo, e nós vamos abrir a mina: se Canaã é o corpo, aqui é o coração do projeto’”, conta.
A comunidade decidiu resistir – afinal, eles tinham feito tudo em mutirão, e sabiam que nunca mais teriam uma vila, que atendia também aos trabalhadores rurais em um raio de 50 quilômetros. Mas, uma parte das famílias começou a fraquejar quando a Vale passou a comprar a terra dos fazendeiros a preços absurdos – “eles pagavam 70 mil num alqueire que valia 20 mil”, dizem –, e os trabalhadores rurais ficaram sem emprego.
“Quem tinha mais terra, como eu, que tenho cinco filhos, podia viver da roça, mas a maioria dependia dos fazendeiros para trabalhar e acabou aceitando vender as terras para a Vale”, conta. “E eles mataram a gente à unha.”
A condição imposta pela companhia, é que, antes de pegar o dinheiro, demolissem as casas, desestruturando a vila para desestimular as famílias que resistiam a permanecer na terra.
Comunidade do Racha Placa (Foto: Jeremy Bigwood)
À nossa volta, o cenário agora é desolador. Todas as casas que abrigavam escola e comércio foram demolidas, e os restos pairam fantasmagóricos na paisagem tropical. “Eles chamam a gente de posseiro, mas tudo isso aqui é terra da União, que eles ocupam também”, ressalta Tonhão.
Por isso, as 49 famílias que resistiram ao assédio da companhia resolveram lutar. Com a ajuda do advogado da Comissão Pastoral da Terra, conseguiram que a empresa comprasse uma área de 340 alqueires para reassentá-los e garantisse dois anos de salário mínimo mensal de indenização para as famílias que perderam as roças e há três anos aguardam a transferência para a nova área.
“É isso que mata a gente, ficar vendo a vila acabar, o mato crescer esbagaçando as casas, a muriçoca tomar conta enquanto espera mudar”, diz Manelão, um senhor simpático de olhos puros que não sabe viver sem a enxada na mão. “E foi uma perda para toda a região, as crianças agora têm que andar 14 quilômetros para ir a escola, o trabalhador rural não tem onde comprar o que precisa”, lamenta. “Eles dizem que nós estamos interrompendo o progresso. Vamos ver…”
Além de negar qualquer irregularidade no processo de aquisição de terras, a Vale argumenta que “o Projeto Ferro Carajás S11D irá injetar na economia R$ 40 bilhões em investimentos, além de gerar mais de 30 mil empregos diretos durante a fase de implantação e aproximadamente 15 mil empregos (diretos e indiretos) na fase de operação”.
Os números não conferem com outros fornecidos pela própria companhia no folder de divulgação do projeto. Ali está escrito que o projeto gerar 30 mil empregos diretos “no pico das obras” e que 2.600 postos de trabalho serão permanentes.
Uma diferença e tanto para a pequena Canaã.
Marabá é a porta de entrada da Amazônia que aparece nos cadernos de Economia dos jornais, não nos de Turismo. Essa é a primeira lição para não se decepcionar com a paisagem do hotel, ao lado do aeroporto, em plena rodovia Transamazônica. Entre postos de gasolina e serrarias, à margem da estrada, meia dúzia de hotéis oferecem ar condicionado, internet e um serviço feito por jovens simples metidos em uniformes “internacionais”, que chocam no verão amazônico. A chuva que nos recebeu na manhã de 14 de julho, foi a última da temporada, e tardia.
A alegria da cidade é o rio Tocantins, a orla de restaurantes que servem tambaquis, filhotes e tucunarés imensos, cozidos ou assados em óleo de palmeiras e ervas – e aos domingos reúne os que se esbaldam nas praias e bancos de areia ou participam das competições de pescaria, a única atividade que atrai turistas para lá.
A maioria dos visitantes vem em busca de negócios: a cidade de 233 mil habitantes oferece mais de 60% de empregos no setor de serviços e comércio que gira em torno das atividades econômicas da região: fazendas de gado, empreiteiras e, a 150 quilômetros dali, o complexo de mineração da Vale S/A na Província Mineral de Carajás – que exporta cerca US$ 13 bilhões anuais do melhor minério de ferro do mundo, além de níquel, cobre, manganês.
São 110 milhões de toneladas de minério de ferro extraídas da Floresta Nacional de Carajás por ano. Segundo propagandeia a Vale, foi com esse metal que se ergueu mais da metade de Xangai, na China – o principal importador de minério. E a companhia pretende dobrar a produção em quatro anos: em junho deste ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu a licença prévia para o “maior projeto da história da Vale”, a mina S11D, com investimento de US$ 19,4 bilhões entre abertura de mina e obras de logística para escoar a produção.
