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O sentido das manifestações não seria a refundação do Brasil?
29 de Julho de 2013, 14:36 - sem comentários aindaEfetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências centrais, antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities.
O que o povo que estava na rua no mês de junho queria, em último término, de forma consciente ou inconsciente? Para responder me apoio em três citações inspiradoras.
A primeira é de Darcy Ribeiro no prefácio ao meu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos((1998):”Nós brasileiros surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar um povo. Queria tão somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo desgaste de gentes”.
A segunda é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais recente e criativa interpretação do Brasil: ”A refundação do Brasil: Rumo à sociedade biocentrada (São Carlos, 2011): ”Quando se chega ao fim, lá onde acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de outra procura; é hora de o Brasil se refundar; a Refundação é o caminho novo e, de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É hora de se refundar como sociedade” (contracapa).
A terceira é do escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848): ”Nada é mais forte do que uma ideia quando chegou o momento de sua realização”.
Minha impressão é que as multitudinárias manifestações de rua que se fizeram sem siglas, sem cartazes dos movimentos e dos partidos conhecidos e sem carro de som, mas irrompendo espontaneamente, queriam dizer: estamos cansados do tipo de Brasil que temos e herdamos — corrupto, com democracia de baixa intensidade, que faz políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, no qual as grandes maiorias não contam e pequenos grupos extremamente opulentos controlam o poder social e político; queremos outro Brasil que esteja à altura da consciência que desenvolvemos como cidadãos e sobre a nossa importância para o mundo, com a biodiversidade de nossa natureza, com a criatividade de nossa cultura e com o maior patrimônio que temos que é o nosso povo, misturado, alegre, sincrético, tolerante e místico.
Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências centrais, antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities, grãos, carnes, minérios, como o mostra em detalhe Luiz Gonzaga de Souza Lima e o reafirmou Darcy Ribeiro citado acima. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso projeto de nação independente e aberta ao mundo.
Diz com fina sensibilidade social Souza Lima: ”Ainda que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A sociedade construíu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do futuro, soberano, livre, justo, forte mas sobretudo alegre e feliz” (pág. 235). Nos movimentos de rua irrompeu este sonho exuberante de Brasil.
Caio Prado Júnior em sua A revolução brasileira (Brasiliense, 1966) profeticamente escreveu: ”O Brasil se encontra num daqueles momentos em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea, com suas necessidades mais gerais e profundas e as espirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas” (pág. 2). Chateaubriand confirma que esta ideia acima exposta madurou e chegou ao momento de sua realização. Não seria sentido básico dos reclamos dos que estavam, aos milhares, na rua? Querem um outro Brasil.
Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil? Souza Lima diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original temos: a cultura brasileira. ”É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficente para escapar dos constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado que ela criou só para si. A cultura brasileira então escapa da mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e suas valências universais” (pág. 127).
Não há espaço aqui para detalhar esta tese original. Remeto o leitor/a a este livro, que está na linha dos grandes intérpretes do Brasil, a exemplo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Caio Prado Jr, de Celso Furtado e de outros. A maioria destes clássicos intérpretes olhou para trás e tentou mostrar como se construíu o Brasil que temos. Souza Lima olha para a frente e tenta mostrar como podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozoica, rumo ao que ele chama de “uma sociedade biocentrada”.
Não serão estes milhares de manifestantes os protagonistas antecipadores do ancestral e popular sonho brasileiro? Assim o queira Deus e o permita a história.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro ‘Proteger a Terra e cuidar da vida: Como evitar o fim do mundo (Record, 2010).
A primeira é de Darcy Ribeiro no prefácio ao meu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos((1998):”Nós brasileiros surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar um povo. Queria tão somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo desgaste de gentes”.
A segunda é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais recente e criativa interpretação do Brasil: ”A refundação do Brasil: Rumo à sociedade biocentrada (São Carlos, 2011): ”Quando se chega ao fim, lá onde acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de outra procura; é hora de o Brasil se refundar; a Refundação é o caminho novo e, de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É hora de se refundar como sociedade” (contracapa).
A terceira é do escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848): ”Nada é mais forte do que uma ideia quando chegou o momento de sua realização”.
Minha impressão é que as multitudinárias manifestações de rua que se fizeram sem siglas, sem cartazes dos movimentos e dos partidos conhecidos e sem carro de som, mas irrompendo espontaneamente, queriam dizer: estamos cansados do tipo de Brasil que temos e herdamos — corrupto, com democracia de baixa intensidade, que faz políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, no qual as grandes maiorias não contam e pequenos grupos extremamente opulentos controlam o poder social e político; queremos outro Brasil que esteja à altura da consciência que desenvolvemos como cidadãos e sobre a nossa importância para o mundo, com a biodiversidade de nossa natureza, com a criatividade de nossa cultura e com o maior patrimônio que temos que é o nosso povo, misturado, alegre, sincrético, tolerante e místico.
Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências centrais, antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities, grãos, carnes, minérios, como o mostra em detalhe Luiz Gonzaga de Souza Lima e o reafirmou Darcy Ribeiro citado acima. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso projeto de nação independente e aberta ao mundo.
Diz com fina sensibilidade social Souza Lima: ”Ainda que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A sociedade construíu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do futuro, soberano, livre, justo, forte mas sobretudo alegre e feliz” (pág. 235). Nos movimentos de rua irrompeu este sonho exuberante de Brasil.
Caio Prado Júnior em sua A revolução brasileira (Brasiliense, 1966) profeticamente escreveu: ”O Brasil se encontra num daqueles momentos em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea, com suas necessidades mais gerais e profundas e as espirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas” (pág. 2). Chateaubriand confirma que esta ideia acima exposta madurou e chegou ao momento de sua realização. Não seria sentido básico dos reclamos dos que estavam, aos milhares, na rua? Querem um outro Brasil.
Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil? Souza Lima diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original temos: a cultura brasileira. ”É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficente para escapar dos constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado que ela criou só para si. A cultura brasileira então escapa da mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e suas valências universais” (pág. 127).
Não há espaço aqui para detalhar esta tese original. Remeto o leitor/a a este livro, que está na linha dos grandes intérpretes do Brasil, a exemplo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Caio Prado Jr, de Celso Furtado e de outros. A maioria destes clássicos intérpretes olhou para trás e tentou mostrar como se construíu o Brasil que temos. Souza Lima olha para a frente e tenta mostrar como podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozoica, rumo ao que ele chama de “uma sociedade biocentrada”.
Não serão estes milhares de manifestantes os protagonistas antecipadores do ancestral e popular sonho brasileiro? Assim o queira Deus e o permita a história.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro ‘Proteger a Terra e cuidar da vida: Como evitar o fim do mundo (Record, 2010).
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
No Rio de Janeiro não existe lei, ordem, respeito ou laicidade
23 de Julho de 2013, 9:45 - sem comentários ainda
Triste, para o Rio de Janeiro, este dia 22 de julho. Além dos atentados oficiais contra o Estado laico, nesse dia de missa patrocinada pelo patrimônio público, a Polícia Militar mostrou que continua atuando ao arrepio da Constituição da República. Podemos arrolar algumas dessas ações:
Enquanto isso, o sistema do Instituto Médico Legal ficou fora de ar, pessoas não conseguiram fazer exame de corpo de delito, e uma enfermeira foi presa enquanto socorria manifestantes.
- Ameaça à Ordem dos Advogados (https://twitter.com/PMERJ/status/359462463785283586) ;
- Uso de arma de choque contra pessoas desacordadas no chão (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/07/1315084-policia-usa-arma-de-choque-e-bomba-de-gas-lacrimogeneo-vencida-no-rio.shtml e http://www.youtube.com/watch?v=0wbwl3zABXI&feature=youtu.be&t=5m5s e https://www.facebook.com/photo.php?fbid=657818484247938);
- Prisão de jornalistas da Mídia Ninja porque estavam a filmar as manifestações (https://twitter.com/PMERJ/status/359462782615298048), o que foi minimizado por certos grandes meios de comunicação que também são alvo dos protestos (https://twitter.com/sudornelles/status/359497245114105860);
- Tiro em jornalista da Agência France-Presse (http://www.afp.com/pt/noticia/topstories/policia-fere-fotografo-da-afp-em-protesto-no-rio#.Ue4GSKJqLNN.twitter).
