As razões pelas quais o Estado não pode se “acadelar”
Por Lenio Luiz Streck, no Conjur
“Para mim, há direito suficiente; o que há de pouco é “Estado”. Sim, há pouco Estado. Estado que não faz políticas públicas, não constrói presídios, deixa os que aí estão em petição de miséria e não fornece segurança pública aos utentes. O ovo da serpente pode ter estado lá atrás, quando o governo de São Paulo fez um acordo com o PCC, que, a meu pensar, naquele momento ainda não era o “bando soberano” aqui tratado. Ele foi se construindo nesse tempo todo. Ao lado ou virado de costas, o Estado se “acadelou”.”
No Banquete de Platão, a deusa Pênia não foi convidada para o “butim”, arrastando-se por entre as sebes do jardim e se alimentando com os restos da grande festa. “Pênia” quer dizer penúria. O que falta, o que resta, o que fica de fora… o fraco.
Pois tudo está indicar que, na assim denominada “guerra de São Paulo”, com baixas assustadoras entre policiais e civis, Hobbes e Freud ficaram de fora do butim. Na verdade, acostumados a reverenciar o “deus” Rousseau (a responsabilidade é sempre da estrutura), as autoridades foram deixando o papel da interdição da lei (no sentido legal e psicanalítico da palavra) afrouxar. Quem deveria ser o protagonista, acaba sendo um coadjuvante. De péssima performance, aliás.
Como explicar a guerra de São Paulo? Na obra de Giorgio Agambem, tem-se o “novo” personagem. Ele é o homo sacer, que possui uma vida nua…Trata-se de uma vida totalmente “matável”, como diz Agambem. Uma espécie de lúmpen pós-moderno. Nessa “vida”, enfim, nesse ambiente em que “vive” o homo sacer, não há distinção entre público e privado, direita, esquerda, nada disso tem sentido. Uma espécie de psicopatia social. Esse mundo é um produto da ausência das Instituições. É o nada, o vazio que acaba produzindo o caos. Há uma “máquina biopolítica” (Agambem) que produz esse “novo” homo sacer. Ela produz suco. Suco humano.
As cadeias são máquinas biopolíticas. São campi criados pelo Estado. E, para fazer isso, o Estado suspendeu a lei. Sim: precisamos admitir que o tipo de prisão que temos é decorrente de um “Estado de Exceção”, entendido esse quando há uma suspensão da lei (não é necessário dizer quantas leis – e em especial a LEP — que foram suspensas).[1] Ou seja, quem possui o monopólio da coerção legítima o exerce sem respeitar aquilo que lhe é condição de possibilidade: A própria Lei.
Pois é. Masmorras medievais produzem coisas… De lá sai a “vida nua”, de que fala Agambem. Lá dentro estão os “matáveis”. Estão aqueles que estão à disposição… de um estado de exceção permanente. Mas, fora da masmorra, há outra máquina de produção, que retroalimenta esse “sistema”. São as periferias produtoras da violência. A perfeita imbricação da ausência do Estado e da falta de interdição da lei produz uma nova presença: aquele que se apresenta como o “preenchedor do vácuo”.
Veja-se: O teórico Agambem nunca pensou que o homo sacer fosse se voltar contra os construtores da “máquina biopolítica”. O resultado: uma espécie de neoterrorismo. Que não é político, que não é reivindicativo, a não ser um tipo de poder sobre a aliança “favela-prisão”. Nesse contexto, não há lei. Há um continuum de pequenos soberanos, que suspendem a lei a todo momento. É o troco que é dado para quem produziu tanta vida nua. Um “bando soberano”: é esse o conceito dos que colocam em pânico (e em constante risco físico) a população de São Paulo.
Como combater esse “bando soberano”? Por certo não será com a repristinação da velha Lei de Segurança Nacional, que sequer foi recepcionada pela Constituição de 1988. Suspender a lei (garantias), ou seja, fazer um combate como se fosse uma guerra, a partir de um “oficial-estado-de-exceção”?[2] Penso que não. O Estado não pode ser tornar também uma coisa fora da lei. Seria um retrocesso. E seria o reconhecimento de que ali do outro lado está alguém que é simplesmente um inimigo, quando, na verdade, ele é mais do que isso. Nessa vida nua, “suspende-se” a tese de “amigo-inimigo”, enfim, essas dicotomias que forja(ra)m a modernidade.