John Lennon, recepcionista do hotel, usa a moto para ir do trabalho à faculdade de administração, o que diz ser melhor do que usar os ônibus precários para circular pelo complexo rodoviário assustador que funciona como malha urbana em Marabá – uma característica de muitas cidades que visitamos na viagem.
Entre Marabá e Novo Repartimento, também no Pará, ficam os únicos 63 quilômetros contínuos de asfalto dos 4.226 quilômetros da Transamazônica, que se não conseguiu “unir o Brasil”, como queriam os militares nos anos 70 e 80, mudou para a sempre a vida dos que viviam nos povoados e aldeias alcançados pelas escavadeiras.
Localizada no ponto da confluência de três rios – Araguaia, Itacaúnas e Tocantins –, o complexo rodoviário de Marabá ergue-se sobre os resquícios dos castanhais ocupados por fazendas nos anos 1950, transformando em trabalho forçado a coleta tradicional dos ouriços da castanha-do-pará de caboclos e índios. As pontes e os viadutos dividem os bairros que brotaram dos sucessivos ciclos das fazendas de gado e da mineração a partir de Marabá velha, à beira do Tocantins. No povoado, surgiam os bordéis e as vendas que abasteciam o garimpo nos afluentes dos rios, nos grotões e nas serras.
Foram os garimpeiros que descobriram o tesouro primeiro e, incentivados pelo governo da ditadura, retiraram com as próprias mãos 30 toneladas de ouro (número oficial – estima-se que pode ser muito mais) de Serra Pelada. Hoje, o tesouro está nas mãos de uma mineradora canadense, no município de Curionópolis, sinistramente batizado em homenagem ao major da ditadura que conquistou o direito de disciplinar o formigueiro humano e colher parte da riqueza depois de caçar e matar os últimos guerrilheiros do PCdoB no Araguaia em 1972.
A perda do território que concentrava a maior parte da riqueza mineral foi uma imposição que surgiu a partir do Projeto Grande Carajás – que, nos anos 80, implantou-se definitivamente nas terras da União, ordenado a partir do complexo mineral de exportação da Companhia Vale do Rio Doce.
Em 1987, dois anos depois de a primeira carga de minério de ferro partir da mina escavada na Serra de Carajás pelos trilhos da Estrada de Ferro Carajás e ser embarcada no Terminal de Ponta Madeira, em Itaqui, litoral do Maranhão, o território da Vale na Serra de Carajás passou a se chamar Parauapebas – hoje, o munícipio que tem o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) de Pará (R$ 5,6 bilhões), atrás apenas da capital, Belém.
Os royalties de mineração não chegaram a quem lhes abriu a porta, e hoje Marabá é a cidade mais violenta do Pará, e a terceira mais violenta do Brasil, com 120,5 homicídios por 100 mil pessoas, quatro vezes a taxa nacional, segundo o Mapa da Violência 2012.
A índia esquartejada
Marabá vive uma crise econômica com a baixa do mercado de ferro-gusa. A principal indústria local, baseada no minério de ferro, oferece poucos empregos e de baixa qualidade. O sonho de abrir uma siderúrgica, a Alpa (Aço Laminados do Pará), para verticalizar a produção, parecia próximo a se realizar quando, em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a inaugurar com grande pompa o canteiro de obras da “siderúrgica da Vale”. Em outubro, o projeto foi definitivamente engavetado pela mineradora. Como diz o comerciante Eliomar Freitas, que transferiu sua peixaria de Belém apostando no crescimento da cidade: “Depois de 30 anos tirando minério, em Marabá não tem uma fábrica de faca para o sujeito se matar”.
A cidade com nome de índia assistiu impotente ao progressivo esquartejamento de seu território, perdendo o direito também sobre os vales em que às pastagens griladas se uniram as doadas pelos militares para paulistas, cariocas, mineiros, gaúchos – rodeadas por projetos estatais de colonização que sorteavam lotes de dez alqueires a agricultores familiares que perdiam a terra no Pará, Goiás, Bahia, Maranhão, Piauí.
Paisagem da estrada PA-150 (Foto: Jeremy Bigwood)
À sombra das árvores centenárias, de nomes bonitos como maçaranduba, mogno, angico e a insuperável castanheira, coroada pelo ninho do gavião real, travou-se novamente o conflito pelas terras da União. Enquanto os índios e os coletores de castanha e jaborandi se espremiam na mata cortada pelos igarapés, as balas dos pistoleiros (muitos, ex-garimpeiros) derrubavam colonos e sem-terra que se multiplicavam no rastro dos canteiros de obras da rodovia PA-150, construída pela Vale durante a instalação do complexo de Carajás, na virada da década de 70 para 80, e hoje uma rodovia estadual.
