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O “ajuste fiscal” e a paz de espírito dos tubarões

3 de Agosto de 2015, 11:56 , por Feed RSS do(a) Blog do Tarso - | No one following this article yet.
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Sexto texto da parceria entre o Blog do Tarso e a APUFPR, que lançaram campanha para discutir o ajuste fiscal e seus impactos na universidade. Ver também: O ajuste fiscal e as universidadesA Desoneração interessa a quem?O sistema da dívida pública gera riqueza à custa dos direitos sociais do povo brasileiroLógica da austeridade e A ideologia do ajuste fiscal coloca a ciência e a sociedade em apuros.

Por Claus Germer

‘Como os dados sobre o valor do ajuste fiscal e suas possibilidades já são conhecidos de todos, vou ater-me ao sentido desta política. Ela é apresentada, pelos seus defensores e até por alguns críticos, como uma necessidade para ‘equilibrar o orçamento’ e viabilizar o retorno do crescimento econômico. O objetivo declarado do ajuste fiscal é ‘preparar a economia para a retomada do crescimento’, mas a eficácia do ajuste fiscal neste sentido é duvidosa e sujeita a interminável polêmica entre economistas, de modo que não pode ser levada a sério. Apesar disto, todos os governos capitalistas, de todos os quadrantes ideológicos, diante de uma crise aplicam a mesma política. Por que?

O motivo real é que é necessário transmitir aos ‘agentes’ (que na linguagem cifrada da economia oficial significa capitalistas ou empresários) um sinal de que o governo é confiável e garante a estabilidade, a fim de ‘estimulá-los’ a investir. Esta lógica é a desgraça dos governos social-democratas, isto é, dos governos que prometem aos trabalhadores instituir a igualdade e a felicidade geral sob o capitalismo. Desde os primeiros governos deste tipo, instalados após a I Guerra Mundial na Europa, a história proporcionou uma lição que foi, infelizmente, ignorada no Brasil: tais governos são uma armadilha que liquida politicamente tais partidos como portadores de mudanças superadoras do capitalismo. A razão disto reside no fato de que a sua sustentação eleitoral, constituída pela classe trabalhadora, só se mantém caso consiga garantir a manutenção e expansão dos empregos e salários, além dos demais direitos, o que exige que a economia se mantenha em crescimento. Mas só pode ser feito por quem detém a condição básica para oferecer emprego e salário, que é possuir meios de produção e circulação, isto é, fábricas, fazendas, minas, meios de transporte, supermercados, escolas, hospitais, etc. Quem os possui, porém, em sociedades capitalistas, é a classe capitalista ou empresarial, não os governos. Quando os governos são diretamente exercidos por representantes desta – que é a situação mais geral –, os interesses de ambos coincidem e tudo se faz ‘naturalmente’. Mas quando são exercidos por representantes, mesmo que ‘moderados’, da classe trabalhadora, estes podem ser chantageados pela recusa do empresariado em dar continuidade aos investimentos.

Os partidos social-democratas geralmente chegam ao governo quando a economia encontra-se em crise relativamente profunda e prolongada, e lá chegam com base em plataformas críticas do capitalismo e dos capitalistas, prometendo o fim da exploração e a ampliação de direitos de todo tipo. Mas, chegados ao ‘poder’ (entre aspas porque ascender ao governo não é tomar o poder, pois o poder real consiste na posse dos meios de produção e circulação, pelo menos dos fundamentais, que nos países capitalistas encontram-se nas mãos de uma parte minoritária da sociedade, que é a classe capitalista, que por esta razão domina economica e politicamente toda a sociedade), portanto, chegados ao poder defrontam-se com o fato de que a economia só pode recuperar-se caso os capitalistas se decidam a manter e ampliar seus investimentos, e só o fazem com a garantia da ‘segurança’ da sua propriedade e dos lucros pretendidos. Assim, os governos social-democratas são obrigados a engolir as promessas eleitorais e sujeitar-se à chantagem da classe que detém o poder real, e iniciam os mais diversos tipos de programas de ‘ajuste’, reclamados pela classe empresarial, que são o oposto exato das promessas que lhes deram efêmeras maiorias eleitorais. Ao aplicar tais programas, que reduzem empregos e salários, a fim de ganhar a ‘confiança’ do empresariado, tais governos perdem a confiança da classe que pretendem representar, a classe trabalhadora, e a sua sustentação eleitoral. É o que está ocorrendo no Brasil hoje. Outro exemplo prático, e mais dramático, ao vivo e em cores, pode ser observado também nestes dias na Grécia. Todos os programas de ajuste consistem basicamente em variantes, mais ou menos radicais, da política de ‘ajuste fiscal’ que estamos sofrendo no Brasil neste momento, cuja essência é jogar sobre as costas dos assalariados o custo exigido pela classe capitalista para, supostamente, dignar-se a investir.

