O governador tucano Geraldo
Alckmin levou a tiracolo um estafeta e notório defensor da ditadura à cerimonia
de entrega dos arquivos digitalizados do DOPS, em São Paulo.
O episódio ilustra o corredor de
camaradagem que liga as portas abertas da democracia e os socavões escuros da
ditadura ainda existentes na sociedade brasileira.
Quarenta e nove anos depois do
golpe militar-empresarial e midiático de 64, e passados quase 30, desde o fim
da ditadura, a verdade é que a democracia permanece refém de certos interditos.
Eles são incompatíveis com o
pleno trânsito do regime da liberdade.
Só agora, e muito timidamente,
portas permanentemente fechadas, diante das quais passaram poderes eleitos sem
nunca indagar o que havia dentro, começam a ser devassadas depois da soleira.
A mais notória delas guarda os
nomes dos mortos e desaparecidos políticos e os de seus respectivos algozes.
Outra, intocada, abriga a
colaboração estreita entre o mundo empresarial, a repressão e a barbárie.
Um lacre merecedor da mais prestigiada
das omissões salvaguarda a intocabilidade do monopólio do sistema de
comunicação, setor cuja centralidade em nossa história dispensa apresentações.
Trata-se, talvez, do coração do
arbítrio preservado no metabolismo democrático. E travestido de um de seus mais
sagrados direitos: a liberdade de expressão.
Meia dúzia de corporações
gigantes detém no Brasil um poder emissor incontrastável por quaisquer outros
meios.
Exceto, talvez, se o Estado
convocasse por igual tempo , com idêntica aplicação e abrangência, a
prerrogativa da rede nacional que a Constituição lhe faculta.
‘Mas aí seria a ditadura
chavista!’.
É o que retrucariam , sublevados,
os que hoje se abalam em apontar o dedo desqualificador à pauta de regulação da
mídia, hasteada por amplos setores democráticos e progressistas.
Curiosa democracia de pratos
pensos.
À nunca desmobilizada rede
nacional do conservadorismo, de reconhecidos serviços prestados à lubrificação
do golpe de 64, dá-se o nome de liberdade de expressão.
À contraface equivalente em tempo
e exclusivismo, o de ‘autoritarismo populista’.
O ministro das Comunicações,
Paulo Bernardo, é um dos desenvoltos defensores dessa peculiar faceta, da não
menos peculiar ideia de democracia que borbulha entre graúdos integrantes do
setor em que atua .
Bernardo escudou-se o quanto pode
nessa cambalhota conceitual para desqualificar um projeto sério de marco
regulatório da área pela qual responde atualmente.
Herdou-o de um antecessor que à
diferença do titular atual conhece a engrenagem das comunicações brasileiras
por dentro e por fora.
Como jornalista, como combatente
da ditadura, como homem público a serviço da democracia. E, sobretudo, como
alguém que teve a coragem, e a dignidade, de afrontar o lugar de onde veio.
De poucos se poderá dizer o mesmo
na área em questão, atualmente.
O ex-ministro Franklin Martins
construiu uma proposta de regulação das telecomunicações e da radiodifusão, na
forma de um protocolo equilibrado, pluralista, moderno e centrado num alicerce
inquestionável: fazer respeitar a Constituição.
Nada mais.
Para isso, porém, é preciso abrir
a porta de um recinto até hoje não bafejado pelas decisões soberanas da
Constituinte de 1988, que redesenhou o marco legal de um país egresso da
ditadura militar.
O ministro Paulo Bernardo sabe
que a essência do que se entende por democratização da mídia passa por
regulamentar artigos da Carta, não contemplados até hoje.
Mas sabe também que isso envolve
redistribuição de poder.
O reconhecido e respeitado
pesquisador e professor, Venício Lima,
tem detalhado esse aspecto à exaustão em conferências, livros e artigos,
inclusive em Carta Maior, da qual é colaborador.