Ao norte, margeando o Tocantins em direção a Belém, seguindo as linhas de transmissão de energia da Usina Hidrelétrica do Tucuruí, os municípios ganharam nomes como Nova Ipixuna, Goianésia, Tailândia, que hoje aparecem nas buscas do Google como endereço comercial de carvoarias e serrarias ou como foco dos relatórios internacionais de violações de direitos humanos. Foi a 70 quilômetros de Marabá – no Assentamento Agroextrativista de Piranheiras do Alto, em Nova Ipixuna –, que, no ano passado, ocorreu um dos crimes recentes de maior repercussão mundial: o assassinato de um casal de líderes comunitários por pistoleiros contratados por grileiros vizinhos, que queimavam carvão nos lotes dos assentados.
Ao sudoeste, no vale em que o Itacaúnas estende seu braço para formar o Parauapebas, ficam Curionópolis e Eldorado dos Carajás. Ali, 19 troncos de castanheira queimados, formando o mapa do Brasil, lembram as vítimas do massacre de sem-terra pela Polícia Militar de Parauapebas, ocorrido em 1996, durante um protesto em que exigiam as terras prometidas por sucessivos e fracassados projetos de reforma agrária – que deixaram um rastro de miséria, desmatamento e violência, do governo militar ao governo do PT.
É nesse ponto que a PA-150 desvia para o Sul em direção ao Eldorado real: Parauapebas e Carajás, as duas cidades que a Vale ergueu escavando a Floresta Nacional de Carajás. É para lá que vamos, com a intenção de descer um pouco mais ao sul para conhecer o novo projeto da Vale – este, sediado na pequenina Canaã dos Carajás, a 70 quilômetros de Parauapebas, prestes a completar 18 anos de idade.
De Marabá a Parauapebas, a cidade que hoje sedia o complexo minerador, a paisagem surpreende pela desolação: essa é a região mais desmatada do Pará. Nas pastagens quase vazias, as cabeças de boi se alternam às faixas de plantações de palmeiras de açaí e buriti – a mesma folha que cobre as casas de plástico preto, humanizadas pelas crianças que correm em direção ao banho no igarapé. Há 12.068 famílias assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nos municípios de Marabá, Eldorado dos Carajás, Curionópolis e Parauapebas e três vezes esse número esperando terra em acampamentos, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Acampamento do MST na estrada PA-150 (Foto: Jeremy Bigwood)
“Tem, mas não está tendo”
Os buracos imensos no asfalto precário exigem a atenção do motorista, que disputa espaço com caminhões de gado, combustível, peças de escavadeiras, tratores, sucata e carvão ou cobertos por logotipos de supermercados e lojas de varejo que abastecem os 153 mil moradores do “Peba”, como dizem maranhenses, piauienses, paraenses, goianos e baianos que saem de casa cedinho uniformizados. A sensação é de que toda a população que embarca nas vans – o único meio de transporte público coletivo – usa crachás de empreiteiras e firmas de limpeza.
Mais do que precário, como quase tudo por ali, me conta a “pioneira” Maria Aparecida Alves de Oliveira, 39 anos, camareira de um dos hotéis que cobram R$ 200 de diária e que oferecem de tudo, mas onde falta tudo também. “Tem, mas não está tendo” é a resposta singela que se ouve em toda parte quando se tenta comprar qualquer coisa – a não ser o cigarro e a cerveja, vendidos pelo dobro do preço nos quiosques do espaço coletivo de lazer, os canteiros centrais da PA-150 onde o funk dos jovens (52% da população têm menos de 29 anos) disputa espaço com a música sertaneja dos pioneiros, entre as buzinas de caminhão.
Falta até água, apesar da abundância hídrica da região, que se mostra aos olhos nas curvas do rio Parauapebas, o “Sebosinho”, como o chamam hoje os que ali se divertiram na infância, silenciando ressabiados quando passava uma onça. Mais de 87% das residências não têm saneamento básico, e a água suja corre pelas ruas.