Enquanto isso, o sistema do Instituto Médico Legal ficou fora de ar, pessoas não conseguiram fazer exame de corpo de delito, e uma enfermeira foi presa enquanto socorria manifestantes.
Vídeos apareceram mostrando o que parece ser a polícia forjando provas para prender indiscriminadamente. Este é do dia 22: http://www.youtube.com/watch?v=0wbwl3zABXI&feature=youtu.be.
Durante manifestação em frente ao domicílio do governador do Leblon, Rafucko, o comediante, foi detido sob a alegação de que jogava pedras na polícia: http://www.youtube.com/watch?v=ihJrDRVEsc0&feature=youtu.be Os vídeos desmentem as acusações.
A arbitrariedade da prisão gerou um texto, com o estilo barroco de sempre, de Caetano Veloso, que fez uma ligação do momento com os protestos de 1968: http://oglobo.globo.com/cultura/slogans-9110915
Aqui, pode-se ver uma lista de outros vídeos feitos durante a manifestação do dia 22, com a denúncia de uso de armas letais pela PM: https://www.facebook.com/brunolitio/posts/10151582971013843
Quanto à OAB-RJ, logo publicou uma nota de repúdio contra a "mensagem provocativa" da Polícia Militar: http://www.oabrj.org.br/noticia/81485-OABRJ-repudia-acusacao-da-PM-de-que-prejudica-trabalho-da-Policia
Para quem, muito incautamente, espera que o governador mande investigar tais condutas, Sérgio Cabral Filho já deu a resposta: o decreto 44.302 de 19 de julho de 2013 criou (isto é, autorizou a criação) a "Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas - CEIV".
Como o principal vandalismo que está ocorrendo é o de Estado, vemos que o governador, com toda a coragem cívica que lhe é peculiar, decidiu investigar as vítimas.
O artigo 1o. já está errado desde sua letra a. O Ministério Público, ao menos formalmente, é autônomo e não tem subordinação funcional ao governador do Estado. Lembro que se trata de mero decreto, e não de lei. Em mais uma medida inconstitucional, o chefe do executivo busca submeter o MP.
O parágrafo quinto, um exemplo claro de si fecisti, nega, negar o que se fez, afirma que não são alteradas as competências das instituições, sob a cortina de fumaça da "otimização".
O parágrafo primeiro do mesmo artigo é de chorar de rir, pois evidencia o despreparo da medida de exceção: cria-se uma comissão sem nem mesmo imaginar quantos membros ela deverá ter. Em termos administrativos, isso não faz sentido e mostra a falta de planejamento e falta de qualquer senso de eficiência administrativa (que, acreditem ou não, é um princípio previsto no artigo 37 da Constituição da República), e permite que uma das instituições indique cem membros, outra dois, outra nenhum. A inteligência é, com efeito, outra das marcas inconfundíveis deste governo.
O caput do artigo terceiro mostra como fraqueza política e violência andam juntas, num enfoque arendtiano. O controle e a vigilância sobre os manifestantes, isto é, a segurança deste governo, tem prioridade sobre a segurança dos cidadãos. Nosconsideranda, o governo quer fazer-nos crer que se trata de defesa do "Estado Democrático de Direito" o que não é democrático nem constitucional.
Muito significativamente no tocante ao que este governo considera como interesse público, a CEIV, que o artigo marotamente afirma que pode estipular "determinações" (sobre que matéria? ela ganhou poderes normativos?), é posta acima das competências e planejamento dos outros órgãos, "públicos e privados", visto que ela tem de ser atendida com "prioridade absoluta".
Tanto sua competência legalmente indeterminada quanto sua prevalência sobre todos os demais órgãos colidem com os fundamentos do direito administrativo. O quadro é piorado drasticamente se consideramos que as solicitações pretendidas no artigo segundo e no parágrafo único do artigo terceiro não podem ser obtidas por esta Comissão criada por decreto do chefe do Executivo estadual. Tais dados somente podem ser requeridos com autorização judicial, em razão das garantias individuais ainda previstas na Constituição da República. Sérgio Cabral Filho está, pois, não apenas querendo submeter o Ministério Público, como deliberadamente ignorando o Judiciário. O velho sistema de freios e contrapesos? Nada disso, o autoritarismo é a máquina estatal descendo, desenfreada, ladeira abaixo. O pudor institucional foi para os ares; afinal, trata-se de um Estado em que isto foi possível: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/07/estado-laico-cartao-peregrino-e-o-papa.html
Talvez não se trate de tarefa tão difícil ignorar o Judiciário, eis que esse poder está de costas para os problemas presentes do Rio de Janeiro. Sob as tropas de ocupação da Rocinha (sob o regime da UPP) desapareceu o pedreiro Amarildo de Souza: https://www.facebook.com/maes.demaio/posts/324362597699447. No próximo dia 24, a partir das quinze horas, haverá um tuitaço sobre o desaparecimento forçado cobrando respostas das autoridades.
Os moradores do bairro (há muito a prefeitura reconheceu oficialmente que a Rocinha tem esse status) desceram para protestar, no mesmo dia em que ocorria manifestação diante da residência do governador, 17 de julho, em que Rafucko e outros foram presos.
No entanto, a Associação dos Magistrados Brasileiros, em 19, dirigiu ofício ao comandante da PM, Erir Ribeiro Costa Filho, oferecendo solidariedade à polícia e condenando o que chamou de vandalismo no Leblon, https://twitter.com/PMERJ/status/358342409064706048/photo/1, uma vez que vitrines foram quebradas e a paisagem do comércio foi afetada. Eis a curta (uma só página) e direta resposta para aqueles que pensam que os principais esforços dos juízes dirigem-se contra a violação dos direitos humanos.
Em um país assolado pela violência policial, a manifestação poderia ser vista como surreal, não fora o caráter de classe, de raça e de gênero dessa violência. Com esses elementos em mente, vemos que se trata de realismo barato, sem nenhum caráter crítico, ao contrário do surrealismo. Vejam a brincadeira do roteirista Fernando Marés de Souza com a reação togada:https://twitter.com/roteirodecinema/status/358645738827292672
A economista Renata Lins me indicou a leitura de um político de direita, diretor do Instituto Liberal, Bernardo Santoro, que chamou o CEIV de ""DOI-CODI" particular do governador: http://institutoliberal.org.br/blog/?p=5062
Somente posso concordar com a designação. De fato, este governo ultrapassou, há tempos, as fronteiras da direita democrática.
Portanto, não é nada abusivo, depois de ter escrito algumas notas neste blogue estabelecendo certos paralelos com a ditadura militar (Polícia ontem e hoje, o milagre do vinagre, Descartes subversivo: livros proibidos, ontem e hoje, Os infiltrados, ontem e hoje), lembrar, após a Polícia Militar ter-se manifestado contra a OAB, da difícil posição dos advogados de presos políticos. Ademais, o DOI-CODI redivivo de Sérgio Cabral Filho, se funcionar, certamente dificultará o direito de defesa.
A OAB, como já escrevi aqui e falei alhures (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/desarquivando-o-brasil-xlviii.html), foi favorável ao golpe de 1964. No entanto, passou a assumir uma postura de defesa das prerrogativas profissionais dos advogados de presos políticos, um grupo pequeno que era sistematicamente desrespeitado pelos agentes da repressão (este é um exemplo: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/03/desarquivando-o-brasil-ii-investigando.html).
A Ordem dos Advogados, analogamente ao que Liora Israël concluiu em relação ao Barreau na França (ver L'arme du droit, "a arma do direito", livro que deveria ser publicado urgentemente no Brasil), não teve, automaticamente, uma postura liberal, como se os advogados, essencialmente, detivessem tal postura política. Nos anos 1970, é que a organização comprometeu-se com a luta pela democratização do país.
