Conforme já analisei no meu livro Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica (Fórum, 3ª ed., 2015), a Constituição Social, Republicana, Desenvolvimentista e Democrática de Direito de 1988 prevê que, em serviços públicos sociais como educação e saúde, o Estado deve ser o principal prestador, mas é importante a existência de uma sociedade civil organizada e que complemente determinados serviços. Para isso pode ser fomentada pelo próprio Poder Público, mas de forma a seguir os princípios da moralidade, isonomia, publicidade, entre outros princípios constitucionais.
Por isso sempre fui um defensor da Lei 13.019/2014, que trata do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, por não ser contaminada com o neoliberalismo-gerencial da década dos anos de 1990. E tinha orgulho de ter participado do evento inaugural dos debates sobre essas Lei em 2011, em Brasília, como debatedor.
O problema é que o Congresso Nacional, por meio da Lei nº 13.204, de 14 de dezembro de 2015, simplesmente desconfigurou a legislação. Claro que de forma aprofundada apenas tratarei do tema em artigo científico ou na 4ª edição do meu livro.
Mas pretendo comentar rapidamente sobre algumas alterações importantes:
Incluiu no rol das OSCs as cooperativas sociais e as organizações religiosas
Após o lobby das entidades filantrópicas na área da saúde, elas foram retiradas da aplicação do MROSC. Ou seja, voltaram a existir os convênios público-privados na área da saúde, sem a disciplina da Lei das OSC. O intuito é que os convênios utilizados para fins de privatização da saúde, sem licitação, sejam mantidos, com o repasse de bilhões de dinheiro pública para essas entidades poderosas.
Outro absurdo é que os termos de compromisso cultural referidos no § 1o do art. 9o da Lei no 13.018/2014 também não vão mais ser disciplinados pelo MROSC.
O legislador, ao invés de simplificar e diminuir o número de acordos de vontade, apenas complica ainda mais o ordenamento jurídico, tudo para satisfazer feudos da saúde e cultura.
Outra falha foi retirar os termos de parceria com as OSCIPs – organizações da sociedade civil de interesse público (Lei 9.790/99), da aplicação do MROSC. Essa legislação de 1999 nem deveria ter sido mantida, e agora volta a ter vida própria.
Também retirou da aplicação do MROSC os bilhões de dinheiro público que serão repassados para as APAES, demais entidades de atendimento educacional especializado às pessoas portadoras de deficiência e escolas privadas de atendimento especial assistenciais.
A nova lei ainda permite, pasmem, que entidades integradas pelos membros da magistratura, parlamentares, membros do Ministério Público, entre outros servidores, recebam anuidades com dinheiro público sem a aplicação do MROSC.
Por fim, o MROSC não será aplicado às parcerias entre a Administração Pública e os serviços sociais autônomos.
Ou seja, o MROSC foi totalmente esvaziado, em decorrências de setores poderosos de nossa sociedade. Um retrocesso incrível e absurdo.
A nova Lei ainda retirou a obrigação da realização de chamamento público prévio aos termos de colaboração ou de fomento que envolvam recursos decorrentes de emendas parlamentares às leis orçamentárias anuais e os acordos de cooperação.
A nova lei ainda dispensa a realização do chamamento público no caso de atividades voltadas ou vinculadas a serviços de educação, saúde e assistência social, desde que executadas por organizações da sociedade civil previamente credenciadas pelo órgão gestor da respectiva política. Mais um esvaziamento da lei.
Agora será inexigível o chamamento público quando a parceria decorrer de transferência para OSC que esteja autorizada em lei na qual seja identificada expressamente a entidade beneficiária (inclusive subvenção da Lei 4.320/64 e LC 101/2000).
Diminuição de tempo de existência da entidade que vai receber dinheiro público, sendo que antes era sempre três anos.
A lei original dizia que as OSCs não poderiam ser utilizadas para prestação de serviços ou de atividades cujo destinatário era o aparelho do Estado, contratações de consultori, e apoio administrativo. Isso tinha que ser uma obviedade. Esses objetos são contratuais, e não relativos a outros tipos de parceria. Entendo que mesmo com a retirada, esses objetos seguem a Lei de Contratos Administrativos, e não parcerias para fomento ou colaboração.
A nova lei também não exige mais que as OSCs, quando forem gastar dinheiro público, o façam seguindo os princípios da moralidade, impessoalidade, entre outros, de acordo com regulamento. Ou seja, menos controle e mais corrupção nos gastos com dinheiro público.
A nova lei não proíbe mais taxas de administração. Só retrocessos?
A modificação não proíbe mais pagamento de remunerações acima dos valores de mercado. Virou festa?
A nova lei ainda criou mais um caso de dispensa de licitação para os contratos administrativos, ao incluir inciso no art. 24 da Lei 8.666/93: “XXXIV – para a aquisição por pessoa jurídica de direito público interno de insumos estratégicos para a saúde produzidos ou distribuídos por fundação que, regimental ou estatutariamente, tenha por finalidade apoiar órgão da administração pública direta, sua autarquia ou fundação em projetos de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e estímulo à inovação, inclusive na gestão administrativa e financeira necessária à execução desses projetos, ou em parcerias que envolvam transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o Sistema Único de Saúde – SUS, nos termos do inciso XXXII deste artigo, e que tenha sido criada para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”.
Por fim, uma alteração importante é que a vigência da lei para a União e estados será em janeiro de 2016, mas para os municípios apenas em 1º de janeiro de 2017.
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