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Os pobres e o Instituto Millenium
15 de Outubro de 2012, 21:00 - sem comentários ainda Por Paulo Nogueira, no blog Diário do Centro do MundoNão conhecia o Instituto Millenium.
Depois de conhecer, concluí imediatamente que poderia ter continuado a não conhecer.
É o triunfo do arquiconservadorismo nacional. Naveguei pelo site, e vi basicamente uma duplicação desinspirada do que você já vê na grande mídia brasileira: as mesmas pessoas, os mesmos articulistas, as mesmas ideias, o mesmo nhenhenhém.
Vejamos o que o Millenium tem a dizer sobre o tema mais importante da agenda dos líderes globais: a questão da desigualdade social.
Nada. Simplesmente nada. É como se isso não existisse no Brasil. A história está abarrotada de situações em que a extrema desigualdade levou ao caos social, ou a revoluções. Mas para o Millenium isto não é um problema brasileiro.
Vejamos.
A desigualdade é o tema de uma reportagem especial desta semana da excelente revista The Economist, conservadora como o Millenium – mas com a diferença de que é competente, lúcida e persuasiva na defesa de seu ideário.
A Economist afirma, com razão, que o movimento Ocupe Wall St trouxe a desigualdade para a mesa dos debates mundiais. Nos Estados Unidos, ela está no centro da campanha de Obama para derrotar Romney e ganhar uma nova temporada na Casa Branca.
Nos últimos 30 anos, escreve a Economist, uma “dramática” concentração de renda nos Estados Unidos remeteu a uma situação “parecida ou pior” do que a que marcou a infame “Gilded Age” do começo do século 20. Foi a era dos “barões ladrões”, como passaram para a história magnatas americanos como os Vanderbilts, e da miséria para a maior parte da sociedade.
Foi um tempo de extravagâncias chocantes. George Vanderbilt II, por exemplo, ergueu ao longo de seis anos na Carolina do Norte a Biltmore, uma mansão de 250 quartos na qual trabalharam 1000 pedreiros. Passados cem anos, a casa de Bill Gates em Seattle não faz feio diante de Biltmore.
A fatia da riqueza nacional das 16 000 famílias mais ricas dos Estados Unidos – 0,01% — quadruplicou nas três últimas décadas. “A ampliação da desigualdade começa a preocupar até os plutocratas”, afirma Economist.
Não os nossos, aparentemente. Ou não, pelo menos, os agrupados no Millennium. Eles parecem ignorar que, quanto menos desigual uma sociedade, menores as chances de radicalismos ou extremismos florescerem.
A despeito dos avanços recentes, o Brasil tem uma iniquidade pavorosa. No mundo da economia, há uma medição para isso, o chamado Coeficiente Gini. Os países escandinavos, como sempre, são os que aparecem no topo dos lugares em que a distribuição de renda é boa.
O Brasil é um dos últimos colocados. Tem disputado com a África do Sul a duvidosa honra de ser o primeiro da relação dos iníquos.
Segundo números do Banco Mundial, os 20% mais ricos do Brasil concentram 43,3% da riqueza nacional. Os 20% mais pobres têm 2,9%.
O Millenium se bate por esse status quo. Brotam de lá as habituais ladadinhas em relação ao excesso de impostos do Brasil. Isso lembra a pregação cínica de Romney, um especialista em achar maneiras de evadir impostos – com o assim chamado planejamento fiscal, uma arte disseminada entre a plutocracia brasileira. (A Receita cobra na Justiça uma dívida de 2,6 bilhões de reais da Globo, presentíssima no Millennium pelo acionista João Roberto Marinho e mais os colunistas de sempre.)
O Millennium defende um mundo velho, feito de privilégios – e é por isso que não influência e não comove os brasileiros.
A Economist afirma, com razão, que o movimento Ocupe Wall St trouxe a desigualdade para a mesa dos debates mundiais. Nos Estados Unidos, ela está no centro da campanha de Obama para derrotar Romney e ganhar uma nova temporada na Casa Branca.
Nos últimos 30 anos, escreve a Economist, uma “dramática” concentração de renda nos Estados Unidos remeteu a uma situação “parecida ou pior” do que a que marcou a infame “Gilded Age” do começo do século 20. Foi a era dos “barões ladrões”, como passaram para a história magnatas americanos como os Vanderbilts, e da miséria para a maior parte da sociedade.
Foi um tempo de extravagâncias chocantes. George Vanderbilt II, por exemplo, ergueu ao longo de seis anos na Carolina do Norte a Biltmore, uma mansão de 250 quartos na qual trabalharam 1000 pedreiros. Passados cem anos, a casa de Bill Gates em Seattle não faz feio diante de Biltmore.
A fatia da riqueza nacional das 16 000 famílias mais ricas dos Estados Unidos – 0,01% — quadruplicou nas três últimas décadas. “A ampliação da desigualdade começa a preocupar até os plutocratas”, afirma Economist.
Não os nossos, aparentemente. Ou não, pelo menos, os agrupados no Millennium. Eles parecem ignorar que, quanto menos desigual uma sociedade, menores as chances de radicalismos ou extremismos florescerem.
A despeito dos avanços recentes, o Brasil tem uma iniquidade pavorosa. No mundo da economia, há uma medição para isso, o chamado Coeficiente Gini. Os países escandinavos, como sempre, são os que aparecem no topo dos lugares em que a distribuição de renda é boa.
O Brasil é um dos últimos colocados. Tem disputado com a África do Sul a duvidosa honra de ser o primeiro da relação dos iníquos.
