por Flávio de Carvalho Serpa
Dos países mais pobres aos mais ricos, independentemente de cor e gênero, boa parte da população padece um sofrimento diário avassalador. Aproximadamente 350 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de sua forma mais grave, o chamado transtorno depressivo maior ou também depressão clínica. A cada ano, perto de 1 milhão de pessoas em idade produtiva ceifam a própria vida. A maioria delas, por falta de diagnóstico ou simplesmente por falta de tratamento adequado. Porém, mesmo dentro do grupo que é diagnosticado e tratado, existe uma parcela significativa de pessoas que já tentaram todas as drogas e terapias existentes, sem nenhum resultado. Parte considerável cai na automedicação com álcool e drogas, abreviando a sinistra jornada para a morte dolorosa.
Enquanto em todas as áreas da medicina os avanços das últimas décadas salvam cada vez mais vidas de diversas doenças antes fatais, no domínio da psiquiatria as coisas parecem não estar andando na mesma velocidade. A situação é tão dramática que muitos psiquiatras estão tentando abordagens e uso de drogas de forma heterodoxa, algumas delas não autorizadas formalmente. Apesar disso, algumas dessas terapias e drogas incomuns estão acendendo flashes de esperança, como vaga-lumes no fim do túnel, especialmente para as vítimas das formas mais desesperadoras e até agora refratárias.
A mais espetaculosa das drogas antidepressivas que estão sendo testadas – na maioria dos casos de forma descontrolada – é um velho tranquilizante veterinário de uso cavalar, a quetamina. Ela chamou a atenção dos pesquisadores depois de virar droga de uso recreativo em baladas, conhecida como Super-K (de Ketamine, em inglês), que logo foi considerada ilícita pelas autoridades. Num amontoado de casos isolados e ainda sem testes científicos, algumas centenas de pacientes que já tinham tentado todas as terapias e drogas disponíveis alegam ter passado por algo como uma cura milagrosa. E o melhor: ao contrário das atuais medicações antidepressivas, que levam semanas ou meses para fazer efeito, a quetamina funciona poucas horas após a aplicação.
Em outubro passado a revista mensal Scientific American publicou uma série de artigos sobre a quetamina, revelando tanto o polêmico sucesso da terapia como uma nova indústria não controlada de aplicação da substância sem muito controle médico. O neurobiólogo Carlos Zarate, do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA e professor de psiquiatria e ciências comportamentais da Universidade George Washington, é, segundo a publicação, a principal referência na pesquisa da quetamina e fonte de consultas de outros médicos e psiquiatras.
Médicos podem prescrevê-la legalmente, pois trata-se de uma droga clinicamente aprovada, pelo menos para uso em cavalos. Ela é largamente prescrita para dores crônicas em humanos, embora esse uso não tenha sido aprovado formalmente pela Administração de Drogas e Alimentos (FDA, na sigla em inglês) nos EUA. Mas, como cientista, Zarate tem reservas à disseminação do uso dessa droga. “O uso de quetamina no tratamento de depressão resistente ainda não está num estágio seguro”, diz Caleb Alexander, codiretor do Centro de Efetividade e Segurança de Drogas da Universidade Johns Hopkins. Há razões para as precauções. Um dos efeitos colaterais da droga, registrado regularmente em danceterias por usuários recreativos, é o efeito dissociativo do anestésico, quando tomado em altas doses – uma espécie de transe que pode ser letal se não for tratado a tempo.
Mesmo sem regulamentação formal, a terapia vem sendo executada em vários centros, em variados graus de segurança e legalidade. David Feifel, chefe dos serviços de psiquiatria adulta da Universidade da Califórnia em San Diego, coordena o primeiro teste clínico controlado desde 2011. Até agora, disse ele à Scientific American, 50 pacientes que não responderam às drogas tradicionais ou a psicoterapias estão alistados. Pelos dados preliminares, ele estima que 70% desses pacientes antes intratáveis respondem à droga. “Os efeitos colaterais têm sido mínimos.”
Feifel já descobriu que o alívio da depressão dura apenas algumas semanas e o paciente precisa de infusões repetidas para se manter. Além da quetamina, o teste avalia também outro anestésico de efeito rápido, a escopolamina. O teste conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde americano, por exemplo, limita-se a apenas uma infusão de quetamina, o que dá perto de três semanas de alívio – é o suficiente para os pesquisadores executarem os testes de ressonância magnética do cérebro e outros exames. Por isso, muitos procuram outras fontes da droga. E a busca é fácil. Para quem está em Nova York, basta consultar na internet o site The New York Ketamine Infusions, o qual oferece até seis infusões, ao preço de 525 dólares por sessão. Não é para qualquer um, portanto.