No meio desse processo, ela passou a desagravar advogados de presos políticos, que eram, eles mesmos, detidos sob a acusação de serem "advogados de terroristas".
Em agosto de 1972, o Conselho Federal da OAB aprovou o desagravo aos que foram detidos por terem reclamado, poucos meses antes, na Justiça Militar, do tratamento ilegal dispensado a seus clientes (que entrariam em greve de fome) no Presídio Tiradentes. Como se queixaram da violação da lei, foram presos também ilegalmente (trata-se da mais perfeita lógica autoritária) em 19 de maio de 1972.
Os interrogatórios no DOI-CODI que tiveram de responder, às vezes de de madrugada, estão no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo. As perguntas eram fechadas e as mesmas para todos: os advogados eram os responsáveis pela greve de fome? Pertenciam a alguma organização política? Era alguma organização que remunerava seus serviços, ou trabalhavam de graça?
Estas duas questões tinham como finalidade criminalizar a advocacia política, eis que uma das orientações dos serviços de repressão era tratar como subversivos aqueles que eram pagos com dinheiro da subversão, e aqueles que para ela trabalhavam de graça (isto é, eram militantes).
Uma das questões, de frontal desrespeito ao direito de defesa, era se o advogado tinha como comprovar que os clientes poderiam pagar por seus serviços...
Entre os que foram detidos, estava Rosa Maria Cardoso da Cunha, atual coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, que era companheira de outro dos advogados presos, Virgilio Egidio Lopes Enei.
Nas suas respostas, conta que atendia a um preso gratuitamente porque o caso era interessante: o condenado à morte Ariston de Oliveira Lucena, que teve seu pai, Antônio Raymundo Lucena, assassinado, e a mãe, Damaris Lucena, torturada e presa (http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=102&m=3). Eram limitantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
A defesa teve sucesso: a pena de Ariston Lucena acabou sendo comutada para a de prisão perpétua. A ditadura militar nunca chegou a executar nenhum condenado oficialmente, todas as mortes e desaparecimentos ocorreram em desacordo com o direito da época.
Ariston de Oliveira Lucena foi libertado apenas com a anistia. Ele morreu em maio deste ano, de ataque cardíaco. O corpo de seu pai nunca foi encontrado.
Esperemos que Amarildo, que desapareceu sem advogado na democracia formal em que o Brasil hoje vive, não venha a engrossar as estatísticas de desaparecimentos forçados, crime típico das ditaduras na América Latina e que permanece como legado do autoritarismo - legado de que a Polícia Militar é um dos elementos.
P.S.: As numerosas e contínuas violações à liberdade de imprensa merecem outras notas, que escreverei, se puder.
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
Ministro Paulo Bernardo tornou-se “um lobista” das teles
22 de Julho de 2013, 9:44 - sem comentários ainda"Querem transformar a internet em uma grande rede de TV a cabo; prejudicar quem usa a internet livremente. Por isso temos de defender o Marco Civil". O comentario é de Sérgio Amadeu em reportagem e entrevista à Paulo Donizetti de Souza e Vander Fornazieiri e publicada pela Rede Brasil Atual, 21-07-2013.
O sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira tem sido um dos especialistas mais acionados para ajudar a explicar a força das redes sociais na articulação das recentes formas de manifestação política no Brasil e no mundo. Amadeu, além de expert em sua área, em que combina a ciência política e a tecnologia da informação, é antes de tudo um ativista da democracia. No governo de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo, trabalhou pela implementação de mais de uma centena de telecentros, até então uma das mais inovadoras políticas públicas de inclusão digital.
Militante e estudioso dos softwares livres, presidiu o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação da Casa Civil da Presidência da República, onde desenvolveu ações de inclusão digital e de estímulo ao uso de softwares livres na máquina federal. Nos últimos anos, acompanhou de perto o crescimento da insatisfação de diversos coletivos sociais com as ações governamentais nas áreas da cultura, ambiental e das comunicações – por isso diz não ter se surpreendido com os protesto de junho.
Representante da sociedade no Comitê Gestor da Internet (CGI), é defensor rigoroso do projeto de Marco Civil da internet que está próximo de ser votado no Congresso Nacional. Porém, depois de ser elaborado dentro do CGI e de incluir ampla participação da sociedade, o Marco Civil sofre com um lobby da grandes empresas de telecomunicações, que ameaçam, segundo ele, a liberdade, a criatividade e a privacidade dos usuários da rede.
No último dia 16, Amadeu visitou a redação da RBA e concedeu esta entrevista. Ele critica ferozmente a atuação do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, por ter se tornado “um lobista” das teles. E chama a atenção dos movimentos sociais: que estejam atentos para defender o Marco Civil; e que entendam o novo das redes em seu papel na mobilização e na tomada de decisões da sociedade.
Eis a entrevista.
Você consegue identificar processos de indignação e de insatisfação antes da explosão de manifestações que tomaram as ruas em junho?
Conseguia. Um dos primeiros embates que a gente teve de descontentamento com uma política pública foi na cultura. A política de cultura tinha invertido a lógica: não tem de levar cultura para a periferia, a cultura está na periferia, você tem que dar condições para ela avançar. Foi a política dos ex-ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira. Essa política foi fuzilada pelo grupo do Ecad, que se acastelou no Ministério da Cultura por dois anos. O que tem no Ministério da Cultura, inclusive hoje? Nada. Se você for ver a política ambiental, também, vão dizer “eu preciso do Brasil desenvolvimentista”. Bom, o Brasil de desenvolvimento não pode fazer como o Japão? Estudar alternativas? Depois daquela crise nuclear com o maremoto (Fukushima), eles passaram a ter um plano de em 30 anos mudar a matriz energética (hoje altamente dependente da energia nuclear). E nós temos uma série de possibilidade que não desenvolvemos. É uma política equivocada que gera uma excrescência como Belo Monte e uma política equivocada com as nações indígenas. Mais de 100 mil pessoas na rede, talvez a maioria de classe média, que trocaram seu sobrenome para Guarani Kaiowá, uma forma de dizer: “Eu estou descontente”.
E tem também a área de comunicação.
É. Na comunicação, a minha área, o ministro é um ministro das operadoras de telecom. Isso já é um descontentamento brutal. Ele quer quebrar a neutralidade da rede. No Brasil, as operadoras não querem controlar a rede como na Europa e nos Estados Unidos, de maneira aberta. Querem regulamentação das exceções ao princípio da neutralidade, jogando para a Anatel, que não tem nenhuma condição de controlar e fiscalizar nada. Vou te dar um exemplo: um dos grandes problemas do Brasil é a qualidade da banda larga. Você paga por 100 e recebe 20. O comitê gestor da internet, que eu integro, como representante da sociedade civil, fez toda uma ação de construir um medidor de qualidade de banda larga, que é o Simet (Sistema de Medição de Tráfego de Última Milha). E as teles não querem fiscalização. A pressão era tão grande que a Anatel disse “eu vou fiscalizar o que é vendido de banda larga”, inclusive depois de o Ministério Público proibir a antiga Telefônica de vender conexão de banda larga aqui na região central, porque não entregava. O que a Anatel fez para controlar a qualidade da banda larga? Chamou o Comitê Gestor e disse “vamos tornar a medida de vocês oficial”? Não. Entregou para o sindicato dos donos das empresas a tarefa de fiscalizar as empresas... de telecom. Em qualquer país do mundo isso é um escândalo. No Brasil o ministro bancou, dizendo “eles têm competência técnica”.
E por que você acha que falta reação nessas situações?
