Guerrilha do Araguaia: A matança que o Brasil precisa julgar os culpados. |
Quem matou Raimundo “Cacaúba”?
Há dois anos era assassinado em Serra Pelada (PA), Raimundo Clarindo do Nascimento, o “Cacaúba”, a última vítima do Major Sebastião Curió e da repressão política no Brasil.
Por Paulo
Fonteles Filho e Sezostrys Alves da Costa.
Em fins de
junho de 2011 o ex-mateiro das forças armadas, um dos mais importantes
rastejadores recrutados pela repressão política na invasão militar na região do
Araguaia para debelar o movimento insurgente, organizado pelo clandestino Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), é morto estranhamente naquele distrito de
Curionópolis (PA), depois da presença, naquelas cercanias, de Sebastião Curió
que, sabidamente, junto a outros ex-agentes da repressão política, estiveram
naquelas paragens com intentos obscuros.
O próprio
ano de 2011 representou uma viragem fundamental nos trabalhos de investigação
no sentido de localizar dezenas de desaparecidos políticos na Guerrilha do
Araguaia (1972-1975), possível, sobretudo, pela corajosa sentença da Juíza Federal
Solange Salgado que, depois de transitado e julgado, obrigou a União em fins de
2007 a localizar, identificar e esclarecer em que condições aqueles
brasileiros, lutadores pelas liberdades públicas, foram assassinados e sofreram
desaparecimentos forçados pelo estado terroristas dos generais.
Ocorre que o
governo federal, para dar cabo à decisão judicial, criou o Grupo de Trabalho
Tocantins (GTT), do Ministério da Defesa que, entre 2009 e 2010, percorreu a
região realizando diversas escavações, mas com resultados bastante pífios. Em
dois anos, uma ossada foi localizada, na região do Tabocão, em Brejo Grande do
Araguaia (PA).
Em relatório
de fechamento do ano de 2010, a representação do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) presente naquele esforço institucional já indicava que “(...) No curso da segunda expedição do
Grupo de Trabalho Tocantins tomamos conhecimento, através de denúncia de (...)
da presença de remanescentes da repressão ao movimento insurgente e que
estariam fazendo ameaças contra ex-colaboradores das Forças Armadas na região
do Araguaia para que os mesmos não subsidiem de informações o Grupo de Trabalho
Tocantins no sentido de realizar com êxito a tarefa de localizar os
desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia. Em contato com (...) podemos
perceber a angústia daquele trabalhador rural que foi barbaramente torturado
naquele episódio da vida brasileira porque um de seus algozes, conhecido como
‘Doutor Marcos’ que junto com ‘Doutor Ivan’ estiveram na região do conflito na
segunda metade do mês de junho de 2010 (...)”.
A viragem de
2011 ocorreu, sobretudo pelo ingresso, em tal empreendimento civilizatório, do
Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, além da ampliação na presença de familiares de desaparecidos
políticos e de instituições científicas ligadas ao tema. Criava-se, então, o Grupo
de Trabalho Araguaia (GTA) em fins do primeiro semestre daquele ano,
substituindo o moribundo GTT-MD.
O
reforçamento institucional e da sociedade civil, agora perfilados no GTA, vai
atuar severamente no curso das investigações com a convicção de que muitos dos
despojos mortais dos desaparecidos políticos ainda se encontravam na própria
região do conflito.
Tomamos a
consciência, depois de muita bola fora como ensina o jargão do futebol, de que a
grande maioria dos insurgentes araguaianos estava sepultada em cemitérios da
região, como indigentes, o que revela um traço comum do modus-operandi da
repressão política no Brasil, com relação aos desaparecimentos forçados.
Mas o
intento, mais avançado, vai provocar reações de remanescentes da ditadura
militar em nosso país.
Em ofício
formulado à Polícia Federal de Marabá, em fins de março de 2011, o pesquisador
Paulo Fonteles Filho sinaliza que “No
nascedouro de 2011, nos dias 26 e 27 de fevereiro do corrente ano vim até
Marabá para acompanhar (...) o encontro dos ex-soldados e ex-funcionários do INCRA
que atuaram na repressão ao movimento insurgente das matas do Pará. (...) No
encontro, tomamos ciência de que (...), ex-militar, motorista do Major Curió
entre os anos de 1976-1983, também estava sendo ameaçado. Tais ameaças
iniciaram-se em dezembro de 2010 depois que aquele ex-militar passou a
colaborar com os trabalhos do GTT-MD. (...) Na reunião de fevereiro gravamos um
extenso depoimento (...) onde, o mesmo, revela ter participado de uma macabra
“operação-limpeza” em 1976 em diversas localidades na região do Araguaia.
Disse, ainda, que o responsável pelas ameaças que vêm sofrendo é (...) do Major
Sebastião Curió. (...) Em primeiro de março duas ligações anônimas são
desferidas ao celular de (...), sempre em chamadas confidenciais. No dia
seguinte, uma caminhonete peliculada, rondou de forma suspeita, insistentemente, nas imediações de sua casa em (...). No mesmo dia, dois de
março, por volta das 12 horas, uma caminhonete cabine dupla, também peliculada,
com quatro elementos estranhos parou em frente à casa de Sezostrys Alves da
Costa, dirigente da Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia, em São
Domingos (...). Dias depois soubemos (...) que quem esteve circulando pela
região, recentemente, é um tal de ‘Doutor Alceu’, ex-capitão do Exército,
ligadíssimo ao Major Curió (...). Sabemos que nossas vidas (...) de camponeses
e de ex-militares estão sob ameaça e se nada for feito, tenho certeza, um
episódio ainda mais grave poderá ocorrer (...)”.
