Hoje na Folha de S. Paulo
O show [de abertura] não foi tão belo e tão grandioso quanto o chinês, mas foi democrático e progressista
As Olimpíadas são uma manifestação esportiva e cultural universal, mas não me lembro de ter visto um show de abertura tão nacionalista, tão contemporâneo e politicamente tão progressista. Durante duas horas vimos os britânicos celebrarem de maneira bem-humorada seus grandes feitos econômicos, científicos, culturais e sociais.
Lá estava a velha Albion, tanto a agrícola e pastoril quanto a da Revolução Industrial, da ciência moderna e da descoberta da internet. Lá estava o Reino Unido da rainha Elisabeth 2ª e de Shakespeare, a Grã-Bretanha do rock, da cultura pop e dos Beatles, de James Bond e da Alice de Lewis Carroll, das histórias infantis e de Harry Potter, do cinema britânico, das “Carruagens de Fogo” e de Mr. Bean. Lá estavam uma sociedade multicultural e seu Estado do bem-estar social representado pelo National Health Service. E nenhum sinal do poderio britânico, de sua City e suas bombas.
O show não foi tão belo nem tão grandioso quanto o chinês, mas foi democrático e progressista. Foi um show político. Foi um show de uma sociedade democrática que acredita e vê o progresso acontecer. Algo que é difícil em um mundo que vive a ressaca dos 30 anos neoliberais -vive a longa recessão que a crise financeira de 2008 desencadeou.
Durante 30 anos, o Estado do bem-estar social enfrentou crise, foi ameaçado por uma coalizão política de rentistas, financistas e economistas neoliberais que nos diziam que, na era da globalização, não havia mais espaço para um Estado dessa natureza. Que “racional” era um Estado cujas normas limitar-se-iam a garantir a propriedade, os contratos e a moralidade pública; que defendesse os ricos, já que não faziam parte das suas preocupações a fraude ou o estelionato dos quais os anos neoliberais foram pródigos.
Entretanto, como incurável otimista que sou, sempre afirmei que o Estado do bem-estar social resistiria ao ataque neoliberal, porque era realizado em democracias, e, nelas, a vontade do povo vale -uma vontade que é a favor dos grandes serviços sociais universais que caracteriza essa forma de Estado. Vivemos no tempo da democracia social, e nele a tentativa reacionária de voltar ao século 19 -o tempo do Estado liberal- não faz sentido.
Agora, diante do grande show de abertura com que nossos amigos britânicos nos brindaram, vemos mais um confirmação dessas verdades. De repente, aparece diante de nós, em uma grande festa nacional e mundial, o National Health Service (correspondente ao nosso Sistema Único de Saúde) como um personagem principal. Como uma grande realização britânica, e como a encarnação do bem. O que, de fato, é.
Entre os direitos fundamentais que o homem moderno definiu e vem conquistando -os direitos à liberdade, ao bem-estar econômico, à justiça, à proteção do ambiente, e à educação- está o direito universal aos cuidados de saúde. Nenhum direito é mais universal do que esse. Enquanto, nos outros, podemos justificar alguma desigualdade, nada justifica a desigualdade no caso da saúde. Não há nenhuma razão para que os mais ricos, ou os mais poderosos, ou os mais interessados tenham melhores cuidados de saúde. Essa verdade simples da democracia social foi belamente reafirmada na abertura da Olimpíada.
Filed under: Política Tagged: Bresser Pereira, Democracia social
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