Tinha reação? Tinha. Muita reação pontual. E aí explodiu. O governo tinha muita paciência de ouvir, ia lá, tirava foto, e ficava assim, ouvindo. E não encaminhava nada. Tanto é que o governo parou uma lei que colocaria o Brasil na vanguarda da democracia da rede, que era o Marco Civil da internet. Na contramão do vigilantismo norte-americano. Só que o Paulo Bernardo entrou pondo o pé à porta. Depois, o pessoal do Ministério da Justiça aceitou a pressão daGlobo e pôs a remoção de conteúdo sem ordem judicial no projeto de Marco Civil. Não foi PP, antigo DEM... Foi PT. Quer dizer... Essas forças de esquerda que estão no governo talvez não acompanharam o que aconteceu no Oriente Médio, na Espanha, na Inglaterra. E quando se bate forte em várias políticas públicas do governo, se está batendo em um governo que – no meu caso – eu votei. Enfraquece o governo, mas e aí? Você deixa esse governo ser quase a cópia de uma ação, nessa área, do que seria um PSDB?
Aqui no Brasil tem internet funcionando há duas décadas. Por que só agora o país precisa de um Marco Civil?
Excelente questão. É uma lei para garantir que a internet continue funcionando do jeito que funciona hoje. A internet está sob ataque. Essas grandes corporações e os aparatos conservadores querem mudar o jeito de a internet funcionar.
Algo como o que existe na China ou no Oriente Médio?
Sim, sim. A nossa resistência à Lei do Azeredo, que apelidamos de AI-5 digital, é exatamente isso.
Por exemplo?
Hoje, 52% dos brasileiros com acesso à internet baixam música. A maioria, na verdade, compartilha músicas. Dizer que essa prática é criminosa... faça o favor. Você não tem cadeia suficiente para colocar essa moçada toda. A rede permite a troca. A rede é troca. E a troca não destrói o original, e estamos falando de bens imateriais. Internet é compartilhamento. E a Lei Azeredo parou. A partir da ida do ex-presidente Lula ao Fórum Internacional de Software Livre. Ele viu uma faixa escrita “Presidente, vete o AI-5 digital” e disse: “Não vou vetar, porque não será aprovado”. E chamou o então ministro da Justiça, Tarso Genro, e determinou: “Ministro, tome uma providência em relação a isso”. E a providência adotada foi correta. Foi construir um processo de montagem de uma lei que não fosse feita em gabinete, mas pela própria internet. Na plataforma da Cultura Digital, vocês podem ter acesso a isso, houve uma primeira rodada de contribuições, uma síntese, depois uma segunda rodada e aí foi entregue ao presidente Lula. Como estava no final do segundo mandato ele disse que não ia mandar ao Congresso. Ficou para a Dilma tomar essa providência. A Dilma demorou, mas enviou, e respeitando o que foi encaminhado pela sociedade civil.
Que é esse o projeto para o qual foi nomeado relator o deputado Alexandre Molon (PT-RJ)?
Isso. E além de ter sido uma construção coletiva para defender os direitos dos internautas na rede, teve ainda outras sete audiências públicas feitas pelo Molon. Depois disso é que ele fez o relatório final. Só que aí entra o Ministério das Comunicações...
Em que momento?
Foi no segundo semestre de 2012. No momento em que ele apresentou o relatório, parou... Na hora do vamos ver. As empresas entraram forte com interesses básicos. E o argumento deles é muito claro: “estão usando cada vez mais a internet, então eu tenho de interferir para gerenciar o tráfego”. Trata-se de um negócio que, a cada x meses, o tráfego de dados aumenta, porque as pessoas melhoram suas máquinas, as aplicações são feitas para ter maior velocidade, o uso de multimídia é cada vez maior. É um negócio que você sabe que você já tem de aumentar a capacidade de transformar bits em sinais de luz, nas fibras óticas. É como se nós estivéssemos falando de energia elétrica. Quando chega 5 da tarde, todo mundo começa a usar muito mais energia. O uso urbano cresce. Se você agisse como as operadoras de telecom, a energia ia começar a falhar, ficar cada vez menos intensa até você ter uma luz fraca. E é o que as teles fazem. Embora mais gente comece a usar a rede, eles não aumentam a disponibilidade para você navegar. Daí a sua banda cai e você acaba tendo uma das internets mais precárias do mundo. A gente não critica o modelo de negócios nem impõe limites. Mas o negócio deles é TI, transferência de dados, com cada vez mais demanda. Então, querem resolver o problema quebrando a neutralidade de rede, filtrando o tráfego.
Hoje a prioridade é para bancos e indústria, né?
Não necessariamente. Dados bancários não consomem muita banda. É multimídia que consome, imagens, vídeo, áudio. E o que as teles querem é interferir no tráfego para manter a qualidade do serviço, já que eles não aumentam a banda disponível. E para poder interferir, não pode ter na lei do Marco Civil da internet a garantia de neutralidade. O que eles querem é criar uma diferenciação de serviços, similar à que existe no mundo da TV a cabo. Você já paga diferenciadamente por velocidade – paga por 1 mega ou por 10 mega. Mas eles querem outra coisa. Mesmo que você pague 1 mega, ou 10, querem que você pague um plano diferenciado para acessar vídeos. Um plano diferente para acessar som. Um plano diferente para participar de rede peer-to-peer. Querem fazer uma interferência e filtrar o tráfego.
E querem também a filtrar a personalidade do usuário.
Que é outra coisa que a proposta do Marco Civil atrapalha: eles querem copiar nossa navegação para poder fazer análise e entregar publicidade dirigida para os internautas. Aí eles dizem: “O Google já faz”. Aí eu digo: “Problema de quem usa o Google”. Eu não sou obrigado a usar o Google, mas sou obrigado a usar uma telecom para me conectar à nternet. Eu posso navegar, de manhã até a noite, sem usar uma única empresa do grupo Google, mas sou incapaz de navegar sem usar uma operadora. Se a operadora puder me filtrar da minha casa até a nuvem da internet, estou perdido. Existem empresas que vendem esse software, uma delas é a Phorm, a gente até denunciou. Ela foi denunciada na Europa. A Oi contratou a Phorm sem avisar os usuários e começou a testar o software da Phorm para acompanhar a navegação de seus usuários, violando claramente a privacidade. Na época, eu estava em uma comissão em Brasília, discutindo ainda a Lei do Azeredo. E perguntei se a ação desse executivo que permitiu isso geraria pena de prisão, ou se a ação dos bancos que impõem rotinas que você nem sabe, para você poder navegar no netbanking, não é uma intrusão na sua máquina. É intrusão. Quem mais invade máquinas são bancos e as operadoras. Falei isso e disseram que não é verdade.
E por quê?
Porque daí iam ter de discutir isso. Então, o que precisamos é de uma lei para garantir que a internet continue uma internet livre, e isso inclui o princípio de neutralidade, e que quem controla a infraestrutura não controle o fluxo de informação. E para garantir que nós possamos criar conteúdos de tecnologia sem autorização de ninguém, seja Estado ou uma operadora de telecom. Se quebrar o princípio da neutralidade, quando a minha universidade criar um protocolo de internet 3D, vai passar um pacote que ele não sabe o que é, e daí o computador dele destrói. Ai tenho que negociar com ele o meu invento, se não, não passa na rede dele. Eles querem controlar a criatividade, a liberdade de expressão e montar modelos de negócios que nós não escolhemos.
Existe essa briga nos EUA?
Tem uma briga lá contra isso. E tem um movimento muito forte em relação à neutralidade chamado Save the internet, no qual participava até o Obama antes de ser presidente. Na Holanda, foi aprovada uma lei em defesa da neutralidade da internet, no Chile também. Aqui, estávamos prestes a aprovar. Mas o ministro das Comunicações, infelizmente, é um lobista das teles, claramente. Por que não investigam as relações entre os diretores das operadoras de telecomunicação e a Anatel? Deveria ser proibido alguém que foi integrante de um órgão de regulador atuar em empresa, e vice-versa. Porque é muito poder, é um setor que tem 8% do PIB.
É difícil para as pessoas entenderem exatamente o que está em jogo. É possível impedir a violação de privacidade?