Enquanto isso, os grandes laboratórios farmacêuticos estão testando variantes da molécula da quetamina, supostamente para eliminar os efeitos colaterais e prolongar seus efeitos antidepressivos por mais tempo. A quetamina propriamente não interessa aos grandes laboratórios. Sua patente está vencida e qualquer um pode entrar no ramo desse genérico, mas basta achar uma variante da molécula ligeiramente diferente para que consigam uma patente milionária.
Antidepressivos tradicionais, como o Prozac, agem no sistema de controle de um neurotransmissor, a serotonina, molécula associada a sensações de bem-estar. Cientistas achavam que a depressão era causada por baixos níveis dessa substância no cérebro. Normalmente os neurônios produzem serotonina nas suas comunicações, nas chamadas sinapses. Também é normal os neurônios recapturarem um possível excesso de serotonina ao redor das sinapses – se a quantidade de serotonina for excessiva, pode ser fatal. Mas, quando o sistema está desequilibrado, o nível da substância cai muito. Uma solução é bloquear a recaptura da serotonina, tornando-a mais disponível.
O problema com essa explicação é que os antidepressivos agem imediatamente diminuindo a recaptura, mas demoram a produzir algum efeito, o que só ocorre por volta de um mês. A nova explicação é que o efeito antidepressivo é causado pelo nascimento de novos neurônios, sendo o aumento de disponibilidade de serotonina apenas o primeiro passo. No caso da quetamina, a ação ocorre no sistema de outro neurotransmissor, o do glutamato. Este agiria intensificando as comunicações entre neurônios já existentes, pela criação de novas sinapses. Ao contrário dos antidepressivos tradicionais, portanto, não seria necessário esperar o surgimento de novos neurônios para aumentar a atividade interneural.
Fora do campo das drogas, a psiquiatria está apostando em outros tipos de terapia que podem também dar resultados. Uma delas é a estimulação magnética transcraniana (EMT), nome complicado para um procedimento simples. Trata-se de um aparelho que emite focos concentrados de magnetismo – o mesmo dos ímãs de geladeira, mas em potência muito maior e na forma de pulsos controlados. O paciente recebe uma espécie de chapéu ou capuz cheio de bobinas elétricas que geram o campo magnético dirigido, o que não é uma coisa fácil tecnicamente, pois o campo magnético se espalha radialmente e não há como obter um feixe concentrado, como se consegue rotineiramente num raio-X para tomografia, por exemplo.
Assim como quando do uso da quetamina, os efeitos são rápidos. O problema é que em nenhum desses dois casos os psiquiatras sabem direito como o efeito é produzido, mas o certo é que essa opção vem atraindo grande interesse científico pela sua efetividade. A EMT, aprovada oficialmente nos EUA e na Europa, é completamente indolor e surte efeitos mais rapidamente que os antidepressivos tradicionais. Mesmo assim, pode ser meio demorada: o tratamento dura entre três e seis semanas, com sessões de meia hora quase todos os dias. Mas os pacientes não reclamam: acham o ambiente da terapia, na penumbra, muito agradável. Algo como uma sessão de meditação profunda, com um pequeno formigamento no couro cabeludo, que os pacientes interpretam como um sinal de que algo bom está acontecendo. Deprimente aí é o preço: 1,5 mil libras (perto de 2,4 mil dólares) por semana. Mas os resultados têm sido compensadores: dos 24 pacientes em teste em Londres, 18 (75%) parecem estar a caminho da remissão e somente quatro (17%) não responderam. Faltam, portanto, ensaios clínicos controlados e estudo de seguimento dos pacientes em longo prazo para se verificar a estabilidade da recuperação. Devido às dificuldades técnicas de se obter um feixe mais preciso de campos magnéticos, o tratamento ainda não pode ser considerado o estado da arte. Heterodoxamente, os psiquiatras arregimentaram engenheiros para ajudar na batalha contra a depressão. Assim, eletricistas da Universidade de Michigan começaram a aperfeiçoar o capacete de EMT. Ele tem agora um arranjo de 64 bobinas magnéticas menores, em vez das oito grandes de uso corrente. O campo magnético produzido gera correntes elétricas, da mesma maneira que o movimento giratório de um ímã produz eletricidade nas usinas.