Esta é a razão básica que justifica a tese de que a classe trabalhadora – que é a maioria da população dos países capitalistas, 75% ou mais – só poderá ser livre e a sociedade só será democrática quando os meios de produção e de circulação passarem às mãos de toda a população, portanto sob propriedade social e economia planejada, deixando de ser instrumento de chantagem que submete a sociedade aos mais bárbaros processos de exploração e opressão.

Por que se pode dizer, como no início deste artigo, que a eficácia do ‘ajuste fiscal’ é incerta? A principal razão é que o desajuste fiscal não é a causa da crise econômica, mas, ao contrário, é a crise que causa o desajuste. Consequentemente, se o desajuste é consequência da crise, segue-se que o ajuste só pode ser obtido eliminando-se a causa da crise, e esta é complexa e situa-se nas próprias entranhas da economia capitalista e não pode ser eliminada por políticas econômicas. Se isto fosse possível as crises já não existiriam. Isto pode parecer inconvincente, mas é facilmente explicável: a economia capitalista não é uma economia planejada, de modo que sua trajetória não é controlável, uma vez que, dada a propriedade privada dos meios de produção e de circulação, sua trajetória é determinada pelo entrechoque caótico de uma infinidade de agentes independentes. A natureza deste entrechoque contém os elementos que tornam as crises inevitáveis. Como todo sistema, a economia capitalista possui uma lógica expressa em leis de movimento sistêmicas, que produzem tanto as crises quanto a superação das crises, independentemente de ‘políticas’ econômicas. Observe-se, por exemplo, que a economia mundial está em crise desde 2008, há sete anos portanto, e, apesar de todo o aparato informatizado e a genialidade de bem pagos consultores de todo tipo, ainda não foi debelada. Por isto pode-se dizer que as crises econômicas só deixarão de existir quando o capitalismo deixar de existir. Aos que duvidarem, basta dizer que crises financeiras existem desde 1620 e crises industriais desde 1825, e tudo que se fez para tentar evitá-las não funcionou, como se pode constatar facilmente pela repetição, até hoje, destas mesmas crises, além de novos tipos de crises que se acrescentaram às anteriores.

O objetivo real do ajuste é atender às exigências da classe empresarial, que chantageia os governos e a sociedade porque mantém em seu poder, como reféns, os meios de produção e de circulação, que só liberam – ou seja, só investem – caso as suas exigências sejam atendidas. E a exigência central é assegurar a segurança e a rentabilidade dos seus capitais. Toda a sociedade deve sujeitar-se a todo tipo de sacrifícios em nome desta exigência. A dívida pública compõe-se essencialmente de aplicações da classe empresarial, remuneradas pela receita pública. Enquanto os investimentos nas atividades econômicas usuais não podem ser manipulados à vontade para voltar a dar lucros, porque estão sujeitos às leis impessoais e incontroláveis da economia em crise, a dívida pública, sujeita aos governos e de certo modo fora dos circuitos econômicos convencionais, pode ser manipulada até certo ponto. Os rendimentos da dívida pública, para serem pagos, requerem que os governos possuam fundos adequados, e é a isto que o ‘ajuste fiscal’ se presta: garantir a capacidade de pagamento da dívida pelo Estado, e a disposição deste de fazê-lo a todo custo. A existência de um ‘superávit primário’ é sinal de que o governo se sujeitou à exigência empresarial e as despesas estão sendo comprimidas abaixo das receitas, em detrimento das necessidades do restante da população, de modo que há uma sobra para a remuneração dos credores, o que os ‘tranquiliza’, embora intranquilize dramaticamente o restante da população. Paradoxalmente, as crises econômicas favorecem os parasitas do orçamento público, pois a queda da arrecadação, decorrente da crise, obriga os governos a aumentar a tomada de empréstimos, mas, devido ao aumento do risco, os aplicadores exigem maiores taxas de juros, o que melhora a situação dos credores mas piora a situação fiscal.