Cida com rio Parauapebas ao fundo (Foto: Jeremy Bigwood)
O pior, porém, diz Cida, é a falta de ônibus – só os que trabalham para a Vale embarcam nos fretados que entopem a cidade na troca de turnos. Os outros dependem das tais vans, liberadas sem maiores exigências pela prefeitura, de acordo com a TV Parauapebas, que comenta um caso ruidoso, ocorrido três dias antes de nossa chegada: mototaxistas que protestavam pela morte de um colega atropelado por uma van botaram fogo nos canteiros e nas latas de lixo, provocando um tumulto em que obtiveram o apoio da população.
“Eles tratam que nem bicho, xingam de cachorra quando a gente, quase sem respirar já, diz que não tem espaço pra mais um, e ainda dirigem que nem uns loucos”, conta.
E olha que Cida não é mulher de se assustar fácil. Aos sete anos veio com a mãe e os irmãos do interior de Goiás em busca do pai garimpeiro. Ele andava por um grotão em Curionópolis, que ainda se chamava Garimpo dos 30. Com nove anos, foi estudar em Rio Verde, a vila que se tornaria Parauapebas conforme crescia entre peões de obra da Estrada de Ferro Carajás e os garimpeiros que queriam viver com a família – na Serra Pelada não entrava mulher, o bordel ficava um quilômetro acima.
Enquanto o “Peba” era ordenado em lotes urbanizados pela Vale para apaziguar a bagunça dos peões, e o núcleo residencial de Carajás se instalava no alto da serra para abrigar técnicos e engenheiros que vinham de fora, Cida engravidou, aos 13 anos, do primeiro dos cinco filhos: hoje rapazes que trabalham em empreiteiras e moças que fazem faxina nas “terceirizadas”, com exceção da mais nova que passou no “treininho da Vale”, ela diz – o programa de Formação de Mão de Obra que a empresa toca junto com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), primeira etapa para conquistar a cobiçada “camisa verde-mata” da empresa, que garante carteira assinada e participação nos lucros aos que cumprem as metas. A cor verde foi adotada em 2010 em substituição à tradicional “marrom-minério”.
“Ela agora está mais perto de ter um futuro”, Cida me diz. “Essas obras vão e vêm, um dos meus filhos está em Belo Monte, agora, passando aquele aperto nas confusões por lá”, comenta ela, em referência aos protestos de trabalhadores contra o Consórcio Norte Energia, responsável pela obra, em que a Vale tem 9% de participação.
Basta um número para explicar a alegria da Cida com o sucesso da caçula: a Vale tem “31 mil empregados – entre próprios e terceiros permanentes” nos estados do Pará e do Maranhão, segundo a assessoria de imprensa da companhia. Os demais interessados em trabalhar para a Vale têm que se ajeitar nas terceirizadas ou no crescente setor de serviços, como fez Ivo, da lan house Matrix, depois de “cansar de lavar peneira de minério nas terceirizadas”, ele me diz, em mais um dos dias em que a Internet “não estava tendo”.
E por que tanta carência, prefeito?
Os royalties da mineração (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais – CFEM) e a cota-parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS (advinda da pelotização e da comercialização do minério) somaram 75,09% das receitas correntes do município de Parauapebas no ano de 2010, equivalentes a R$ 505 milhões, segundo a prefeitura. De acordo com a legislação, 65% da CFEM (que representa em média 2% do faturamento obtido com a extração do minério) ficam no município, 23% com o Estado, 12% com a União.
“Entre 2000 e 2010 a população cresceu 115%, e urbanizada, porque a população rural foi para a metade, e a grande maioria é de jovens. Optamos por investir o máximo em saúde e educação para deixar um legado. O destino constitucional dos royalties é preparar a população para desenvolver outros ramos de atividade e criar um tecido social capaz de superar o vazio que virá quando essas jazidas se esgotarem”, defende-se o gaúcho Darcy Lermen, do PT, atualmente concluindo o segundo mandato.
A previsão é que as atuais minas de minério de ferro da Serra Norte, que são as que ficam no município de Parauapebas, parem de produzir em 2037, segundo o relatório anual obrigatório da companhia à Comissão Mobiliária dos Estados Unidos.
Em busca de receita para a Prefeitura, Darcy chegou a contratar um escritório de advogados e assinar um convênio com Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para auditar as notas da Vale. “Ela já vinha sendo autuada pelo DNPM por descontar indevidamente o custo do transporte dos caminhões fora de estrada, que circulam dentro da mina, uma loucura”, exalta-se o prefeito, que foi alvo de uma carta de denúncias enviada à presidente Dilma pelo ex-presidente da Vale, Roger Agnelli, por “desviar recursos públicos” contratando advogados. O caso ocorreu no ano passado, pouco antes de Agnelli ser defenestrado pelo Conselho de Administração da empresa – atualmente presidido pela Previ, o fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil que é o acionista com mais força, hoje, na empresa privatizada. Agnelli era considerado alinhado demais ao Bradesco, o maior sócio do bloco “privado”, seguido pela trading japonesa Mitsui.