Para mim, há direito suficiente; o que há de pouco é “Estado”. Sim, há pouco Estado. Estado que não faz políticas públicas, não constrói presídios, deixa os que aí estão em petição de miséria e não fornece segurança pública aos utentes. O ovo da serpente pode ter estado lá atrás, quando o governo de São Paulo fez um acordo com o PCC, que, a meu pensar, naquele momento ainda não era o “bando soberano” aqui tratado. Ele foi se construindo nesse tempo todo. Ao lado ou virado de costas, o Estado se “acadelou”.
Nada desculpa o Estado. E nada desculpa a ação desses homo sacers. Deixemos isso bem claro. Onde começa o esgarçamento do Estado e do poder de interdição da lei? Esse é o busílis da questão. Houve o esgarçamento da interdição. Como no livro O Senhor das Moscas (prêmio Nobel para William Golding), em que meninos da aristocracia inglesa são levados, no período da Guerra Fria, para uma ilha deserta, para salvá-los de um conflito nuclear e ali pudessem começar uma nova sociedade. No caminho, caiu o avião. Morreu o piloto; morreu o instrutor. Cada um por si… nenhum por todos. Sem Deus, sem Estado, sem nada… Em uma semana, organizam-se em pequenos bandos e se matam. Somente com a volta do “Estado” — da lei — é que aqueles meninos em estado de natureza voltam à civilização, abandonando a barbárie.
Pois é isso. Entre civilização e barbárie, não interditamos. Daí a pergunta que costumo fazer, a partir do psicanalista Alfredo Jeruzalinski: como combater o gozo da sociedade sem ser tirânico? Na verdade, eis aí o problema: o Estado não combateu o “gozo” (no sentido psicanalítico) nesse contexto paulista na hora certa. Mais que um estado-de-natureza, o Estado deixou que surgissem personagens (penso que são vários; não há apenas um chefe) que se aproveitam da vida nua, dohomo sacer. Usam os “matáveis” para matar outros — estes considerados “não-matáveis” (ainda).
Como dizia Nelson Rodrigues, com seu sarcasmo mortal, a ineficiência, a corrupção etc., não vieram do nada. São produtos de “muito trabalho” e “muita dedicação”. Quando o Estado, lá atrás, abriu mão de construir presídios porque não era um bom “investimento”, usou como escudo uma velha máxima falaciosa do tipo “quem constrói um presídio fecha uma escola” (ou algo chato similar). Além disso, fomos invadidos/tomados por uma espécie de “culpa por punir”. Consequentemente, quase saímos por aí pichando as ruas com jargões do estilo “é proibido proibir”. “Fora com o Direito Penal”.
Crime hediondo, então, é uma palavra maldita (isso dá boas repercussões em palestras… todo mundo vira garantista e crítico). Muitos chegam a esquecer que a palavra “hediondo” está na Constituição, como garantidora de direitos fundamentais (art. 5º, XLIII), que, aliás, possui mandamentos de criminalização, também ao contrário que muita gente boa por aí diz. Aliás, de há muito devíamos ter adaptado a legislação penal à Constituição, por exemplo, com uma nova teoria do bem jurídico… Ou alguém acha que isso que está acontecendo não tem nenhuma relação com absurdos do tipo “furto qualificado tem pena equivalente à lavagem de dinheiro”?
Mesmo assim, como as prisões foram enchendo, começamos a fazer paliativos, como afrouxar o cumprimento das penas (um sexto etc. — um homicídio simples vale um ano de prisão…). O trabalho externo dos apenados nunca foi vigiado. Chegamos a conceder indulto para crime hediondo. Se pena não regenera — e alguém poderia acreditar nessa balela?! — ela é castigo (necessário) e serve para prevenção geral. É retribuição. Isso é velho. Nenhum país do mundo abriu mão da pena de prisão. E, registre-se, pena de prisão não é só para crime violento.
Mas nós inovamos. Queremos ser libertários com a liberdade alheia. Com a insegurança da patuleia. Quando promulgamos a Lei dos Juizados Criminais, todas as pequenas infrações passaram a ter penas alternativas (cesta básica). Na sequência, veio uma nova Lei, na carona (Lei 10.259), pela qual todos os delitos cujas penas máximas não passassem de dois anos, passariam ao patamar de “menor potencial ofensivo”. Com isso, mais de 60 modos diferentes de delinquir passaram a ser punidos com a mesma pena: o pagamento de cesta básica. E todos (ou maioria) disseram: agora vai! Será?