O escândalo da NSA só é possível porque as corporações já violam a privacidade. OK, tem a concordância dos usuários, mas a NSA jamais conseguiria montar um aparato desses se não existisse Google, Facebook, Twitter, Microsoft, ou as back-doors de quem usa o Windows. Por isso que começamos a falar: querem transformar a internet em uma grande rede de TV a cabo. Eles querem prejudicar você, que usa a internet hoje, livremente. Eles querem poder copiar os seus dados sem que você saiba. Daí falamos que é por isso que tem de defender o marco civil
Hoje não tem lei que regulamente scripts e ferramentas que os bancos vão jogando no meu computador? “Você precisa atualizar o Java poder utilizar o homebanking”...
Não. Se ele instalar uma coisa estritamente para a sua seção e você concordar, ótimo. Mas e se ele instalar algo que acompanha toda sua navegação sem você saber? Não existe uma fiscalização, e a lei do Marco Civil vai permitir que você tenha de autorizar qualquer coisa que viole a sua privacidade. Pelo artigo 5º da Constituição, você pode, por analogia, pensar na privacidade na rede. Mas é melhor que não seja por analogia, que seja diretamente. E preciso ser bem concreto nos direitos. O Marco Civil não é criminal, é direito civil, ele declara uma série de direitos que a gente passa a ter. Entrar na sua máquina e copiar seus emails e vender sem que você saiba, isso tem que ser considerado crime. Mas antes precisamos garantir os direitos, que a internet continue funcionando como ela funciona, o que descontenta muitos governos e corporações, principalmente do mundo do copyright. E as teles, que não querem conviver com a criatividade intensa da rede. Se as teles conseguirem impor o controle da rede, vai ser do jeito que elas querem.
O lobby dos direitos autorais criou uma frente de ação no ambiente da Cultura, outra na Justiça e agora entra na discussão do Marco Civil, é isso?
Entra. Porque a ideia – debatida na construção coletiva do marco – é que você só possa remover um conteúdo com ordem judicial. Nós sabemos que, mesmo entrando na Justiça, a disputa, muitas vezes das ideias, se dá em torno da propriedade intelectual. Por exemplo, o site Falha de S. Paulo. A Folha não barrou (o site que satirizava o nome e a política editorial do jornal) na Justiça por calúnia, injúria ou difamação, mas por “uso indevido da marca”. Para dizer que ela é democrática, que “não estou te proibindo de me criticar, estou dizendo que você violou a minha marca”. E isso não é só no Brasil. No Brasil, o parágrafo 2º do artigo 15 do Marco Civil, que foi posto depois das consultas todas, faz o que a Globo quer. Autoriza a remoção de conteúdo sem ordem judicial. Não tem a mínima condição. Então, temos solicitado que o relator tire ou pelo menos deixe claro que não há remoção de conteúdos.
No Congresso existe um mapeamento dos parlamentares com quem se pode falar?
Não é uma luta perdida. A maioria dos parlamentares tende a cair para o lado democrático O problema é o lobby das teles, que tem um poder de financiamento de campanha muito grande, que tenta manipular o argumento, tem agências de publicidade, faz cafés das manhãs com deputados, atua diretamente. E a gente também atua, temos do nosso lado o funcionamento livre da internet, que é uma grande coisa. Então, retomando a questão principal, por que o Marco Civil? Porque estavam vindo vários ataques ao funcionamento da internet hoje. Precisamos de uma lei que assegure nosso direito de ter uma internet livre, com diversidade cultural, privacidade e neutralidade da rede. É uma lei de defesa.
Você não acha que depois de tudo o que vem acontecendo, eles não podem ficar com uma coceira de tentar censurar a internet?
Mas isso é no mundo inteiro. A internet é um inconveniente já. Por isso a extrema-direita está muito descontente. Queria um vigilantismo forte. Você tem governos que não gostam dessa liberdade de compartilhar na rede, de convocar manifestações, o que vimos em junho. Então, tem uma tensão por censura. E tem uma grande pressão dos jovens, da periferia e da classe média, para que ela continue livre. Por isso essa batalha não é perdida.
E como você vê o futuro disso que, no Brasil, começou em junho?
Acho que isso é um movimento. Estamos em uma mudança nas estruturas políticas, que se esgotaram. Tiveram seu ápice no século 19 e no século 20. Elas, sozinhas, não dão conta mais, dessa intensa ação de mudanças que muitos grupos coletivos e indivíduos querem. Então, tem uma passagem do mundo industrial para o mundo informacional. E isso sugere profundas alterações. E gera crise de intermediação, em tudo, até nas escolas. E sei disso porque sou professor. Eu não sou o bom da boca na informação. A informação eu não controlo mais. Há uma crise das instituições do mundo industrial. Partido político é uma instituição verticalizada, do modelo industrial. Não estou dizendo que ele não é importante na democracia, estou dizendo que ele está em crise, como toda as estruturas de intermediação.
Em todas as áreas?
Os próprios médicos vão estar em breve em manifestação contra sites que fazem diagnósticos na internet. As pessoas vão lá e “deixa eu ver o que eu tenho”. E o paciente às vezes pesquisou e adquiriu conhecimento maior que o do médico. Eu tenho um amigo que tem um problema raríssimo, que não se estuda nas boas escolas, e que está vivo hoje porque participa de uma comunidade na internet que estuda e troca informações. Há uma enorme diferença hoje. O mundo da informação é o mundo do código. A política não é política do puro poder, é a biopolítica mesmo, a política sobre a vida das pessoas. E essa política está na fronteira do código. Eu falo para a galera do MST: vocês estão brigando pela reforma agrária, mas devem brigar também contra a colonização do código genético, porque vão controlar as sementes da sua terra. A Monsanto é como a Microsoft. Vende licenças de propriedade. A Microsoft de softwares, a Monsanto, de sementes. É tirar o conhecimento das comunidades tradicionais, botar num laboratório, patentear e vender cognição apropriada privadamente. E é difícil discutir isso. Para entender a relevância disso é você ver em alguns supermercados coisas estranhas, como fralda próxima do corredor da cerveja.
É estudo de algoritmos...
Porque eles mineraram dados, é uma correlação que nunca íamos fazer, mas se você tem o controle das máquinas no caixa, cruza os dados e faz várias correlações, você descobre que quem comprava fralda comprava também cerveja. É o mundo dos códigos e do autoprocessamento. Nem o MST, nem os movimentos tradicionais podem se descuidar disso. O primeiro movimento social a ter uma grande articulação com os hackers foi o movimento zapatista, que se ligou a hackers e fizeram sites espelhos, DDOS, que é o serviço de ligação do governo do México ao governo americano. E foi uma articulação muito importante que destapou o cerco da mídia que os índios e os camponeses no sul do México estavam tendo. Então, veja, não é tão absurda essa questão. Os sindicatos precisam entender isso.
O escritor José Saramago afirmava não confiar na internet, porque quando virem nela algo de revolucionário tratarão de controlá-la. “Nada há que seja verdadeiramente livre nem suficientemente democrático”, dizia.
A internet em si não muda, mas as pessoas podem usar a internet para mudar. Já perceberam isso e querem transformar a internet em TV a cabo, reduzir a interatividade, controlar a criatividade. Por incrível que pareça, para garantir esse caráter da rede, que é transnacional, precisamos aprovar leis nacionais que façam ela funcionar do jeito que ela foi criada. Tudo muito complexo, mas muito real. A internet comporta o mercado, mas ela não é o mercado.
(Por IHU)
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
STF sofre críticas pela demora no mensalão mineiro
19 de Julho de 2013, 7:53 - sem comentários aindaParlamentares dizem que Supremo “desequilibrou” jogo político ao não dar rapidez ao julgamento do esquema envolvendo o PSDB. Ação de improbidade espera há oito anos pela análise de um recurso
Petistas e juristas criticaram nesta semana o Supremo Tribunal Federal (STF) pelo fato de, há dez anos, ter tomado conhecimento da primeira versão do mensalão do empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, mas há oito anos não julgar um recurso de uma denúncia de improbidade administrativa. Para parlamentares do PT, o tribunal “desequilibrou” o jogo de forças política no país ao não julgar, na mesma velocidade, denúncias de irregularidades semelhantes, mas com participação de diferentes atores partidários.