A Pública teve acesso a um dos processos referentes à CFEM – uma ação de execução fiscal na Justiça Federal de Marabá –, com as notas de infração do DNPM que corroboram a versão do prefeito. Foram ações como essas que resultaram em uma cobrança de R$ 4 bilhões do DNPM, valor contestado pela Vale na Justiça e que deve ser acertado em uma mesa de negociações criada a pedido do governo federal o ano passado.
O candidato do prefeito perdeu às vésperas da eleição. Mais do que o “não está tendo” do povo do Peba, o que o tirou da disputa foi um episódio obscuro que ganhou repercussão nacional: a descoberta de R$ 1,1 milhão no jatinho de um empresário da região. Depois de publicar que o dinheiro tinha sido vinculado pela Polícia Federal ao PT, a imprensa desmentiu a notícia – e ainda não se sabe a quem se destinava o dinheiro.
A partir de uma denúncia anônima, o flagrante foi feito no “aeroporto de Parauapebas”, disseram os jornais do Sudeste. Mas, em Parauapebas, não tem aeroporto. Onde tem tudo, e continua tendo, é em Carajás.
Na portaria da Floresta Nacional de Carajás
As jazidas da Vale ficam dentro da Floresta Nacional (Flona) de Carajás. As do lado norte incidem sobre o município de Parauapebas, e as do Sul, no município de Canaã dos Carajás. A unidade de conservação federal, com 411 mil hectares, foi criada em 1998, para garantir a renovação da concessão de exploração da Vale depois de privatizada. Hoje é administrada em parceria com o Instituto Chico Mendes (ICM-Bio).
Portaria da Flona Parauapebas (Foto: Jeremy Bigwood)
A portaria fica dentro da cidade, ostentando o logo verde-amarelo da companhia, e frequentemente é fechada por protestos – de professores a operários. A cidade que foi criada pela Vale e vive em função da companhia sabe que a única maneira de chamar a atenção de autoridades do governo ou diretores da companhia é fechando o caminho que leva às minas – assim como os moradores de outros municípios ao longo da Estrada de Ferro Carajás costumam parar a ferrovia. Não custa lembrar: tanto a ferrovia como a floresta são propriedades da União.
Enquanto os caminhões e carros aguardam a liberação da Vale ou do ICM-Bio – quando o assunto é turismo –, seguem livres os ônibus fretados que conduzem os operários e as caminhonetes usadas nas áreas de operações. Locadas da Avis e vistas por toda a cidade, elas exibem códigos na lataria sinalizando o trajeto que estão autorizadas a fazer para guiar a vigilância no asfalto liso, que sobe a serra por entre a floresta.
Essa vigilância funciona como a polícia da Flona Carajás – a Vale é a responsável pela segurança ambiental e patrimonial, de acordo com parceria que mantém com o ICM-Bio. Os que se dirigem ao idílico núcleo residencial, que abriga 1.300 famílias “de fora” que vieram para trabalhar nas operações da Vale, têm que pedir autorização da companhia um dia antes da visita.
Se o destino é o “zoológico” – o Parque Zoobotânico que abriga animais resgatados por órgãos ambientais –, passam pela portaria do ICM-Bio. De vez em quando são flagrados caçando um tatu que continuam a assar na brasa como faziam nos canteiros de obras que ergueu o maior complexo de minério de ferro do mundo em Carajás.
Mina na Serra Norte de Carajás (Foto: Jeremy Bigwood)
“As regras mudaram hoje, que falta de sorte”
A Pública entrou na floresta na caminhonete da Vale, conduzida pela assessoria de imprensa, em visita combinada um mês antes, mas acabou tendo o mesmo destino dos turistas – o tal “zoológico”. Depois de visitar os animais, a equipe de reportagem foi convidada a saborear a comida do melhor bandejão entre os três que servem comida no núcleo residencial aos que ali trabalham – dos operários terceirizados que limpam ruas e praças impecáveis aos que ganham a vida nos balcões das butiques e supermercados, passando pelas áreas de suporte e tecnologia da companhia.