Segundo números do Banco Mundial, os 20% mais ricos do Brasil concentram 43,3% da riqueza nacional. Os 20% mais pobres têm 2,9%.
O Millenium se bate por esse status quo. Brotam de lá as habituais ladadinhas em relação ao excesso de impostos do Brasil. Isso lembra a pregação cínica de Romney, um especialista em achar maneiras de evadir impostos – com o assim chamado planejamento fiscal, uma arte disseminada entre a plutocracia brasileira. (A Receita cobra na Justiça uma dívida de 2,6 bilhões de reais da Globo, presentíssima no Millennium pelo acionista João Roberto Marinho e mais os colunistas de sempre.)
O Millennium defende um mundo velho, feito de privilégios – e é por isso que não influência e não comove os brasileiros.
Socialismo: esse ilustre ausente da política brasileira
14 de Outubro de 2012, 21:00 - sem comentários aindaO povo encheu a Praça Diogo Ibarra, onde fica a sede do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), na proclamação oficial da vitória, quarta-feira, dia 10 (Foto: AVN) |
Chávez, depois da vitória eleitoral de 7 de outubro: "Mais de 8 milhões de consciências disseram (à direita): Não, não acreditamos em você. Acreditamos é no socialismo"
Por Jadson Oliveira
Desde que estou por aqui, há uns três meses, noto a ausência do tema na maioria das matérias publicadas no Brasil sobre a Venezuela, matérias que tratam principalmente, claro, das eleições de 7 de outubro, vencidas mais uma vez pelo comandante da Revolução Bolivariana. Falo da blogosfera, porque o que divulgam a Rede Globo, a revista Veja, os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S.Paulo, O Globo & Cia (resumindo, a mídia hegemônica da direita) são simplesmente mentiras e meias-verdades. Falo dos companheiros blogueiros chamados progressistas, de esquerda ou mais à esquerda.
Compreendo que o socialismo não existe na pauta do dia-a-dia da política brasileira. Mesmo porque esta pauta é ditada pelas corporações da mídia, atreladas aos ditames do império das grandes empresas transnacionais, cujo representante maior é o governo dos Estados Unidos. E a pauta última foi criminalizar o governo do ex-presidente Lula e seu partido, o PT, através do chamado mensalão e dos antes nunca distinguidos “justiceiros” do Supremo Tribunal Federal (STF), como se a direita tivesse moral para se arvorar vanguarda da luta contra a corrupção. Isso e, amarrado a isso, as eleições municipais, quando, felizmente, os eleitores não se mostraram muito atentos às orientações da velha mídia.
Chávez não perde oportunidade de conversar com os jornalistas (Foto: AVN) |
Tais forças de esquerda, ou mais à esquerda, não têm meios de comunicação de massa para sustentar suas lutas e incentivar a mobilização, salvo alguns de pequeno poder de fogo como o jornal semanal Brasil de Fato e a revista mensal Caros Amigos, além da revista semanal Carta Capital (que não é de esquerda, mas faz um jornalismo de credibilidade) e alguns blogs. Não há um jornal diário confiável e parece não haver qualquer iniciativa neste sentido. Emissora de TV, nem pensar. A TV Brasil, estatal, é de uma timidez inacreditável. O governo petista prefere (ou é obrigado pelas “forças ocultas” do poder) ajudar a financiar a grande mídia direitista com a gorda verba da publicidade oficial. Quer dizer, paga pra apanhar.
Jornal chavista se referiu a Lula como “líder socialista”
Faço essa provocação instigado por um fato: quando o jornal Ciudad Caracas (editado pela prefeitura de Caracas, um dos três chavistas, contra cerca de 15 jornais anti-chavistas vistos nas bancas do centro da capital venezuelana) deu como manchete da primeira página: “Lula a Chávez: sua vitória será nossa vitória”, o texto da chamada de capa referiu-se a Lula como “o líder socialista”. Pode ser? (Isso foi durante o Foro de São Paulo, realizado aqui em Caracas, em julho, quando num vídeo Lula manifestou seu apoio à campanha pela reeleição de Chávez).
Já tentei mostrar em matéria recente que a vitória de Chávez referendou a construção do socialismo bolivariano do século 21, como é denominado por aqui, pois o tema consta oficialmente de seu programa de governo para o próximo período na presidência (2013-2019) e foi discutido amplamente durante a campanha. Agora selecionei algumas referências feitas por Chávez após o anúncio de sua vitória – discursos nas comemorações, na proclamação oficial dos resultados e na posse de novos ministros, bem como em concorridas entrevistas coletivas a jornalistas nacionais e internacionais -, com base na divulgação feita pela estatal Agência Venezuelana de Notícias (AVN).
Chávez em coletiva depois da eleição no Palácio Miraflores: segundo informações oficiais, havia representantes de 74 meios de comunicação (Foto: AVN) |
"(O novo período de governo de 2013 a 2019) deve ser de maior avanço, de maiores conquistas, de maior eficiência nessa transição do capitalismo, do neoliberalismo, ao socialismo que é a verdadeira democracia".
"Desde sempre visualizamos nosso projeto como histórico, quer dizer, de longo alcance. Nunca tivemos aqui uma visão de curto prazo".
Chávez destacou que nas eleições mais de 8 milhões de venezuelanos ratificaram seu respaldo ao socialismo, mencionou que o rumo que há na Venezuela é a salvação da pátria e do povo, enfocada na construção do socialismo bolivariano do século 21.
“Não é o poder das burocracias que vai solucionar os problemas do povo".
"Se deve continuar dando mais poder ao povo, essa é a solução. Não é o poder das burocracias e das elites que vai solucionar os problemas do povo". Assegurou que serão cumpridas a fundo as determinações da Constituição da República Bolivariana da Venezuela, para assim consolidar e seguir com a construção do socialismo do século 21.