Será que não havia um componente simbólico-psicanalítico nesse afrouxamento? Abuso de autoridade, desacato, desobediência (vejam a sutiliza desses crimes) passaram a ser tratados como “menor potencial ofensivo”. E invasão de domicilio com armas? Hein?! Não há aspecto simbólico nisso? Fraude às licitações? Pode? Esses crimes são, mesmo, de menor potencial ofensivo?
Ora, a sociedade é uma rede simbólica. Como dizia Castoriadis, o gesto do carrasco, real por excelência, é simbólico na sua essência. E o que mais importa no gesto do carrasco é o aspecto simbólico. Enfim: o que importa é o que os outros pensam sobre esse gesto… Qual é a simbologia? Vejamos: onde fica a autoestima da sociedade? 90% dos crimes não são investigados; 90% das denúncias é fruto de auto de prisão em flagrante… E alguém tem dúvida de que a impunidade lato sensu influencia no imaginário da violência? O simbólico e o simbolismo, nesse contexto, é “fatal”!
Pois bem. O case São Paulo é o resultado de uma construção simbólica das diversas teias de poder que surgiram em face de ausência que redundaram em (novas) presenças. Quem constrói vida nua recebe o troco. Dele mesmo, desse homo sacer. Que de “matável” se transforma em “matador”… a serviço dele mesmo.
O Estado deve retomar o seu papel de interditor. Repito: Direito há; o que falta é Estado. Pensem bem: um Estado que admite que o crime de abuso de autoridade merece ser punido com cesta básica é porque não conhece o sentido da interdição fundante da modernidade.
Mas o Estado não necessita fazer um “Estado de exceção” para alcançar seu desiderato. Ele não precisa se igualar. Precisa tomar medidas profiláticas e, depois, preventivas. Voltar a ser “Estado”. Estatuir. Definir onde está o limite entre civilização e barbárie. Assim começou a modernidade! Necessita apenas usar os mecanismos institucionais que estão à disposição. Sem abrir mão das garantias — como em qualquer democracia avançada — enfrentar o “bando soberano” que atormenta a sociedade. Antes que esse “bando” crie filhotes, em outros Estados.
Se o Estado não voltar a “interditar” (no duplo sentido de que falo), teremos que tomar cuidado com a formação de milícias. Este é o caminho para a barbárie. Um enfrentamento ad hoc. Fora das redes oficiais. Aí, sim, veremos a guerra.
O interessante paradoxo se forma: parcela da sociedade e da comunidade jurídica que sempre olhou o Direito Penal de soslaio agora quer usar “leis de exceção” para combater o estado-de-coisas paulista. Eu, não. Sou contra a exceção. Sou contra qualquer suspensão da lei. Antevendo esse problema no Rio Grande do Sul, em 29 de maio de 2009, em face do caos presidiário (que agora se gravou), representei ao procurador-geral da República pela Intervenção no estado do Rio Grande do Sul — leia aqui). Nunca houve resposta a tal Representação. Notícia de final de semana (dia 11.11.2012): a Defensoria Pública pretende entrar com ação civil pública para liberar 500 presos da massa carcerária em uma só tacada, para que cumpram as penas em suas casas. Já há claramente a vida nua no Rio Grande do Sul.
Numa palavra: E depois de acabar com o “bando soberano”… o que fará o Estado? Parece que há uma coisa presente (ou ausente) desse debate: o direito fundamental à segurança pública. Que está na Constituição. Poderíamos falar até de descumprimento de preceito fundamental, pois não? Quem aciona a Justiça? Afinal, um país que aposta no ativismo judicial… (não posso deixar de ser irônico nisso).
Não somos pós-modernos. Estamos na alta-modernidade, como diria Giddens. As promessas descumpridas da modernidade devem ser resgatadas. Urgentemente. E uma delas é a segurança (penso, aqui, no Triângulo Dialético propalado por JJ Gomes Canotilho, onde um dos vértices é a segurança). Sem discursos do tipo “o crime é produto social”; ou “a culpa é da estrutura”; “o homem nasce bom, a sociedade o corrompe” (argh!); e sem a chatice do “é proibido proibir”, de certos setores que parecem estar no século XIX, como se houvesse a dicotomia “Estado mau-cidadão bom). Pois é. Com esse tipo de procedimento, de grão em grão, não somente não fornecemos segurança como também “fabricamos” a vida nua. E temos aí o nosso homo sacer. A opção pela civilização deve ser o modo de combatê-lo. Ele também é produto. Mas um produto com o qual ninguém contava. Quando prendermos ele(s), vamos ver se não reproduzimos os mesmos erros.
