Só a ideia sobrou
Errou quem pensou que o partido de Lula pudesse ser revolucionário e anticapitalista. Difícil teria sido imaginar o PT de hoje
por Mino Carta na Carta Capital
O PT nasceu da cabeça de Lula, sei disso desde começos de 1978, mas é possível que a ideia fosse mais antiga. Em todo caso, antes da reforma partidária excogitada pelo general Golbery, a viabilizar a ideia-anseio do então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
O Merlin do Planalto já percebera a presença de Lula como liderança inédita e intrigante. Não foi certamente para satisfazê-lo, contudo, que a reforma foi lançada ao mar no fim de 1979, no quadro do projeto de abertura sob controle para encerrar, ao cabo, a longa temporada ditatorial. A intenção era estilhaçar o MDB que, à sombra de Ulysses Guimarães, se tornara incômodo ao reunir todos os opositores e resistentes.
O plano de Golbery deu certo. Do MDB assumido como PMDB, afastaram-se o PP de Tancredo Neves, o PT de Lula, o PDT de Brizola, a quem a ditadura negara o retorno ao PTB, entregue de mão beijada à usurpadora Ivete Vargas. A greve de abril de 1980, a repressão feroz em São Bernardo, a prisão de Lula e seu enquadramento na chamada Lei de Segurança Nacional, representam o impulso decisivo para o surgimento do Partido dos Trabalhadores. Com o PT na liça, ganhou alento a esperança de quantos acreditavam na contribuição que um partido de esquerda daria, na aurora da liberdade, à democracia finalmente conquistada.
Sonhei, como exemplo, com o PC italiano de Enrico Berlinguer, inventor do eurocomunismo, livre dos dogmas soviéticos, social-democrático sem mistificações, moralmente impecável. E a respeito sublinho, mais uma vez, que entre os envolvidos na Operação Mãos Limpas não figurava um único, escasso militante do PC. O esquerdismo de Lula não é questionável. Ele sempre soube das vantagens morais e materiais da igualdade. Um pragmático que não desconhece os atalhos da realpolitik.
Havia outros, ao nascer o PT, chamados a cuidar de uma definição ideológica mais precisa, mas as características do líder não obstavam o papel que, na minha visão, haveria de ser arcado pelo PT. Pensava, justamente, naquele desempenho na Itália pelo PC, e por um sindicalismo forte e de grandes tradições, capaz de precipitar, através de pressões miradas, um fenômeno que Gramsci chamara de fordismo, inspirado em Henry Ford, o magnata da indústria norte-americana: aumentava o salário dos seus empregados para habilitá-los à compra do carro que eles próprios fabricavam.
Intelectuais destacados aderiram ao novo partido, nem todos honraram a participação. A começar pelo sociólogo Francisco Weffort, convocado para o posto de secretário do partido e aparentemente destinado a selecionar e aprimorar as ideias orientadoras dos caminhos a seguir. Admiro várias figuras da esquerda brasileira, mas não confiei e não confio em muitos que nas últimas décadas se disseram esquerdistas. Carecem de credibilidade porque são transparentes neles a falta de crença autêntica, da sinceridade dos destemidos, quando não o modismo tolo, e o oportunismo. A hipocrisia. Não me refiro a Fernando Henrique, José Serra, Aloysio Nunes Ferreira e tantos outros eméritos, patéticos ex-esquerdistas, hoje tucanos, aludo a quem me enganou por algum tempo.
Há de se temer, e muito, aquele que sai da esquerda para descambar à direita. Está é, a meu ver, uma regra básica do relacionamento com o semelhante. Melhor o caminho inverso, e louve-se, acima de tudo, a coerência. Não foi própria do comportamento de Weffort: de secretário e ideólogo do PT a ministro de FHC. Ou de uma pletora de jovens, inflamados trotskistas hoje adeptos, sem rebuços, do fascismo, inclusive nas páginas dos jornalões. E até de inúmeros petistas, a começar pelos imponentes José Dirceu e Antonio Palocci, ou pelo nem tão imponente Luiz Eduardo Greenhalgh. E a prosseguir pelos Delúbio ou pelos Vaccari, pelos Duque e pelos aloprados.
Lamentável enredo de um partido que por 22 anos viveu dignamente, como exemplar único na história política brasileira, e, alcançado o poder, porta-se como todos os demais, clubes voltados aos interesses pessoais dos seus líderes. Quem sonhou com um partido revolucionário e anticapitalista apostou errado, está claro. No meu canto, pensei apenas no partido de Lula, amigo faz 38 anos, e que me satisfazia plenamente. Pois é, pragmático, de sorte a ficar na bissetriz das circunstâncias.
Atingido o poder, o ensaio do desastre deu-se quase de imediato. Explícita, a incapacidade de recorrer à imaginação para sair por tangentes renovadoras. Nada sobrou, além da imitação das experiências tradicionais, do poder pelo poder. Sem contar a postura provinciana, recalcada, pequeno burguesa que impregna a sociedade brasileira, os mais ricos inclusive, a proporem um tema que encantaria Balzac. E, a bem da compreensão do reparo, não me refiro àquele que “acertou na pinta” ao recomendar “mulher só depois dos trinta”.
Nem por isso, Lula deixou de realizar o melhor governo de todos os tempos. Mesmo aos primeiros sinais da crise, falar em marola não foi descabido. A rebordosa veio depois e pegou Dilma, que não sabe surfar. Nem sei se as atuais lideranças petistas se dão conta da responsabilidade que, inexoravelmente, recaem sobre elas e as tornam, aos olhos da turba, responsáveis por todos os pecados do país imaturo, medieval, vincado por um desequilíbrio social insuportável, dominado por uma elite tão predadora quanto incompetente.
O desfecho desta crise avassaladora que vivemos não se oferece à previsão fácil. Nas condições atuais, nenhuma das imagináveis parece descortinar um futuro promissor. Nunca me filiei ao PT. Em tempos já remotos, Jacó Bittar e seu lugar-tenente certa noite dormiram na minha casa, começos dos anos 80. Jacó passou umas horas extenuantes pós-jantar para me convencer a entrar no partido. Argumentei: “como jornalista não devo”, embora admitisse minhas esperanças. Hoje feneceram, como a flor murcha desta página.
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