Entre os ordenamentos constitucionais há mais de 21 anos à espera da regulamentação nesse sentido encontra-se o caput do artigo 223, que diz:
Entre os ordenamentos constitucionais há mais de 21 anos à espera da regulamentação nesse sentido encontra-se o caput do artigo 223, que diz:
“Compete ao Poder Executivo
outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de
radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da
complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”.
Não há complementariedade sem
equilíbrio em termos de poder emissor, hoje monopolizado pelo sinal privado.
Sobretudo, não haverá
complementariedade sem a intrínseca redistribuição equitativa de uma verba
publicitária federal, hoje devorada pantagruelicamente pelos de sempre.
A emissora líder do oligopólio
midiático, a Globo, abocanha cerca de 70% de tudo o que o Estado brasileiro
gasta em publicidade e informação de utilidade pública.
Essa endogamia não é nova.
Remonta a uma união carnal
estreitada sobremaneira desde o golpe de 64.
De um lado, o quase monopólio de
um poder dotado de descomunal capacidade de autopreservação; de outro, os
interesses de um conservadorismo em permanente litígio com as aspirações
históricas mais amplas da sociedade brasileira.
Dois colossos.
A presidenta Dilma experimentou
na carne, na semana passada, as consequências desse entrelaçamento, que seu
ministro das Comunicações tinge de virtude democrática.
Sua declaração em Durban, na reunião dos BRICS, sobre a precedência do desenvolvimento em relação a clamores de aperto monetário, foi, como disse a própria Presidenta , ‘manipulada’ pela mídia.
Sua declaração em Durban, na reunião dos BRICS, sobre a precedência do desenvolvimento em relação a clamores de aperto monetário, foi, como disse a própria Presidenta , ‘manipulada’ pela mídia.
Objetivo?
Engrossar o caldo da campanha rentista pelo aumento dos juros, a pretexto de uma negligência com a inflação.
Fazer política econômica, enfim,
exacerbando o efeito da própria tendenciosidade do noticiário sobre as
expectativas gerais do mercado.
Disseminar incerteza e
pessimismo, a ponto de anular o efeito dos incentivos e garantias sinalizados
pelo governo para destravar projetos de infraestrutura e expansão industrial.
Tudo indica que o episódio de Durban teve um efeito pedagógico na percepção da Presidenta.
Os interesses rentistas de bolso, palanque e ideologia vocalizados pela mídia, adquirem um poder exacerbado de sabotar o manejo da política econômica na travessia para um novo ciclo de investimentos.
Tudo indica que o episódio de Durban teve um efeito pedagógico na percepção da Presidenta.
Os interesses rentistas de bolso, palanque e ideologia vocalizados pela mídia, adquirem um poder exacerbado de sabotar o manejo da política econômica na travessia para um novo ciclo de investimentos.
A mídia, nesse momento, distorce
o debate e interdita qualquer resposta não ortodoxa para os problemas do
desenvolvimento brasileiro.
Essa barragem de fogo arma o
cerco em torno do governo, na tentativa de imobiliza-lo até 2014.
A indignação de Dilma com o uso
distorcido de suas palavras, num momento em que o país necessita, justamente,
evitar o contágio infeccioso da inflação e o consequente aperto monetário,
causou sugestiva mudança em Bernardo.
À volta da Presidenta, o ministro
passou a concede a hipótese de desengavetar o projeto herdado de Franklin
Martins .
Mas o faz com inoxidável má
vontade.
Como se pagasse um pedágio ao
mercado, equipara o pleito da democratização da mídia a ímpetos dissimulados de
censura.
O ministro não esconde a
contrariedade com a missão de faxinar um esqueleto da ditadura, que gostaria de
preservar no formol confortável da omissão.
O tempo econômico e o calendário
político se fundem na mesma urgência.
Até quando a mão do governo
poderá hesitar sobre a maçaneta dessa porta, sem o risco de ser decepada pelas
baionetas do seu interior?
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