O que fazer, concretamente? Primeiro, tudo dentro da lei. Rigorosamente na forma da lei. Sem qualquer suspensão. Sem qualquer estado de exceção (oficial ou oficioso). A Constituição, no seu artigo 34, III, apresenta à comunidade jurídica-social a possibilidade de Intervenção Federal para por termo à grave comprometimento da ordem pública (se isso não ocorrendo, estão está “tudo bem”, certo?). Sim: Intervenção. Princípios sensíveis violados. Direitos-da-pessoa-humana-violados. Dos dois lados: Dos que estão presos nos campi da vida nua e daqueles que estão fora dos campi, sendo mortos pelos homo sacers produzidos pela inércia do Estado. Além disso, construir presídios. Dignos. Acabar com as milícias. E exercer o controle externo da atividade policial, para impedir que, por uma “vontade de miliciamento”, essa “guerra” seja retroalimentada.
Finalmente, trabalhar para que não haja mais campi de construção de vida nua. Isso para o futuro. Para o presente, o Estado deve “estatuir”. E não se “acadelar”. Encerro com uma citação do jurista-sociólogo Luciano de Oliveira (Segurança: Um direito humano para ser levado a sério, in Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito n.º 11. Recife, 2000., p. 244/245), a partir de sua tese de doutoramento defendida na Sorbonne, para quem as vezes esquecemos da relevante circunstância de que a segurança é, ela também, direito humano:
“Está lá, já no artigo 2º da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: os direitos ‘naturais e imprescritíveis do homem’ são ‘a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão’ — grifei. Declaração tipicamente burguesa, dir-se-ia. Mas é bom não esquecer (ou lembrar) que em 1793, no momento em que a Revolução empreende uma guinada num sentido social ausente na primeira — uma guinada a esquerda, na linguagem de hoje —, uma nova Declaração aparece estabelecendo, em idêntico artigo 2º, praticamente os mesmos direitos: ‘a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade’ (in Fauré, 1988: 373) — grifei. Mais adiante, o artigo 8º definia: ‘A segurança consiste na proteção acordada pela sociedade a cada um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades (idem p. 374)”.
E acrescenta o jurista pernambucano:
“Cento e cinquenta anos depois a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU — na qual figuram, ao lado dos direitos civis da tradição liberal clássica, vários direitos sócio-econômicos do movimento socialista moderno — repetia no seu artigo 3º: ‘Todo indivíduo temo o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” . E, no entanto, esse é um direito meio esquecido. No mínimo, pouco citado. Ou, então, citado em contextos onde o titular dessa segurança pessoal aparece sempre como oponente de regimes ditatoriais atingido nesse direito pelos esbirros de tais regimes. Dou um exemplo significativo: numa publicação patrocinada pela UNESCO em 1981, traduzida entre nós pela Brasiliense em 1985, seu autor, ao comentar esse direito dá como exemplo o caso de Steve Biko, ativista político negro torturado e morto pela polícia racista da África do Sul em 1977. E comenta: ‘O caso Steve Biko é apenas um exemplo bem documentado de uma situação em que o Estado deixou de cumprir sua obrigação de assegurar e proteger a vida de um indivíduo e em que violou este direito fundamental que, infelizmente, tem sido violado pelos governos em muitas partes do mundo’ (Levin, 1985: 55 e 56).
Numa palavra
Ou seja: por razões que são, reconhecemos, compreensíveis, a segurança pessoal como direito humano, quando aparece na literatura produzida pelos militantes, é sempre segurança pessoal de presos políticos, ou mesmo de presos comuns, violados na sua integridade física e moral pela ação de agentes estatais. Ora, com isso produz-se um curioso esquecimento: o-de-que-o-cidadão-comum-tem-também-direito-à-segurança, violada com crescente e preocupante frequência pelos criminosos.(grifei e hifenizei!)
[1] Quando não cumprimos uma lei que não é considerada inconstitucional, estamos praticando “estado de exceção”. Daí que determinadas posturas ativistas se caracterizam como “estado de exceção”.
[2] Como se um estado de exceção pudesse ser chamado de “oficial”. Mas, prossigamos.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 13 de novembro de 2012
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