Diante de representantes de 74 meios de comunicação nacionais e internacionais, Chávez informou que em 10 de janeiro de 2013 (data da posse para o novo mandato de seis anos) entregará o segundo Plano Socialista da Nação à Assembleia (Congresso) Nacional.
"Sem participação popular, qualquer modelo democrático é falso".
Chávez indicou que a vitória de 7 de outubro constitui a conquista do primeiro grande objetivo histórico do plano de governo para 2013-2019, "que não é outro senão o de haver conservado o bem mais precioso que conquistamos depois de 500 anos de luta: a independência nacional". Acrescentou que desta maneira se garante a continuidade do projeto socialista que lidera, e que busca oferecer a maior soma de felicidade para o povo venezuelano, por isso que "não haverá força imperialista, por maior que seja, que possa com o povo de Simón Bolívar".
"Venezuela nunca mais voltará ao neoliberalismo, continuará transitando rumo ao socialismo bolivariano do século 21".
Durante a coletiva, uma jornalista canadense lhe perguntou sobre problemas do socialismo. Ele respondeu (vou citar de memória): “Você se assusta com o socialismo? Deveria se assustar é com o capitalismo. Veja o que acontece na Europa, comadre...”
No ato de posse, conclamou os novos ministros à “luta pela transformação do velho Estado capitalista e burguês" num Estado socialista que defenda os direitos dos venezuelanos, contidos na Constituição da República Bolivariana da Venezuela.
(*) Jadson Oliveira é jornalista baiano e vive viajando pelo Brasil, América Latina e Caribe. Atualmente está em Caracas (Venezuela). Mantém o blog Evidentemente (blogdejadson.blogspot.com), onde você encontra mais informações sobre a Venezuela.
Terra de ninguém
14 de Outubro de 2012, 21:00 - sem comentários ainda
Disputada por Ceará e Piauí, região de 3 mil Km2 vive isolada do resto do Brasil e sofre com a falta de serviços públicos, a seca e os políticos que, em vez de resolver, se aproveitam da situação
Por Guilherme Paravin * - Agência Pública
A escola de ensino fundamental 15 de Novembro é a única do povoado de Cachoeira Grande. Seu nome homenageia a proclamação da República. Passados 123 anos do episódio histórico, o clima é desolador. As paredes rachadas contrastam com uma sala de computadores de ponta. Os salários estão atrasados. Funcionários procuram a prefeitura e são informados de que o município não tem dinheiro. A situação, dizem os moradores, é recorrente.
O professor Antônio Ribeiro, 60 anos, pega um mapa detalhado da Região Nordeste, com todas as cidades e distritos dos estados, e mostra para a reportagem um local entre o Ceará e o Piauí: “Olha, aqui é onde Cachoeira Grande deveria estar. No papel, não há sinal da sua terra. “Pode olhar, nós não estamos no mapa!”
O lugarejo está mesmo num limbo. No papel, trata-se de um distrito de Poranga, município do Ceará, a mais de 40 quilômetros dali. Todos votam na cidade cearense e a pouca estrutura recebida chega de lá. Mas parte do distrito é reivindicada por Pedro II, município do Piauí. A situação complexa arrasta-se desde 1880, quando o imperador dom Pedro II assinou um acordo que previa a troca de terras entre Ceará e Piauí. Sem saída para o mar, os piauienses pediram uma compensação territorial dos vizinhos. Mas os estados nunca demarcaram oficialmente as divisas.
Assim, há 132 anos, os dois estados travam batalhas para ter – e às vezes para não ter – terras do meio desse bolo. Entre a população local, a área ganhou vários nomes: de Faixa de Gaza do Nordeste, usado por alguns jornais, até o mais usual, Zona de Litígio, que acabou, pelo formalismo, sendo adotado por políticos e órgãos oficiais.
Ainda que parte da imprensa local goste do título que faz referência à região em disputa no Oriente Médio, a comparação é descabida. A zona nordestina é muito maior – com cerca de 3.210 quilômetros quadrados, quase dez vezes o território disputado por Israel e a Autoridade Palestina. Na Zona de Litígio caberiam duas vezes a área da cidade de São Paulo. São sete municípios afetados no Piauí e 13 do Ceará. Todos possuem ao menos um povoado com localização indefinida. Os piauienses são: Buriti dos Montes, Cocal, Cocal dos Alves, Luís Correia, Pedro II, São João da Fronteira e São Miguel do Piauí. Cearenses: Carnaubal, Crateús, Croatá, Granja, Guaraciba do Norte, Ibiapina, Ipaporanga, Ipueiras, Poranga, São Benedito, Tianguá, Ubajara e Viçosa do Ceará.
Desde 1991, os dois estados intensificaram negociações para resolver a questão. Enquanto isso, moradores dessa área de divisa ficaram por anos sem ajuda de governo estadual. A luz em povoados rurais de Luís Correia, no Piauí, e Poranga, no Ceará, chegou há menos de uma década. Quanto a serviços de saúde e educação, o problema foi pior. Se quisessem ir a escolas e hospitais, os habitantes tinham de se deslocar até as regiões mais próximas – ou mais acessíveis, já que as estradas são poucas. Com base nessa relação de proximidade, as pessoas foram se dividindo entre cearenses e piauienses. A maioria, de acordo com o Censo 2010, que colheu dados na região, elegeu o Ceará como seu estado. O governo cearense, por sua vez, passou a enviar alguns poucos benefícios, como agentes de saúde e transporte escolar, para esses moradores da divisa.