Depois de pagarmos a conta na fila da balança do restaurante dos “camisas verdes” – ali só havia funcionários da Vale – e sentar em uma das mesas de plástico branco, tivemos a confirmação de que não seria possível o acesso à área de operações por falta de “escolta” de segurança. Nem os apelos de ir ao menos até os mirantes das minas para fotografar foram ouvidos, o que chegou a causar espanto no jovem maranhense que há quatro meses enverga o uniforme dos motoristas da Avis.
“As regras mudaram hoje, ontem mesmo fui com esse carro nas minas e não precisava de escolta, que falta de sorte”, comentou candidamente, para o constrangimento da assessora.
Voltamos no dia seguinte, desta vez com autorização do ICM-Bio, contatado em Parauapebas, que nos levou para conhecer a área de operações – com exceção do interior das minas e de outras áreas de segurança que realmente exigem escolta.
Dos mirantes sobre as cavas da Serra Norte, que chegam a 300 metros de profundidade, as escavadeiras de 80 toneladas que extraem o minério da cratera cor de chocolate parecem de brinquedo, assim como os caminhões “fora de estrada” que levam 400 toneladas de terra a cada viagem, trazendo o que sobra depois de lavar e peneirar o minério – o estéril – para ser empilhado em morros que cercam a cava.
A área de operações da Vale ocupa atualmente cerca de 4% da Floresta Nacional de Carajás. O ecossistema mais ameaçado em seu interior – a canga ou savana metalófila – ocupa 5% do território. Essa vegetação brota nas clareiras do topo dos morros, denunciando a presença de minério e, conforme se aprofundam as pesquisas, revela-se cada vez mais importante para manter a rica biodiversidade das serras, como explica Frederico Martins, o biólogo mineiro que é o gestor da Flona Carajás. “Essa vegetação é única nesse ambiente equatorial, tem características diferentes daquela de Minas Gerais, espécies endêmicas, ainda não foi suficientemente estudada”, diz.
Fred, como é conhecido por todos, também foi nosso guia na área do projeto S11D, o primeiro a invadir o território inexplorado da Serra Sul da Flona e suas dezenas de cavernas, espécies endêmicas da fauna e flora e lagoas doloniformes, reservatórios naturais de pedra que acumulam chuva e mantêm o nível de suas águas azuis mesmo quando os igarapés secam no verão, quando se tornam a única opção para as espécies que vivem no topo dos morros, algumas apenas ali.
O relato dessa visita e a explicação sobre o projeto da Vale e seu longo processo de licenciamento ambiental você acompanhaaqui.
Por ora, vamos contornar a Lagoa do Violão – como aparece nos relatórios técnicos – ou Lagoa da Dina, como é chamada pelo povo da região em homenagem à mítica guerrilheira do Araguaia, Dinalva Teixeira, a geóloga que diziam ser capaz de se transmutar em borboleta quando se embrenhava nas matas fugindo do Exército. Aos 29 anos, em 1974, Dina desapareceu depois de presa pelos militares.
O povo do Racha-Placa
Entre 1982 e 1985, o governo federal, por meio do Getat (Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins), assentou 1551 famílias em projetos de colonização em torno da área de mineração. O objetivo era formar um cinturão de produção de alimentos e reduzir os conflitos de terra na região Bico do Papagaio – palco da Guerrilha do Araguaia durante a década de 1970.
Muitos vieram para se instalar em três centros de Desenvolvimento Regional – os Cedere. Um deles, o Cedere II acabou se transformando no município de Canaã dos Carajás, em 1994, hoje uma cidadezinha de 30 mil habitantes que vive seu segundo ciclo de crescimento: o primeiro ocorreu com a implantação da Mina do Sossego, a partir de 2000, que inauguraria a extração de cobre em Carajás pela Vale, em 2004. Entre 2000 e 2010, a população triplicou, conforme estudo desenvolvido por Dalva Maria Vasconcellos dos Santos, em sua dissertação de mestrado, apresentada no ano passado na Universidade da Amazônia.
Com a chegada do projeto S11D, novas comunidades rurais serão desalojadas, entre elas uma que, desde o governo militar, luta para permanecer em suas terras, como revela seu sugestivo nome: o Racha-Placa, a cerca de 80 quilômetros da cidade de Canaã.
Desde 1980, os militares sabiam que as reservas de minério da Serra Sul – onde fica a nova mina – eram ainda maiores do que as da explorada Serra Norte. Por isso, tentaram expulsar logo de cara os trabalhadores rurais que moravam nos arredores, vivendo de plantar as roças e de lidar com o gado dos fazendeiros – Canaã já foi a segunda bacia leiteira do Estado.