Como revelou a Revista Congresso em Foco, dois anos antes de o então deputado Roberto Jefferson denunciar o mensalão do PT, em 2005, o procurador-geral da República na época, Cláudio Fonteles, pedia a devolução de R$ 12 milhões por irregularidades no “valerioduto” do PSDB em Minas Gerais em uma ação de improbidade administrativa. O deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e o senador Clésio Andrade (PR-MG) respondem atualmente a ações penais no STF acusados de montar um esquema de desvio de dinheiro dos cofres públicos estaduais com as agências de publicidade de Valério para custear a campanha eleitoral de 1998 ao governo estadual.
Para o vice-líder do PT na Câmara, Fernando Ferro (PE), a demora do Supremo “salta aos olhos” e mostra um “tratamento desigual” entre o mensalão mineiro e o petista. “É a celeridade para um caso e morosidade para outro. Isso compromete mais ainda a imagem do Judiciário, que fica procrastinando propositadamente com intenções políticas”, disparou.
Ele destacou ter havido maior velocidade no julgamento do mensalão de Valério a serviço do PT, que acabou por condenar à cadeia o ex-ministro José Dirceu, além de quatro deputados, o empresário e mais 19 réus. “Nós sempre achamos estranho isso.”
Já o vice-líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), chamou atenção para o desequilíbrio político gerado. “O Supremo, sabendo o impacto político desses dois julgamentos, não poderia ter desequilibrado o processo político do país julgando um e não julgando o outro”, afirmou.
Ele destacou o fato de a primeira denúncia do mensalão do PSDB ter chegado à corte em 2003, antes da acusação do valerioduto petista, que chegou em 2006, mas já foi julgada. “O Supremo equivocou-se ao não levar esses dois julgamentos dentro de um critério cronológico de prazo”, ponderou.
Correção
O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) acredita que o Supremo errou. “Pode ter havido um viés de natureza política, mas que precisa ser prontamente corrigido”, disse ele. “Cabe responsabilidade a todos os ministros do Supremo, em especial o presidente, Joaquim Barbosa, a correção desse desequilíbrio de procedimentos”, afirmou.
Para Suplicy, o tribunal precisa analisar a denúncia do então procurador Cláudio Fonteles. Caso contrário, demonstrará “ter dois pesos e duas medidas”. A denúncia do procurador deve ser julgada não no seu mérito, mas apenas na remessa do processo para a Justiça de Minas Gerais, já que se trata de um caso de improbidade administrativa, para os quais o STF decidiu, ainda em 2005, que os réus não tem foro privilegiado no Supremo.
Fernando Ferro disse que a bancada acompanha o caso com preocupação e afirmou esperar que o mensalão mineiro também seja julgado logo. Ele lembrou que deputados do PT já cobraram isso do Supremo no plenário da Câmara. “É lamentável. Compromete claramente a imagem do Supremo.”
Demora e irrelevância
O subprocurador geral da República Eugênio Aragão entende que a demora do Supremo é o curso natural dos processos criminais no tribunais. Ele concorda com o novo ministro da corte, o relator do valerioduto tucano, Luís Roberto Barroso, para quem o mensalão do PT foi um “ponto fora da curva” em relação à velocidade do julgamento. A declaração de Barroso ocorreu antes da indicação e nomeação para a corte.
“Deu-se tratamento célere e simbólico a um caso que na verdade foge completamente ao comportamento que o Supremo tem em relação a matérias criminais, de improbidade, que são matérias que o Supremo deixa para o final da fila sempre. Sempre foi assim”, afirmou Aragão, que já atuou na corte e recentemente foi cotado para ser ministro do STF. “Então, o Supremo não está fazendo nada de novo. Fez de novo no caso do mensalão. Nesse daí, na verdade está dando tratamento que sempre deu a esses casos: não dá a maior relevância.”
Aragão defendeu o fim do foro privilegiado e disse que matérias criminais deveriam ser julgadas em primeira instância. O subprocurador ainda disse que “a grande maioria” dos processos penais prescreve no Supremo.
Estranheza
Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pedro Estevam Serrano também critica o andamento dos dois mensalões, o tucano e o petista. Ele considerou estranha a demora de julgamento de um recurso no valerioduto do PSDB. “Claro que normalmente há incidentes formais que atrasam o julgamento de uma medida. Obviamente, oito anos é muito tempo. É de estranhar”, disse ele, que ressaltou não conhecer os incidentes formais que justificariam a demora.
Doutor em Direito de Estado, Serrano critica o peso menor que a presunção de inocência teve no julgamento do mensalão do PT. Ele entende que o comportamento do Supremo em outros casos vai dar legitimidade política e histórica às decisões tomadas no mensalão que condenou José Dirceu e outros 24 réus. “Inclusive nesse caso [do mensalão mineiro sem julgamento há oito anos], porque vai definir se aquele julgamento foi mudança de jurisprudência legítima ou se se tratou de uma decisão de exceção”, argumentou Serrano.
A reportagem procurou a assessoria do STF e do presidente do tribunal, Joaquim Barbosa, mas não obteve esclarecimentos. O ministro Roberto Barroso, novo relator do mensalão mineiro, está no exterior. Sua assessoria disse que ele só poderia falar depois do recesso do Judiciário.
(Publicado no Congresso em Foco)
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..
Jornalismo também está sendo julgado no desfecho do caso Manning
18 de Julho de 2013, 15:30 - sem comentários aindaO advogado de defesa civil, David Coombs, também argumentou, na mesma segunda, que os promotores não conseguiram apresentar provas de que Manning tinha conhecimento de que a Al Qaeda – ou o inimigo – teria usado o WikiLeaks a seu favor. Qualquer coisa que se pareça com essa acusação abriria um precedente perigoso à imprensa livre, ele disse, porque os promotores militares já afirmaram que condenariam Manning da mesma forma, independentemente de a organização receptora dos documentos ser o The New York Times ou o WikiLeaks.
Lind, juiza-chefe do Primeiro Circuito Judicial do Exército dos EUA, declarou, também na segunda, que ela permitiria que a promotoria refutasse o argumento da defesa de que o WikiLeaks era uma organização jornalística respeitável à época dos acontecimentos envolvendo Manning, e que o soldado tinha um “motivo nobre” ao informar o público, como afirmou a defesa. A intenção da promotoria era convocar novamente o perito forense principal do caso, para discutir os e-mails enviados a membros da imprensa bem como os tweets do WikiLeaks encontrados em mídias digitais pertencentes a Manning. Além disso, os promotores tinham a intenção de chamar outro membro da brigada de Manning para testemunhar que o acusado teria dito a ele, em maio de 2010, que “ficaria chocado se você não falasse de mim para seus filhos daqui a dez ou quinze anos”.
Manning, que foi preso em maio de 2010 e passou 1101 dias em confinamento antes do julgamento começar no mês passado, é acusado de ter cometido 22 crimes. Apesar da apelação a crimes mais brandos, que somam uma sentença de 20 anos, o governo insiste nas 21 acusações, que incluem ajuda ao inimigo, espionagem, roubo à propriedade do governo e “publicação devassa” (divulgação de material sensível sem avaliar as consequências e riscos recorrentes da revelação), que pode levar o soldado de 25 anos à prisão perpétua e uma pena de 149 anos em prisão militar, caso seja condenado.
Manning optou por ser julgado por apenas um juiz militar e não por um júri composto por oficiais e praças. Após os argumentos finais, que virão em seguida à refutação da promotoria, a juíza Lind irá deliberar e anunciar suas conclusões. Diferentemente de uma corte federal, em que o pronunciamento da sentença vem após a conclusão de um relatório pré-sentença, no julgamento de Manning a sentença será dada imediatamente.