POEIRA SEM DONO
A disputa de grandes proporções atrapalha a chegada de recursos e do desenvolvimento. Uma tradução disso está bem no chão de Cachoeira Grande: o asfalto não chega porque não se sabe qual estado é dono do chão. Para quem sai do Piauí, o distrito fica na continuação da BR-404. Até o início da área de litígio, poucos quilômetros antes da entrada para Cachoeira Grande, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes do Piauí (DNIT-PI) asfaltou. Mas, quando surge a placa da divisa entre os dois estados, o asfaltamento some. A justificativa é que o órgão “não tem prerrogativa legal para fazer a obra”.
Enquanto a situação não for esclarecida, nem o DNIT-CE vai asfaltar o trecho. A partir da divisa, então, são centenas de quilômetros de estrada de terra. Ramificados, esses caminhos tortuosos levam a Cachoeira Grande e, depois, desembocam em várias comunidades isoladas, onde a cidadania ainda não apereceu. Todas elas, mesmo estando a muitos quilômetros de distância de Poranga, são consideradas parte do município cearense. Mas somente nas proximidades da zona urbana o asfalto reaparece.
Às 9h do dia 19 de agosto, a lavradora Antônia de Souza, de 33 anos, já está no segundo carrinho do dia. Sob sol forte, ela apoia os pés descalços sobre uma base de cimento, curva o tronco e puxa o balde preso à ponta da corda. Despeja a água em uma vasilha. Ajeita o cabelo, a alça do vestido roxo, e refaz o processo. A seguir, outro recipiente. Puxa a corda. Enche. Repete. Os minutos passam. Antônia, concentrada, permanece em silêncio. Completa com a quarta vasilha o carrinho de mão e o empurra por cerca de dois quilômetros até sua casa, despeja a água em baldes e, sem descanso, regressa ao poço para buscar outro tanto. Até o meio-dia, serão mais quatro viagens.
A água que Antônia puxa e empurra é preciosa: serve para que ela, o marido e os cinco filhos – de 6 meses a 12 anos – tomem banho, se alimentem e lavem as roupas. “Pra beber num dá.” O abastecimento dura um dia. Na manhã seguinte, realizará o mesmo ritual. O lugar onde mora remete a paisagens desérticas. A região enfrenta uma das piores secas dos últimos 60 anos. A água é um luxo.
O problema é antigo. O centro de abastecimento, constituído por dois poços, nunca foi suficiente para as 167 famílias da localidade. Próximo à entrada do distrito, Antônio Almeida, de 44 anos, dono de um modesto armazém que vende de rações a artigos de limpeza, diz que ouve promessas desde 1981, quando chegou ao povoado.
Não faz muito tempo, por mutirão da associação de moradores, as casas começaram a ganhar encanamentos. A “novidade” pouco adiantou. O abastecimento é tão fraco que dos canos, hoje, não sai nada além de respingos. A situação é de racionamento rigoroso. “Num dia tem, noutro não”, resume ele. Quando tem, pelo período de uma hora em que a água flui, em geral pela manhã, os moradores abrem as torneiras e tentam, gota a gota, estocar. Todos temem pelo pior. Com a falta de chuva, vai diminuindo o já escasso reservatório.
Na entrada de Cachoeira Grande, por contraste à situação árida, há uma imponente caixa d’água, uma espécie de monumento. “Falta só a água”, diz Raimundo Moreira, de 66 anos, tesoureiro da associação de moradores. Quem pode faz um poço particular.
Depois de economizar por alguns anos, Antônio Almeida perfurou uma porção de terra atrás de sua casa para puxar água. “Não é o ideal, mas ajuda”, diz, sentado em sua vendinha, abastecida de refrigerantes e água mineral. “O pessoal aqui não tem dinheiro para isso. Mas tem uma festa semana que vem e vem gente de fora.” (Na semana seguinte, por conta da campanha eleitoral, haveria um evento regado a música e comida de graça. A cidade tinha apenas dois postulantes a prefeito, um do PSDB, outro do PP, e 21 candidatos para nove vagas na Câmara Municipal.)
ISOLAMENTO
Poranga tem cerca de 12 mil habitantes, um terço na zona rural. São pessoas que sobrevivem da lavoura em povoados distantes uns dos outros. Gonçalo Correia de Melo, de 58 anos, mora na comunidade de Arraial, junto com outras 70 famílias. Sentado à pouca sombra, na pausa para o almoço, ele diz que não se lembra de estiagem pior que essa. “Este ano não deu pra pegar nem um pouco de feijão.”
A escassez se repete pelos arredores. Poranga é uma das 171 cidades cearenses (de 184) em “situação de emergência” por conta da seca. No Piauí, são 191 de 224. Árvores sem folhas, plantações sem cor, bois com as costelas à mostra e animais mortos na estrada são imagens comuns. Em locais mais afastados, notam-se casas vazias marcadas pela terra batida que, empurrada pelo vento, pinta as paredes brancas de laranja.
São retratos de um profundo isolamento. Segundo os moradores do campo, as ajudas do município são quase nulas. A relação entre prefeitura e comunidades rurais é sedimentada por interesses bem claros. Além de os trabalhadores do campo serem grande parte do eleitorado, o município precisa mantê-los em sua posse para receber uma verba maior dos governos federal e estadual. Vem daí o interesse para haver tanta disputa pela zona de litígio.
No Brasil, de acordo com o programa de Fundo de Participação de Municípios, o repasse de verba para a prefeitura varia de acordo com o contingente. Quanto mais gente, mais dinheiro a cidade recebe. Daí o desinteresse de Poranga de não perder os 66% de seu território exigidos pelo Piauí.