No Racha Placa – ao centro, Tonhão e Manelão (Foto: Jeremy Bigwood)
“Nessas matas tem muita caça, castanha, manga, cupuaçu, jaca, banana, açaí, limão”, me conta Tonhão, como é conhecido o goiano Antonio Maurício Gustavo, que, em 1979, veio “de pé” de Xinguara, no Araguaia, em três dias de viagem. “Aí cada um cedeu um pedacinho da terra para a gente construir uma vila, uma roça coletiva, um pomar”, conta, acomodado sob a sombra de uma mangueira.
“Quando a gente estava roçando o terreno, chegou um helicóptero da Vale, desceram os militares e botaram a placa: ‘É proibido o desmatamento, a venda de madeira, a pescaria’. Aí, pensamos: se a Vale tem pretensão nessa área, nós também temos, e chegamos primeiro. E rachamos a placa, daí o nosso nome”, conta.
Isso foi em 1984, lembra. Os moradores acabaram fazendo um acordo com os militares, cedendo uma área para eles abrirem a picada que iria permitir as sondagens de minério, e levaram adiante o projeto de construir uma vila, que chegou a reunir quase 100 famílias.
“Nós conseguimos que os missionários redentoristas de Trindade organizassem o colégio, que era muito bom, tinha até o 2º grau (Ensino Médio), tinha ainda o grupo escolar (fundamental I), postinho de saúde e um comércio que atendia todo o povo dessa região com bar, lanchonete, sorveteria, igrejas”, lembra. “Mas, há uns dez anos, o pessoal da Vale voltou e disse assim: ‘Vocês estão em cima da maior jazida de minério de ferro do mundo, e nós vamos abrir a mina: se Canaã é o corpo, aqui é o coração do projeto’”, conta.
A comunidade decidiu resistir – afinal, eles tinham feito tudo em mutirão, e sabiam que nunca mais teriam uma vila, que atendia também aos trabalhadores rurais em um raio de 50 quilômetros. Mas, uma parte das famílias começou a fraquejar quando a Vale passou a comprar a terra dos fazendeiros a preços absurdos – “eles pagavam 70 mil num alqueire que valia 20 mil”, dizem –, e os trabalhadores rurais ficaram sem emprego.
“Quem tinha mais terra, como eu, que tenho cinco filhos, podia viver da roça, mas a maioria dependia dos fazendeiros para trabalhar e acabou aceitando vender as terras para a Vale”, conta. “E eles mataram a gente à unha.”
A condição imposta pela companhia, é que, antes de pegar o dinheiro, demolissem as casas, desestruturando a vila para desestimular as famílias que resistiam a permanecer na terra.
Comunidade do Racha Placa (Foto: Jeremy Bigwood)
À nossa volta, o cenário agora é desolador. Todas as casas que abrigavam escola e comércio foram demolidas, e os restos pairam fantasmagóricos na paisagem tropical. “Eles chamam a gente de posseiro, mas tudo isso aqui é terra da União, que eles ocupam também”, ressalta Tonhão.
Por isso, as 49 famílias que resistiram ao assédio da companhia resolveram lutar. Com a ajuda do advogado da Comissão Pastoral da Terra, conseguiram que a empresa comprasse uma área de 340 alqueires para reassentá-los e garantisse dois anos de salário mínimo mensal de indenização para as famílias que perderam as roças e há três anos aguardam a transferência para a nova área.
“É isso que mata a gente, ficar vendo a vila acabar, o mato crescer esbagaçando as casas, a muriçoca tomar conta enquanto espera mudar”, diz Manelão, um senhor simpático de olhos puros que não sabe viver sem a enxada na mão. “E foi uma perda para toda a região, as crianças agora têm que andar 14 quilômetros para ir a escola, o trabalhador rural não tem onde comprar o que precisa”, lamenta. “Eles dizem que nós estamos interrompendo o progresso. Vamos ver…”
Além de negar qualquer irregularidade no processo de aquisição de terras, a Vale argumenta que “o Projeto Ferro Carajás S11D irá injetar na economia R$ 40 bilhões em investimentos, além de gerar mais de 30 mil empregos diretos durante a fase de implantação e aproximadamente 15 mil empregos (diretos e indiretos) na fase de operação”.
Os números não conferem com outros fornecidos pela própria companhia no folder de divulgação do projeto. Ali está escrito que o projeto gerar 30 mil empregos diretos “no pico das obras” e que 2.600 postos de trabalho serão permanentes.
Uma diferença e tanto para a pequena Canaã.