A tranquilidade de espírito dos credores, garantida pela gestão ‘responsável’ (isto é, a favor dos seus bolsos) do orçamento público, não assegura que decidam liberar os seus meios de produção e circulação (isto é, investir), para que a economia volte a crescer, uma vez que a remuneração destes investimentos não depende dos governos, mas do estado da economia. A própria crise da economia é sinal de que deixaram de investir, que é o que causou a paralisação da economia e a consequente queda da arrecadação e o desajuste fiscal. O ajuste fiscal real só virá com o ajuste da economia, que depende da superação da crise, mas o ajuste da remuneração dos credores do Estado deve ser imediato. O governo ‘dos trabalhadores’ ganha a confiança dos parasitas da dívida pública mas perde a confiança dos seus eleitores. É um dilema insolúvel dos governos ditos ‘social-democratas’ diante das crises econômicas.

O ‘ajuste fiscal’ consiste, em síntese, em transferir rendimentos dos bolsos dos trabalhadores para os bolsos dos credores da dívida pública. No caso do Brasil, hoje, cortaram-se, em primeiro lugar, gastos referentes a direitos dos trabalhadores do setor privado: seguro-desemprego, assistência médica, abono, etc, em valor estimado de cerca de R$ 70 bilhões. Está em curso, em meio a reações e greves, o processo de imposição de cortes salariais dos trabalhadores do setor público. O exemplo das IFEs é ilustrativo e permite quantificar o processo de transferência: o reajuste obtido pelos docentes, em março, referente a 2014, foi em média de 5%, enquanto a inflação de 2014 foi superior a 8%. No reajuste escalonado em 4 anos, que está sendo proposto pelo governo, o reajuste do início do próximo ano, referente a 2015, é de cerca de 5%, enquanto a inflação prevista para o presente ano, no momento, aproxima-se dos 9%. O cenário dos anos seguintes ainda é incerto, mas dificilmente será melhor para os assalariados, pois a inflação quase certamente será superior aos 4% de reajuste propostos pelo governo.  Isto sem contar as categorias que estão com salários defasados por diversos anos. Não dispomos do valor preciso da folha salarial anual dos docentes das IFEs, mas, supondo que seja de R$ 20 bi em 2015, segundo estimativa citada recentemente, que já incorpora a correção referente a 2014[1], e acrescentando a correção proposta referente a 2015, a folha salarial de 2016 seria de R$ 21 bi, quando deveria ser de R$ 22,1 bilhões[2], de modo que o governo federal já teria transferido, dos bolsos dos docentes para os bolsos dos detentores da dívida pública, para a ‘tranquilidade’ destes, nada menos que R$ 1,4 bilhões em dois anos. Esta é a lógica do ‘ajuste fiscal’. Percebe-se que a ‘tranquilidade’ dos parasitas da dívida pública custa caro, não só em dinheiro, mas em intranquilidade para o restante da população e, no nosso caso, dos docentes e técnico-administrativos das IFEs. Isto sem contar com os drásticos cortes anunciados em bolsas, financiamento e material de pesquisa, investimentos em infraestrutura, etc.

[1] Como a folha salarial de R$ 20 bilhões em 2015 incorpora a correção salarial de 5%, em comparação com a inflação de 6,5% em 2014, deduz-se que a folha salarial de 2014 foi de aproximadamente R$ 19,05 bilhões e a de 2015 deveria ser de R$ 20,3 bilhões, em vez de R$ 20 bilhões, resultando em uma ‘economia’ de R$ 0,3 bilhões em 2015.

[2] A correção de 9% (estimativa conservadora da inflação de 2015) sobre a folha salarial de 2015, que deveria ser de R$ 20,3 bilhões, resulta em R$ 22,1 bilhões em 2016 e uma ‘economia’ de R$ 1,1 bilhões em relação à folha de 2016 resultante do reajuste de cerca de 5% proposto pelo governo para 2016. Somada aos R$ 0,3 bilhões de 2015, a ‘economia’ total nos dois anos seria de R$ 1,4 bilhões.


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Fonte: http://blogoosfero.cc/blog-do-tarso/blog-do-tarso/o-ajuste-fiscal-e-a-paz-de-espirito-dos-tubaroes