Quando a eleição municipal se aproxima, a campanha é voraz. Cabos eleitorais batem à porta dos moradores, prometem melhorias, pedem para colar cartazes, pintar casas. Em meados de agosto de 2012, já era possível ver o embate em Arraial, Cachoeira Grande e Pitombeiras, todas comunidades pertencentes a Poranga e inseridas na Zona de Litígio. De um lado, pessoas ligadas ao atual prefeito, Aderson Pinho Magalhães (PSDB), há oito anos no poder, se ofereciam para pintar casas com cores do partido e o nome do candidato, o atual vice e também tucano Dr. Cárlisson. Em resposta, o opositor, Professor Adriano (PP), se dispunha igualmente a pintar casas e distribuir cartazes.
O lavrador José Teixeira, de 53 anos, muito alto e muito magro, com boné de candidato de eleições passadas, deixou sua casa ser pintada. Toda a parte externa foi colorida de azul claro, com tons de amarelo e branco por cima; na entrada, em letras enormes, o nome de Dr. Cárlisson. “Faço isso por consideração. Não sou ligado em política”, diz. Teixeira vive com a mulher e um filho. Neste ano, plantou milho e feijão. Perdeu “95%” por causa da seca. Estima em “uns R$ 200” a sua única fonte de renda, o Bolsa Família. “Não tá dando pra viver, não”, diz, com voz pacata. “Aqui a gente tem muita carência.”
A um longo caminho dali, no povoado de Pitombeiras, os aposentados Nasteriano Gregório de Neto, de 73 anos, e Santiago Bezerra, de 94, dizem que as visitas de autoridades acontecem de quatro em quatro anos. “Nesses últimos oito anos, o prefeito veio aqui uma vez, para abrir as torneiras e derramar água”, conta Nasteriano. “Político só vem para pedir voto”, diz Santiago, que fala e enxerga com bastante dificuldade – e lembra de ter tomado vacina apenas uma vez na vida. “Às vezes os caras dão tantos mil pra garantir tantos votos.”
Também é prática corriqueira prometer empregos, vagas em concurso e até materiais de construção. Numa região de litígio próximo à Granja, no Ceará, uma mulher, que a princípio não queria falar de política, revelou que um vereador lhe prometeu um saco de cimento, quatro anos atrás. Ela votou, e ele nunca mais apareceu. Sem querer dizer seu nome à reportagem, pediu licença e saiu.
SEM SALÁRIOS NEM RECLAMAÇÃO
“Aqui todo mundo sabe quem vota em quem, quem apoia quem”, diz uma professora da comunidade rural, que prefere não se identificar. Ela afirma que, na escola na qual trabalha, não se recebe salário há meses e, mesmo assim, ninguém reclama. Os funcionários públicos temem ser perseguidos e perder os poucos benefícios que têm, como o Bolsa Família e o Garantia Safra, voltado para os agricultores familiares de áreas que sofrem com perda de safra por motivo de seca ou excesso de chuvas. Todas as 2 mil famílias identificadas como pobres em Poranga são atendidas pelo Bolsa Família, em média de R$ 150.
Em Saudoso, comunidade minúscula entre Cachoeira Grande e a zona urbana de Poranga, Lúcia Bezerra Britto, de 55 anos, conseguiu há 15 uma vaga como auxiliar na escola local por meio de um concurso oral. Ficou por vários períodos sem salário e, em agosto, estava há quatro meses sem receber. “Colam avisos no mural falando que não tem dinheiro.”
Merendas também não chegam. As crianças sentem fome e reclamam. Quando pode, Lúcia leva alguma coisa de casa para oferecer. Mas não consegue resolver a principal queixa dos alunos, a falta de água. “Não tem água nem para minha família, como vou ajudar?”, diz ela ao lado do marido, Chico, um lavrador que perdeu a safra, e da filha mais nova, de 23 anos, que acabou de ser mãe.
Sem lavoura, sem salário e sem água, ela e o marido dependem da ajuda dos filhos. Três estão em São Paulo, uma no Rio de Janeiro. Todos os dias, ela recebe ligações deles pelo celular – um bem que nunca falta na região. O que mais ajuda trabalha como porteiro em um prédio. Casado, ganhando pouco mais de um salário mínimo, o filho envia ajuda todos os meses. A família compra remédios e sobra pouco. Eles também vendem alguns alimentos e bebidas em um bar improvisado diante da casa, à beira da estrada. Ficam de prontidão para o caso de alguém procurar por uma bebida ou uma fruta. Mas é raro alguém parar.
No centro urbano de Poranga, o hospital que estava sendo construído teve as obras interrompidas há alguns meses. Outros projetos, como quadras poliesportivas, também estão parados. Em ano eleitoral, a única coisa que não cessa são as promessas. O que não é de todo ruim. Os cabos eleitorais ganham uma ajuda financeira que chamam de “simbólica” para trabalhar na campanha – um salário mínimo, valor nada simbólico para a região. Além disso, os favores pré e pós-eleição, além dos empregos públicos proporcionados, têm grande influência na realidade socioeconômica de cidades como essas.
IDENTIDADE DIVIDIDA
“Ele veio aqui e disse que a gente não morava mais no Ceará.” A aposentada Isabel Inácio do Nascimento, de 66 anos, não lembra bem quando nem como. Sabe que foi entre novembro e dezembro de 2011, o tempo estava seco, a temperatura acima dos 35 graus. Ela se recorda somente de uma prancheta, onde ele anotava tudo o que via. “Foi isso: chegou aqui e falou que agora éramos do Piauí”, diz. “Mas como, sendo cearense toda a minha vida, agora vou ser do Piauí?” Ela balança a cabeça, enérgica, e gesticula violentamente: “Nunca! Nunca!”