No processo de decisão até a sentença final, tanto a defesa como a promotoria irão apresentar provas, convocar testemunhas e argumentar sobre a punição apropriada. O número máximo de sentenças (dadas por cada crime) está descrito no Manual para Corte Marcial e segue regras previamente estipuladas pela corte.
Já que a condicional não é concedida em casos onde o réu é julgado por uma corte militar, a autoridade máxima citada, o Major-general Jeffrey Buchanan, comandante do Distrito Militar de Washington, pode revogar a decisão da juíza Lind e reduzir a sentença de Manning. Contudo, o major-general não pode reverter a absolvição ou aumentar a pena do réu, contrariando a decisão da juíza.
Na segunda, Coombs citou o depoimento de uma testemunha do Centro de Contra-inteligência do Exército dos EUA, que publicou um relatório sobre o WikiLeaks intitulado “Wikileaks.org – uma referência online para serviços de inteligência estrangeiros, insurgentes ou grupos terroristas?”, para argumentar: “O Exército dos EUA não sabia se o inimigo havia acessado o WikiLeaks… mas eles querem atribuir esse conhecimento a um analista-júnior”.
Num testemunho histórico na audiência de semana passada, o Prof. Yochai Benkler, co-diretor do Centro Berkman para Internet e Sociedade, da Faculdade de Direito de Harvard, disse à juíza que “o custo de considerar Manning culpado por ajudar o inimigo implicaria” num fardo muito grande à “boa vontade de pessoas bem-intencionadas, mas que não possuem uma coragem infinitas, de fazerem revelações” e “iria prejudicar gravemente a maneira pela qual o jornalismo investigativo baseado em vazamentos tem contribuído com a tradição da imprensa livre nos Estados Unidos”.
“Se a entrega de materiais a uma organização, feita por qualquer pessoa com conexão a internet, pode ser considerada como uma colaboração feita a um inimigo – isso necessariamente significa que qualquer vazamento destinado a uma organização de mídia pode ser acessada por qualquer inimigo, em qualquer lugar do mundo, o que torna o vazamento, automaticamente, uma ajuda ao inimigo”, disse Benkler. “Essa pode ser a acusação”, acrescentou.
Benkler testemunhou que o WikiLeaks era uma nova forma de jornalismo digital que cabia num modelo de distribuição típico da era da internet, pautado no compartilhamento de informações e agregação de conteúdo, que ele batizou como “rede do Quarto Poder”. Quando questionado pela promotoria se “vazamentos em massa de documentos são inconsistentes enquanto jornalismo”, Benkler respondeu que a análise do volume de conjunto de dados como os logs da Guerra do Iraque fornece um conhecimento que não havia sido encontrado em um ou outro documento contendo evidências conclusivas. Os logs da Guerra no Iraque, segundo ele, se tornaram uma fonte alternativa e independente para a contagem de mortos “baseada em documentos formais que possibilitaram uma análise que não era correlacionada àquela que levava em conta suas consequências políticas”.
Manning foi acusado de posse ilegal e comunicação intencional de vídeo não-confidencial de um bombardeio norte-americano à província de Farah, no Afeganistão, que matou pelo menos 140 mulheres e crianças em 2009. Era a única violação do Ato de Espionagem que ele não apelou pelo abrandamento da pena. Ele se declarou inocente e o WikiLeaks nunca publicou esse vídeo.
O vídeo contendo o ataque aéreo a Granai faz parte da teoria central da promotoria, que liga Manning à investigação criminal federal em andamento sobre o WikiLeaks e seu fundador, Julian Assange. (Assange, que está há mais de um ano na Embaixada do Equador em Londres para evitar sua provável extradição aos EUA, apareceu nas últimas semanas como um aliado crucial de Edward Snowden, o ex-analista da CIA que deixou os EUA antes de compartilhar documentos secretos com jornalistas do The Guardian e do Washington Post sobre a vasta coleta de dados de americanos e outros). Mas na segunda semana de julgamento, o perito forense principal da Unidade de Investigação de Crimes Digitais do Exército (CCIU) testemunhou que ele não encontrou conexões entre Manning e um indivíduo investigado pelo FBI por supostamente tentar descriptografar o vídeo em questão.
Boa parte do julgamento e das audiências preliminares foram conduzidas sem transparência, de maneira obscura. A juíza Lind e o Exército dos EUA negaram o acesso público a mais de 30 mil páginas dos documentos pré-julgamento durante os 18 meses que antecederam as audiências, antes mesmo do Exército divulgar quase 500 relatórios pré-julgamento no terceiro dia de audiência do caso Manning.
As transcrições não-oficiais das sessões abertas, disponibilizadas e publicadas pela Freedom of the Press Foundation, não contêm as informações ocultadas pelo governo sob a tarja preta confidencial das estipulações de oito testemunhas do Departamento de Estado a respeito de 117 documentos.
Quando o diretor da divisão de contra-espionagem da Agência de Inteligência da Defesa, Dan Lewis, testemunhou numa sessão fechada, longe do público, no início do mês, as janelas da sala de audiência foram cobertas com folhas de alumínio revestidas de carpete, para prevenir que fossem captadas vibrações sonoras do depoimento na superfície dos vidros.
Uma vez que a corte determinou que motivo e dano real (ou “falta de dano”) não eram evidências relevantes no julgamento (exceto para provar circunstancialmente que Manning estava ciente do fato de que o inimigo usou o site do WikiLeaks), a prova da intenção de Manning e do impacto dos vazamentos finalmente vão ser apresentadas à corte durante o processo de decisão da sentença. Resta esperar para ver, contudo, quanto dessa parte do julgamento será aberta ao público, já que o governo espera fazer as oitivas de 13 testemunhas secretas em sessões fechadas ou com acordos de confidencialidade.
No final de maio, a promotoria tomou conhecimento de que três avaliações confidenciais de danos seriam utilizadas como provas durante o julgamento. Sabe-se que duas das avaliações da Agência de Inteligência da Defesa (DIA), da Força-tarefa de Análise da Informação (IRTF), e do Gabinete Executivo de Contra-inteligência (ONCIX) estão no formato de resumos confidenciais.
Apesar de um acusado ter o direito de acesso às provas utilizadas contra ele num julgamento, os promotores não querem que Manning tenha acesso às avaliações originais. O formato da terceira avaliação é desconhecido, mas a defesa especula que se estiver sua forma original, apenas o advogado de defesa teria acesso ao documento original. Manning, não.
A terceira avaliação de danos é, provavelmente, do Departamento de Estado, embora os promotores tenham apresentado, em defesa, uma declaração de impacto do FBI e duas avaliações de danos da CIA (incluindo uma da Força-Tarefa do WikiLeaks) durante o pré-julgamento.
Um mês após a prisão de Manning, no Iraque, em 2010, o então Secretário de Defesa Robert Gates solicitou ao diretor do DIA, Ronald Burgess, que convocasse o IRTF para conduzir uma revisão completa dos documentos supostamente vazados ao WikiLeaks para “determinar se qualquer TTP (táticas, técnicas e procedimentos) foram expostos e se qualquer ajuste precisa ser feito tendo em vista a exposição”, de acordo com o Assessor de Imprensa do Pentágono à época, Geoff Morrell.
A força-tarefa, liderada pelo especialista em contra-inteligência, o Brigadeiro-General Robert Carr, era composta por cerca de 80 pessoas, incluindo analistas de inteligência e especialistas de contra-inteligência do DIA, Comando do Pacífico, Comando Central e Sub-secretaria de Defesa para a Inteligência, é a responsável por coordenar a investigação sobre o Wikileaks em andamento no Departamento de Defesa. Outras parcerias incluem o FBI e o Comando de Investigação Criminal do Exército. Carr vai testemunhar à promotoria numa sessão fechada ou sob acordo de confidencialidade, assim como dois outros indivíduos do DIA: Julian Chestnut e John Kirchhofer, que ocupa a posição civil de nível sênior de inteligência de defesa e contra-inteligência e inteligência humana.