Diante do
avanço no nível das informações, sobretudo pelo relato de ex-soldados que
passaram a contribuir com o intento investigativo, algumas figuras silenciadas
por quase quarenta anos põem-se a falar, seguramente estimuladas pela coragem
de seus ex-companheiros como, também, pela determinação dos familiares daqueles
heróis nacionais, como é o caso da incansável Diva Santana, irmã de Dinaelza
Santana Coqueiro.
Nesse
contexto é que Raimundo “Cacaúba” passa a contribuir com os esforços
investigativos e presta importantes informações sobre os bastidores da famigerada
atuação militar no Araguaia, verdadeira caçada humana onde dezenas de
opositores políticos foram assassinados sob a custódia do exército brasileiro.
Sabe-se hoje, com rigor documental, de que a liquidação física fora decidida
dentro do próprio Palácio do Planalto, por Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.
Recrutado
pelo “Doutor Antônio”, comandante da base militar de São Raimundo,
violentíssimo agente da repressão, foi atuar como rastejador nas cercanias da
reserva dos Aikewára-Suruí em São Geraldo do Araguaia (PA), em meados de 1973.
Tal “Doutor Antônio”, segundo o relato colhido, permanecera na região até
janeiro de 1985 “procurando algum
guerrilheiro sobrevivente”.
Mas
“Cacaúba”, depois de anos silenciosos, informara que “no local conhecido por ‘Centrinho’, ao lado do Rio Sororozinho,
conheceu ‘Zé Carlos’ (André Grabois), ‘Ivo’ (José Lima Piauhy Dourado) e ‘Joca’
(Líbero Giancarlo Castiglia), este ferido no braço”. Teria, também,
conhecido “a ‘Valquíria’ (Walkiría Afonso
Costa), moradora do São Raimundo que apareceu em sua casa acompanhada de ‘Joca’
depois do tiroteio com o ‘Juca’ (João Carlos Haas Sobrinho)”. Curiosa mesmo
foi à informação de que “os meninos do
mato se comunicavam com os moradores Antonio Monteiro (...), Luís Roque e
Antonio Luís através de uma vara seca e uma vara verde”.
Dentre as
revelações está que “a Valquiría, muito
magra, foi presa na casa do ‘Zezinho’ e Maria ‘Fogoió’ e foi morta pelo Capitão
Magno”. Tal militar, Magno, é muito citado pelas torturas perpetradas
contra os camponeses e que teria sido um dos agentes que atuou, anos depois, na
prisão dos padres franceses do Araguaia, Aristide Camio e Francisco Gouriou, no
inicio dos anos de 1980.
A acusação
era de que os religiosos promoviam a subversão e intentavam, junto com o
advogado da Comissão Pastoral da Terra, Paulo Fonteles, novas guerrilhas e por
isso foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN). Anos depois, em
1987, o advogado Paulo Fonteles foi assassinado pelo latifúndio e o inquérito
realizado indica participação de antigos agentes do Dops e do extinto Serviço
Nacional de Informações (SNI), dentre eles James Sylvio de Vita Lopes, Romeu
Tuma e Rubinete Nazaré.
Com destemor
indicou que na região da “Abobóra” viu “o
‘Joca’ amarrado com embira (fibra extraída de algumas árvores e que serve para
a fabricação de cordas), todo ‘obrado’ e muito machucado”. Teria presenciado o traslado do
combatente, depois de morto, para a Base de Xambioá (TO) e de que lá fora
sepultado. Citou que o “Amaury” (Paulo
Roberto Pereira Marques) fora preso “com o pé baleado e o ‘Doutor Antunes’, da
Base de São Raimundo, provocava-o perguntando se queria comer um mutum e que o
‘Ivo’ foi preso e vestia calça azul tropical”.
Revelou-nos,
ainda, sobre os codinomes de agentes da repressão política, como é o caso dos
doutores “Ivan”, ‘‘Maia”, “Molina” e “João”. O tal ‘‘Molina”, citou, “Não falava igual a nós”.
A coleta de
todas essas informações ocorreu em maio de 2011 e pouco mais de um mês depois,
em fins de junho, é assassinado estranhamente, dias depois que o Major Curió
esteve na região, realizando reunião com aqueles que ainda lhes são fiéis.
Diante do fato,
amplamente denunciado por nós, a Juíza Solange Salgado determinou, em dezembro
de 2011, que a Polícia Federal realizasse investigação sobre prováveis ameaças
e revelou, em entrevista à Folha de São Paulo, na edição do dia 6 de março de
2012, que "Essa questão do
Araguaia está ficando muito preocupante, as ameaças são recorrentes, há
indícios concretos" além do que "as pessoas que viveram naquele momento triste da história
nacional e que hoje tentam colaborar com a Justiça estão sendo ameaçadas de
morte".
Recentemente,
em 2013, tomamos conhecimento de que a Polícia Civil do Pará, responsável pelo
inquérito, sequer abriu procedimento para apurar o assassinato de Raimundo
“Cacaúba”, o que torna o caso cada vez mais singular.
Em dois anos
de investigações, entre 2011 e 2012, o Grupo de Trabalho Araguaia já exumou 14
ossadas, nos cemitérios de Xambioá (TO) e São Geraldo do Araguaia (PA) e há,
para 2013, a expectativa de que possamos encontrar outros tantos desaparecidos
políticos num dos mais importantes sítios mortuários de Marabá (PA), cuja
indicação fora realizada por antigos colaboradores da repressão política.
Enquanto o
Major Curió e outros ex-agentes do aparato repressivo estiverem à solta, outros
assassinatos podem ocorrer, além das pressões e intimidações, própria de quem
cometeu crimes de lesa-humanidade contra brasileiros que lutaram pelo
restabelecimento das liberdades democráticas.
Não
recuaremos.
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