Moradora do povoado de Sumaré, Isabel não sabe dizer, hoje, a qual estado pertence. Desde criança vive na mesma casa rústica, à beira da estrada de terra, que diziam ser do distrito cearense de Viçosa. Na hora de procurar serviços, ainda que tivesse de se deslocar por muitos quilômetros, de carona em carro ou moto, sempre foi recebida no Ceará. Desde os últimos dados do IBGE – ao qual o “homem de prancheta” pertencia –, porém, ela e as mais de 20 famílias dali foram contabilizadas como habitantes do distrito de Cocal, no Piauí.
Os moradores do povoado acreditam que, se passarem para o Piauí, a condição de vida, que já não é boa, vai piorar. “Em Cocal, o posto médico é difícil, falta doutor”, diz José Nascimento, de 30 anos, filho de Isabel. As famílias também temem, sendo cocalenses, perder os benefícios do vale-leite e o transporte escolar.
Isabel mora com o marido, o filho, a nora e dois netos: uma de 4 anos e um de 8, com deficiência mental. Hoje, eles têm direito a um transporte escolar para o garoto, que passa na porta de casa ao meio-dia, de segunda a sexta-feira, levando-o até Juá, cidade do Ceará. “Deus me livre do Piauí!”, diz Isabel.
Situação inversa ocorre nos povoados rurais que pertenciam a Cocal. Os habitantes foram notificados, de modo informal, que passariam a integrar o município de Granja, no Ceará. Em Conduru a notícia foi mal recebida. A diminuta população reclama que o acesso a Granja é difícil. Não há estrada do povoado até a cidade. Para ir a um hospital, teriam de percorrer quase o dobro do caminho que fazem até Cocal da Estação ou Viçosa.
De certa forma, todos os moradores da área de litígio estão acostumados com uma busca dividida de serviços. Dependendo da necessidade, da urgência e da distância, deslocam-se para um estado ou para outro. Em meio a isso, há ainda uma identificação afetiva. Os moradores só abrem mão de sua identidade estadual em troca de mais acesso a serviços essenciais. Do contrário, preferem deixar como estava antes de o IBGE passar. “Apesar do sofrimento, sou piauiense”, resume a lavradora Francimeire Alves Vieira, de 39 anos, de Conduru.
Cocal lembra Poranga pelos problemas que enfrenta. Sua comunidade rural é maioria (53% dos pouco mais de 26 mil habitantes). Desse grupo, nenhuma residência, de acordo com o IBGE, possuía saneamento básico adequado em 2010.
Outra semelhança está na gestão pública. O ex-prefeito José Maria Monção (PTB), que exerceu mandato até 2008, teve recentemente pedido de prisão decretada pela Justiça por irregularidades na prestação de contas identificadas pelo Tribunal de Contas do Piauí. Já o último prefeito eleito, Fernando Sales, teve o mandato cassado em julho por infidelidade partidária, de acordo do decisão do Tribunal Regional Eleitoral. Eleito pelo DEM, mudou para o PSB sem apresentar justificativa. Sales recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral e ganhou o direito de reassumir.
Ao voltar, na segunda semana de setembro, acusou um rombo de mais de R$ 200 mil que teria ocorrido durante os dois meses de mandato do vice, Chico Preto (PSD). “Depois de observar os extratos bancários da prefeitura tomei um susto. Tem dois saques de R$ 70 mil, um de R$ 30 mil e outro de R$ 20 mil, além de transferências de R$ 5 mil, R$ 10 mil e R$ 15 mil reais num só dia”, disse Sales ao diário piauiense O Dia. De acordo com o advogado do prefeito, Raimundo Júnior, o dinheiro sacado era proveniente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (o Fundeb).
Enquanto governava, Chico Preto havia dito à reportagem que a cidade sofria com más administrações e que a maior parte da população buscava atendimento em outra cidade, outro estado, por falta de investimentos da área da saúde. “O pessoal diz: ‘Se vocês são do Piauí, por que vêm pra cá’? Eles são constrangidos.” O povo que está na área do litígio, segundo Preto, só é do Piauí para tratar de documentação e de escola – “todas em péssimas condições”.
O CEARÁ ENTROU NO PIAUÍ
A confusão sobre a qual estado os habitantes da Zona do Litígio pertencem aumentou devido a uma mudança no método do IBGE. No ano passado o instituto resolveu fazer medições dos limites das cidades. Até então, havia apenas uma checagem baseada em mapas antigos. Segundo Pedro Soares de Silva, supervisor de informações do IBGE no Piauí, tentou-se estipular, com base em documentos históricos, onde começava e terminava cada estado. A conclusão foi que o Ceará entrou no Piauí.Mas ele esclarece que as linhas traçadas para demarcar a divisão do território valem apenas para o Censo. Para valer uma demarcação oficial é necessária a aprovação uma lei federal que resulte de um acordo avalizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).Desde 1991 os dois estados decidiram intensificar as negociações sobre o litígio fronteiriço. Pouca coisa avançou. A conversa foi retomada em 2003 e uma proposta de acordo foi apresentada em 2008. Como o ritmo do processo seguiu lento, o governo do Piauí ingressou em 2011 com ação civil no Ministério Público Federal em que reivindica uma área de 2.821 quilômetros quadrados, hoje, informalmente, do Ceará.A Advocacia-Geral da União (AGU) passou a mediar o caso. Os dois estados voltaram a dialogar e farão, ainda em 2012, uma “experiência”, segundo o procurador-geral do Piauí, Kildere de Carvalho Souza. Serão feitas, com ajuda do IBGE e do Exército, medições detalhadas de um trecho do terreno em disputa (entre Poranga e Pedro II) para obter as linhas divisórias de cada estado. Se ambos concordarem com os resultados dessa etapa, que envolve apenas um pequeno trecho do litígio, a tendência é que o método seja aplicado nas demais áreas. A partir daí, bastará o aval do STF.Caso os estados não concordem, Isabel continuará sem saber em que estado mora, as pessoas continuarão a se deslocar de um estado para outro atrás de serviços públicos e as terras continuarão sendo de ninguém.