O descompromisso dos governos Lula e Dilma com a Comunicação no Brasil
26 de Novembro de 2012, 22:00 - sem comentários aindaPor Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa
Ao contrário. Ações que representariam avanços relativos, muitas vezes, não são cumpridas, se descaracterizam ou se transformam em inacreditáveis recuos – alguns, com apoio em decisões do Judiciário.
São muitos os exemplos. O principal deles é certamente a própria Constituição de 1988, cuja maioria dos artigos relativos à comunicação social não logrou ser regulamentada decorridos 24 anos de sua promulgação.
Outros, não menos importantes, incluem:
- O decreto que criava o serviço de retransmissão de TV institucional (RTVIs), que foi revogado dois meses depois (2005);
- O resultado do trabalho de duas comissões criadas no âmbito do governo federal para propor uma nova regulamentação para as rádios comunitárias (GT 2003 e GTI 2005), que nunca foi levado em conta;
- O primeiro decreto sobre o modelo de TV digital (2003), que foi substituído por outro apontando para a direção inversa (2006);
- O pré-projeto que transformava a Ancine em Ancinav (2004) que nunca chegou sequer a se tornar projeto, mas seus opositores foram contemplados com a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (2006) e, mais recentemente, com a polêmica Lei 12.485/2011;
- As diretrizes originais para a comunicação constantes da primeira versão do III Programa Nacional de Direitos Humanos, PNDH3 (2009) foram alteradas menos de cinco meses depois por novo decreto (2010): excluíram-se as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas; e exclui-se a proposta de elaboração de “critérios de acompanhamento editorial” para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.
- A convocação e realização da 1ª Confecom – Conferência Nacional de Comunicação, que produziu mais de 600 propostas que jamais saíram do papel (2009);
- Os três decretos que finalmente geraram um anteprojeto de marco regulatório para a comunicação eletrônica (2005, 2006 e 2010) que nunca se tornou público
E por aí vai.
Temas recorrentes
Há de se registrar ainda decisões do poder Judiciário como:
1. A improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que sustentava a inconstitucionalidade de quatro artigos do decreto 5820/2006 (TV Digital);
2. A não regulamentação do “direito de resposta” em função da inconstitucionalidade total da antiga Lei de Imprensa;
3. O estabelecimento de uma hierarquia de liberdades que privilegia o direito das empresas sobre o direito do cidadão; e,
4. A recente criação de um Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa no Conselho Nacional de Justiça – onde terão assento as principais entidades representantes da grande mídia – com o objetivo de monitorar as ações judiciais que envolvem o que tem sido chamado de “censura judicial”. Na prática, mais uma proteção à liberdade das grandes empresas de mídia em detrimento do direito do cidadão.
Muitas dessas questões têm sido tratadas neste Observatório mais de uma vez, ao longo do tempo. Não há qualquer novidade nisso.
Os conselhos de comunicação
Há, todavia, um exemplo que merece referência especial pela constatação da incrível impotência de atores da sociedade civil – inclusive, de partidos políticos e parlamentares – além da imensa frustração que representa para aqueles que lutam pela universalização da liberdade de expressão no nosso país: os conselhos de comunicação.
A história é conhecida, mas vale um breve resumo. Ponto principal de disputa na Constituinte de 1987-88, a criação de uma agência reguladora nos moldes da FCC americana se transformou, na undécima hora, no Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional (artigo 224). Regulamentado por lei em 1991, só foi instalado 11 anos depois, em 2002. Funcionou por quatro anos e ficou desativado por cerca de seis anos. Recentemente foi reinstalado de forma autoritária e sob protesto da Frentecom e do FNDC. Sua composição não traduz a ideia da Constituição de 1988, de um órgão plural com representação diversa. Há um claro predomínio de interesses empresarias.
Na primeira sessão do novo CCS, um representante da grande mídia propôs reduzir suas funções regimentais para que sua ação de assessoramento se restrinja apenas às demandas do Congresso Nacional, excluindo, por exemplo, a possibilidade de debate e encaminhamento das propostas aprovadas na 1ª Confecom.
Nos 10 estados (e no Distrito Federal) onde as Constituições e a Lei Orgânica preveem conselhos estaduais de comunicação – a exemplo do CCS –, até hoje apenas na Bahia ele foi instalado (2012) e, mesmo assim, com funcionamento precário.
Em pleno século 21, na contramão de países vizinhos e das democracias liberais consolidadas, permanecemos praticamente sem um único espaço democrático institucionalizado onde questões relativas à universalização da liberdade de expressão possam ser sequer debatidas.
No Brasil, no que se refere à regulação democrática da mídia, o ruim pode sempre piorar. E tem piorado.