Em meados de 2010, o Departamento de Estado começou a trabalhar com o IRTF para “revisar todo o material do Estado supostamente vazado e avaliar e resumir o efeito global que a liberação dos documentos pelo WikiLeaks teve sobre o país-anfitrião”, disse o embaixador Patrick Kenedy, o sub-secretário de administração do Departamento de Estado, quando testemunhou diante do Comitê do Senado para Segurança Interna e Assuntos Governamentais, em março de 2011.
No final de 2010, o IRTF já havia analisado quase 70 mil documentos liberados pelo WikiLeaks. De acordo com um registro de defesa pré-julgamento, o IRTF concluiu que “toda a informação supostamente vazada estava ultrapassada, apresentava pareceres de nível baixo ou já era de conhecimento e entendimento comum devido a publicações anteriores.”
À época, Gates escreveu uma carta para o líder do Comitê Senado para Serviços Armados, senador Carl Levin, atestando que a avaliação inicial do IRTF “de forma alguma subtraiu o risco à segurança nacional, contudo, a revisão até agora não revelou nenhuma fonte ou método sensível nessas exposições”.
Na última semana, a defesa tentou estabelecer, através do depoimento de Benkler, que a retórica “exagerada” e “insistente” do governo durante o lançamento do WikiLeaks foi responsável por atrair o inimigo para o site do WikiLeaks. A resposta do governo, disse Coombs, foi o que transformou o WikiLeaks de “organização jornalística legítima” para uma “organização terrorista”.
A ONCIX, que é parte do Departamento do Diretor de Inteligência Nacional, juntamente com o Departamento de Supervisão da Segurança de Informação, responsável pela supervisão do sistema de classificação de todo o governo, liderou uma revisão independente sobre os métodos das agências federais ao lidar com informações confidenciais, aproveitando o ensejo criado pelos vazamentos do WikiLeaks em 2010.
O relatório de avaliação de danos da ONCIX intitulado “O mau uso das informações confidenciais pelo WikiLeaks” foi resultado de memorando enviado por Jacob Lew, diretor do Departamento Executivo de Administração e Orçamento, em novembro de 2010. O memorando foi dirigido aos chefes das principais agências federais, requerendo que eles designassem equipes para conduzir revisões internas de “práticas de segurança a respeito da proteção de informações confidenciais” em suas agências.
Um questionário posterior solicitou a essas equipes para que auditassem, entre outros itens, se as agências “capturam provas de utilização de dados anterior e/ou posterior ou de participação em sites que garimpam dados como o WikiLeaks e Open Leaks”.
A Equipe de Mitigação do WikiLeaks no Departamento de Estado foi um dos grupos de trabalho formados a partir das diretivas do então diretor do OMB, Jack Lew, entre novembro de 2010 e janeiro de 2011. A equipe respondia ao embaixador Patrick Kennedy, que também deve depor para a promotoria numa sessão fechada ou com acordo de sigilo durante o processo de decisão de sentença de Manning. Kennedy é a autoridade responsável pelas classificações de 117 documentos diplomáticos vazados e dos Serviços de Segurança Diplomática, órgão em que trabalhou, em parceria com os Departamentos de Defesa e Justiça, nas investigações do caso de Julian Assange, Wikileaks e Bradley Manning, diretamente subordinadas a ele.
O diretor de Contra-inteligência e Apoio Consular do Departamento de Inteligência e Pesquisa (INR) foi responsável, em 2011, por um relatório de avaliação de danos feito para o Departamento de Estado. Em junho de 2012, a secretária-assistente do INR, Catherine Brown, declarou que ela editou esse relatório e encaminhou-o diretamente a Kennedy.
O autor do relatório para o Departamento de Estado é também o contato principal da agência com o FBI, um parceiro na investigação sobre o WikiLeaks, que envolve diferentes agências.
Foi Kennedy quem testemunhou diante da comissão do Senado para Segurança Interna e Assuntos Governamentais, em março de 2011, sobre as medidas tomadas pelo Departamento de Estado em resposta à publicação dos documentos diplomáticos pelo WikiLeaks. Kennedy também testemunhou ao Congresso no final de novembro e início de dezembro de 2010.
Um funcionário do Congresso, que foi brifado pelo Departamento de Estado à época, disse à Reuters que “a administração foi compelida a declarar publicamente que as revelações prejudicaram seriamente os interesses americanos, na tentativa de apoiar esforços legais para desativar o site WikiLeaks e incriminar os ‘vazadores’”.
Uma reportagem da Reuters mostrou que avaliações internas indicaram que o vazamento de documentos diplomáticos e “dezenas de milhares de relatórios de campo do Iraque e Afeganistão” teriam “causado danos limitados aos interesses dos EUA no cenário mundial, ao contrário do que a administração do Obama declarou publicamente”.
“Fomos informados de que [o impacto das revelações do WikiLeaks] foi embaraçoso, mas não danoso”, revelou um assessor do Congresso à Reuters.
Além de Kennedy, o embaixador Michael Kozak, chefe do departamento responsável por formar outro grupo de trabalho para investigar o WikiLeaks, também deve depor em sessão fechada ou sob acordo de sigilo, assim como a secretária-adjunta do Departamento de Relações com o Oriente Próximo, Elizabeth Dibble, e o secretário-adjunto do Departamento de Relações do Hemisfério Ocidental, John Feeley.
Desde janeiro de 2011, Alexa O’Brien já cobriu os vazamentos dos documentos do Departamento de Defesa dos EUA, o vazamento do arquivos de Guantánamo, revoluções no Egito, Bahrein, Irã e Iêmen, o processo de acusação a Bradley Manning e as investigações dos EUA em relação ao WikiLeaks. Ela também entrevistou um especialista americano em política externa sobre os documentos do Camboja, e publicou horas de entrevistas feitas em Guantánamo com guardas, detentos, advogados de defesa e ativistas de direitos humanos, além de entrevistas com parceiros do WikiLeaks, como Andy Worthington, um historiador e autor de livros sobre Guantánamo, e Atanas Tchobanov, o porta-voz do Balkanleaks e co-editor do Bivol.org.Por sua cobertura da guerra ao terror, das revoluções de 2011 no Oriente Médio e Norte da África, e por ter colaborado com a organização da ocupação de Wall Street e em outras cinco cidades americanas em 17 de setembro de 2011, o governo dos EUA e empresas privadas de segurança tentaram falsamente ligá-la, assim como um grupo de reforma de financiamento de campanha que ajudou a fundar, à Al Qaeda e “cyber-terroristas”.Ela é uma das partes num processo contra a administração Obama pela Seção 1021(b)(2) do Ato de Autorização de Defesa Nacional FY2012, com autoria de Chris Hedges e outros cinco reclamantes. A Seção 1021 (b)(2) permite a prisão por tempo indeterminado sem julgamento ou acusação formal – quem for meramente suspeito pode ser considerado pelo Executivo como simpatizante do terrorismo.O depoimento e os pedidos formais feitos por ela foram fundamentais para que a juíza Katherine Forrest concedesse uma liminar permanente em relação à Seção 1021(b)(2). Em junho, espera-se o pronunciamento em segunda instância sobre o embargo solicitado pelo Departamento de Justiça em setembro de 2012.Por um ano e meio, ela produziu a única transcrição disponível sobre as acusações preliminares no caso Manning. Alexa também disponibilizou uma das poucas análises sobre o caso, uma lista de provas forenses, perfis das testemunhas e um banco de dados com as gravações disponíveis das audiências.Por conta da familiaridade com o tema, com os procedimentos e tarefas investigativas, ela foi capaz de “desredigir” uma seleção de documentos do tribunal.Ela foi agraciada com uma financiamento do Freedom of the Press Foundation pelo seu trabalho de cobertura do julgamento de Bradley, e seu trabalho foi indicado para o Prêmio de Jornalismo Martha Gellhorn 2013.
Matéria publicada originalmente no The Daily Beast e traduzida por Luiza Bodenmüller.
(Publicado por Agência Pública)
Artigo original do Comunica Tudo por M.A.D..