* Gulherme Pavarin (guilhermepavarin@gmail.com) é jornalista e mora em São Paulo. Apaixonado por reportagens, hoje trabalha na Revista Época. Esta reportagem foi realizada por meio do Concurso de Microbolsas de Reportagem, em parceria com a Rede Brasil Atual.
Venda da Amil pode significar a 'americanização' da saúde no Brasil
13 de Outubro de 2012, 21:00 - sem comentários ainda
Especialista adverte que, além de controlar a saúde privada no Brasil, a UnitedHealth vai vender planos baratos mas com cobertura restrita, empurrando para o SUS os tratamentos mais caros
Por: Cida de Oliveira, Rede Brasil Atual
São Paulo – A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deverá anunciar nos próximos 15 dias se aprova a venda da Amil, maior operadora de planos de saúde no Brasil, para a UnitedHealth Group, gigante do setor nos Estados Unidos. A transação, que já vinha sendo estudada há alguns meses, foi anunciada nesta terça-feira (9). O negócio envolve a venda de 90% da Amil para a United pela quantia de US$ 4,3 bilhões. A legislação brasileira proíbe a participação de capital estrangeiro em hospitais brasileiros, mas não impede em operadoras de planos de saúde. Representantes de usuários de planos de saúde já manifestaram temores. Toda vez que há fusões ou vendas eles são afetados principalmente com mudanças na rede credenciada.
A preocupação é maior agora, quando se trata do controle do sistema de saúde brasileiro por uma empresa estrangeira. Se o negócio for aprovado, os 22 hospitais próprios da Amil também serão administrados pela empresa estrangeira. Conforme o grupo americano já anunciou, seu interesse está no crescente mercado brasileiro. A transação é interessante também para os controladores brasileiros da Amil, que ficam com os 4,3 bilhões de dólares, com os 10% das ações e o comando as operações. Já o sistema de saúde brasileiro não tem o que comemorar. “A venda sinaliza um caminho que pode ser sem volta. Não é só a possibilidade de outras empresas estrangeiras da saúde virem para cá. É a lógica do crescimento do setor privado que preocupa”, analisa Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda-SP, assessor do Conselho Federal de Medicina e conselheiro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Na entrevista a seguir ele analisa as implicações da venda da Amil para o sistema de saúde do país.
Como você analisa a venda da Amil?
A entrada agressiva no mercado brasileiro da empresa norte-americana, que é uma das maiores operadores de planos de saúde do mundo, tem o objetivo explícito de obter aqui os lucros que não obtém mais no mercado americano. Isso mostra que a gente pode caminhar para a ‘americanização’ da saúde no Brasil, uma amostra do que virou esse mercado nos Estados Unidos. É o que esse perfil de capital estrangeiro quer implementar no Brasil ao comprar 90% da Amil. Ou seja, amostra do principal fracasso dos Estados Unidos ao não conseguir universalizar o atendimento público com equidade. Tanto a Amil como a United tem destacado a grande oportunidade de negócio para esse capital estrangeiro. É nesse momento de franco crescimento do mercado brasileiro que o negócio é feto. O mesmo crescimento econômico que possibilitou novos empregos, renda e consumo também alimentou a demanda por planos de saúde privados.
O interesse dos americanos está nessa classe média emergente?
Pelas declarações que estão sendo feitas, esse capital estrangeiro está interessado justamente no mercado de planos populares, baratos. O problema é que a franca expansão desse mercado ocorre de maneira totalmente desordenada, até artificial eu diria. Hoje, 80% dos planos de saúde privados no Brasil são ofertados pelos empregadores. São os planos coletivos, que se tornaram prioridade de sindicatos em sua pauta de reivindicações e o desejo de grande parte das famílias, dos indivíduos que estão ascendendo no mercado de consumo. Isso acontece por desilusão, pelo descrédito no sistema público, no Sistema Único de Saúde (SUS), que em parte há uma certa razão. Com o subfinanciamento público do sistema não é possível oferecer um atendimento de melhor qualidade. Mas por outro lado as pessoas desconhecem a importância e o papel imenso que o SUS tem hoje. Com isso há o desejo de consumir planos privados. E o mercado que está crescendo mais é o dos planos populares, mais baratos, que oferecem uma cobertura medíocre. O problema é que tudo isso acontece com a conivência da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão constituído para regular o setor e que não regula.
Também há filas na saúde privada...
Parte desse apagão na saúde suplementar, com a rede lotada, filas de espera semelhantes às do serviço público, dificuldade para marcar consulta, demora na internação eletiva. Isso ocorre em grande parte por esse crescimento desordenado. A agência reguladora foi capturada pelo mercado que ela deveria regular. No momento a agência estaria renovando seus quadros, que durante muito tempo tiveram em sua maioria representantes do setor. O atual presidente [Maurício Ceschin], que foi presidente do Grupo Qualicorp, uma grande corretora brasileira que vende planos de todas as operadoras. Com uma regulação frouxa, incompetente, tem-se um crescimento desordenado.