Até agora, o limite de penetração do campo magnético está limitado a apenas dois centímetros dentro do cérebro. Se a potência é aumentada, ela causa contrações musculares no escalpo do paciente, o que pode ser desagradável. O desafio, portanto, está em aumentar não a potência, mas, sim, sua direcionalidade. Os engenheiros da Universidade de Michigan vão testar novas bobinas, usando metamateriais, do tipo usado experimentalmente em “mantos de invisibilidade” que fazem a luz curvar ao redor de obstáculos, ocultando-os da visão. Esses estudos foram publicados na edição de outubro da publicação IEEE Transactions on Biomedical Engineering. Se conseguirem produzir um feixe mais concentrado, isso vai ser uma revolução nas ciências neurológicas: assim, sem cirurgias, será possível estimular áreas profundas e determinadas do cérebro e descobrir como elas respondem a essas estimulações.
Isso leva a outra tecnologia exótica cada vez mais bem-sucedida: a estimulação elétrica profunda, que no caso provoca o surgimento de correntes elétricas a distâncias bem maiores que o atual limite de dois centímetros da EMT. Porém, nesse caso exigem-se cirurgias para implantar fios ultrafinos que conduzem pulsos elétricos a qualquer região do cérebro. É um procedimento que já passou da fase de teste e tem largo uso, especialmente no tratamento de doenças degenerativas. Perto de 100 mil pessoas em todo o mundo já têm eletrodos implantados no cérebro, especialmente para o tratamento do mal de Parkinson. Os pacientes recebem uma espécie de marca-passo implantado, parecido com os usados no coração, e o usam continuamente até ser preciso trocar a bateria. Segundo resultados publicados no Archives of General Psychiatry Journal no ano passado, 92% dos pacientes tratados apresentaram melhoria e 53% comemoraram uma remissão total dos sintomas. A tecnologia é tão promissora que acaba de receber 70 milhões de dólares da Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa, na sigla em inglês), a agência governamental americana ligada ao Departamento de Defesa, que está muito preocupada com a alta taxa de suicídios de ex-combatentes depois que eles voltam para casa. No ano passado morreram mais soldados americanos por suicídio do que por tiros e bombas nos campos de batalha.
Esses avanços coincidem com novos caminhos que estão sendo abertos para a psiquiatria com a mudança de tratamento e o entendimento das origens da depressão. Agora ela é considerada um sintoma que pode ter várias causas, o que explica o espectro de pessoas que respondem ou não ao tratamento. Os psiquiatras, em vez de buscar terapias seguindo os manuais estatísticos de distúrbios mentais, miram agora a tentativa de neurobiologias de descobrir as causas orgânicas das disfunções (ver “Nem toda loucura tem seu método”, Retrato do Brasil nº 72, julho de 2013). Em vez de ficar testando empiricamente substâncias que são ativas no cérebro, os pesquisadores buscam agora estabelecer as causas biológicas e as disfunções das redes de neurônios que levam aos sintomas conhecidos.
Como se não bastassem as descobertas originais da última década, uma terapia tradicional altamente efetiva está sendo ressuscitada sob novas diretrizes. Trata-se do eletrochoque, ou terapia eletroconvulsiva, que ganhou má fama pela associação da terapia aos horrores da cadeira elétrica usada nas execuções de criminosos nos EUA. A terapia é bem antiga e começou a ser usada na Itália, em 1938, com tanto sucesso que por muito tempo foi considerada a única opção para tratamentos psiquiátricos graves. Na década de 1960, o movimento de antipsiquiatria começou uma forte campanha contra o eletrochoque, em benefício das terapias de conversa e comportamental, consideradas mais humanas e menos invasivas. Além disso, psiquiatras imprudentes usaram o eletrochoque de forma meio indiscriminada. Para colaborar, essa terapia era conduzida sem a sedação do paciente, o que frequentemente resultava em convulsões violentas que levavam até a fraturas ósseas. Atualmente, o choque é aplicado sob sedação e com relaxantes que evitam as violentas contrações musculares. Infelizmente, o estigma contra a eletroterapia persiste até hoje, mas ela é, indiscutivelmente, uma opção a ser considerada, que pode restaurar o equilíbrio psicológico das pessoas que têm uma depressão prolongada e refratária ao tratamento medicamentoso.
FONTE: .blogdaretrato.com.br
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