A situação tende a piorar?
A coisa tende a piorar com a ampliação que pode vir com essa aquisição. E isso tem de ser debatido. Que sistema de saúde nós queremos? Essa cobertura privada centrada em poucas mãos, que nunca vai ser uniforme e continuada. Muitos se esquecem de que há diferenças muito grandes entre os vários produtos comercializados. Muitos acham os planos de saúde são produtos homogêneos. E não é. Cobrem e dão atendimento conforme a capacidade de pagamento das pessoas. Quanto mais barato, mais popular, pior. Depois, se a pessoa sai do emprego, fica descoberta porque a maioria dos planos são coletivos. E tem ainda a chamada exclusão pecuniária, que é a expulsão dos idosos dos planos individuais. Entre os coletivos há também uma epidemia que chamo de falsos coletivos. São planos para duas, três, quatro pessoas que podem ser feitos por microempresários. Basta o CNPJ [Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica]. Em geral o índice de reajuste desse plano foge da regulação. A operadora tem a prerrogativa de aumentar por sinistralidade, ou seja, quando os beneficiários passam a usar muito a rede credenciada. Fica tão caro que a pessoa tem de romper o contrato porque não vai mais conseguir pagar. No começo, chegam a custar 40% menos e depois chegam a ter mais de 100% de aumento. Trata-se de um setor em expansão que não garante o que se espera de um plano de saúde. Eles florescem justamente num momento em que as despesas com saúde estão subfinanciadas. Na saúde privada, que atende ¼ da população brasileira, circulam 53% de todos os recursos. E apenas 47% circulam no SUS para dar todo o atendimento, promoção da saúde, prevenção de doenças, vigilância sanitária, atendimento a doenças complexas, como cirurgias de grande porte, transplantes, tudo o que o SUS faz. Enquanto houver essa equação vamos acirrar o problema. Vão mais recursos para atender a menor parte da população. A dificuldade de acesso e a baixa qualidade estão ligadas diretamente a isso.
E o subsídio público para a saúde privada?
A saúde privada recebe subsídios públicos diretos e indiretos. Essa é uma questão que precisa ser discutida em praça pública por toda a sociedade. A população não tem noção de que os planos de saúde são financiados por empregadores públicos e privados, que embutem esse custo no preço dos produtos e serviços que toda a sociedade consome. É a sociedade que paga esse benefício que os empregadores dão aos seus trabalhadores. E tem o subsídio fiscal, em que pessoa física e jurídica abatem seus gastos com saúde no imposto de renda. São recursos que o estado poderia arrecadar e não arrecada. O plano de saúde ganha com isso porque se tornam mais atrativos. E o governo gasta também com planos particulares para os servidores. No ano passado foram gastos R$ 3 bilhões. Além disso, algumas operadoras, cooperativas e outras têm isenções de impostos. Há também uma forma de subsídio que é a cobertura de tudo que os planos não cobrem mas que o SUS atende.
O beneficiário dos planos podem ser prejudicados?
O Idec [Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor], no qual integro o conselho diretor, e outras instituições têm se manifestado para que o governo, antes de aprovar a venda, avalie o real impacto da transação, a maior concentração do mercado. É a maior operadora do país que está sendo vendida. Essa concentração é ruim ao monopolizar mais redes credenciadas. Pode, por exemplo, impor pagamentos irrisórios para os prestadores. Isso pode significar a piora na qualidade. Fora o impacto na política de saúde. Trata-se de um sinal de que pode haver um crescimento desse mercado. O que estou dizendo aqui é que o Brasil pode estar trilhando um caminho sem volta. Não é só a possibilidade de outras empresas virem para cá. É a lógica do crescimento do setor privado com a injeção adicional de recursos nesse mercado. O Brasil está numa encruzilhada. Precisa discutir se quer o predomínio dos planos privados incompatíveis com o sistema de saúde universal, comprometido com a promoção da saúde, se quer favorecer e permitir a ascensão desse mercado fragmentado em que as pessoas têm acesso não pelas necessidades de saúde mas conforme a sua capacidade de pagamento. Ou se quer investir nossa riqueza coletiva no financiamento de um sistema público que hoje é subfinanciado, universal, e ser capaz de atender adequadamente a população. É uma discussão que tem que ser feita.
O setor privado argumenta que desafoga o SUS...
O crescimento do privado, com a injeção de recursos estrangeiros, não desafoga o sistema público. Pelo contrário, reduz a disponibilidade de recursos humanos no sistema público, transfere a capacidade de produção para o privado, não reduz as filas. E as restrições, as negativas de atendimento, empurram para o SUS os idosos, os enfermos com problemas de alta complexidade. Mais gasto com a saúde privada significa fragmentar o sistema de saúde e reduzir aquela característica distributiva, dos sistemas universais. Quanto mais recursos da saúde concentrados em grupos particulares como Amil, menor é a capacidade do poder público de regular. Corremos o sério risco de ver, em curto prazo, a hegemonia do setor privado, na contramão do sistema universalizado preconizado na Constituição e na contramão de vários países, inclusive Estados Unidos. Afinal, a reforma do Obama é fruto do fracasso americano na saúde. Precisamos ver também que esse crescimento desordenado, artificial, casa com o discurso de que o SUS é inviável. A lógica é velha. Transfere as obrigações para o cidadão que pode pagar e empobrece a oferta àqueles que só podem contar com o público. Essa negociação é realmente preocupante.
Eduardo Marinho em mais um vídeo imperdível
9 de Outubro de 2012, 21:00 - sem comentários aindaO vídeo foi visualizado no blogue Com Texto Livre.