Presidente da República é treinador de time de futebol?
Impeachment e cultura futebolística
por Júlio Cezar Bittencourt Silva
Desde 1º de janeiro de 2015, assistimos no Brasil à construção de uma narrativa, ainda que velada, cujo objetivo é o de trivializar o processo de impeachment, previsto no artigo 85, da Constituição da República de 1988.
De fato, desde a posse da Presidente Dilma Roussef em seu novo mandato, já se articulavam movimentos tendentes à sua cassação, algo que mais parecia um 3º turno das eleições, um eco da insatisfação daqueles que restaram derrotados nas urnas, democraticamente, no pleito de 2014.
Com o agravamento da crise econômica vivenciada pelo Brasil na atualidade, que ganhou mais força a reboque da crise política que temos assistido, o clamor pelo impeachment aumentou, e uma das peças que pediam sua instauração foi admitida pelo Presidente da Câmara dos Deputados, o suspeitíssimo senhor Eduardo Cunha.
Pois bem, muito embora esteja em curso essa narrativa da trivialização do impeachment, não é possível concluir da leitura do texto constitucional que este seja possível sem o cometimento de um crime de responsabilidade, no desempenho do mandato, pelo Presidente da República.
Sim, a despeito da tentativa de afirmar a constitucionalidade do processo de impeachment que, de fato, em tese, é constitucional, sem que haja o cometimento do crime de responsabilidade, o processo de impeachment torna-se mero eufemismo para golpe de estado travestido de obediência a alguma institucionalidade.
O que vivenciamos, na verdade, é um processo de impeachment pautado por um pretenso clamor das ruas, insuflado por um mau momento econômico (que nem de longe é o pior já enfrentado por esta nação), em que se tenta indicar que a única saída para a crise seria a troca de comando da Presidência da República.
Impossível não lembrarmos, nesse ponto, da cultura futebolística brasileira em face de crises enfrentadas por qualquer time de futebol: diante de um mau momento enfrentado pela equipe, iniciam rumores de que o comandante do time está ameaçado em seu cargo; e se o mau momento não for rapidamente superado, o treinador da equipe é demitido.
O que se pretende com essa trivialização do processo de impeachment parece, justamente, uma tentativa de se estender, ao campo da política, essa tão criticada prática do mundo futebolístico brasileiro: diante de um mau momento enfrentado pela equipe (nação), iniciam rumores de que o comandante do time (Presidente da República) está ameaçado em seu cargo.
Ocorre que não é assim que podem se passar as coisas no campo da política.
O único fundamento hábil para a cassação de um mandato de um Presidente da República democraticamente eleito, é o cometimento, por este, de um crime de responsabilidade no desempenho do mandato.
E, no presente processo de impeachment, diante de cometimento de crime de responsabilidade não se está. Afinal, as ditas pedaladas fiscais (outra metáfora futebolística, que anteriormente eram chamadas de contabilidade criativa), nada mais representam do que inadimplementos contratuais com bancos públicos – dos quais a União é credora, e não devedora – que acarretam passivos contábeis no custeio de programas de governo, passivos estes que já foram devidamente pagos. Por fim, somente com o reconhecimento de que as pedaladas fiscais inviabilizaram o superávit primário, é que se poderia, em tese, impedir a expedição de decretos de abertura de créditos suplementares, dando ensejo, aí, a um crime de responsabilidade – um drible argumentativo (nova metáfora futebolística) que não pode ser utilizado em matéria criminal.
Pois bem, ainda que possam ser criticáveis, do ponto de vista contábil, as ditas pedaladas fiscais, jamais poderão ser consideradas como crime, até porque não se tratam de operações de crédito, nos termos do art. 3º, da Resolução 43/2001, do Senado Federal. Tampouco podem ser consideradas crime de responsabilidade.
Isso porque, em primeiro lugar, nada têm ou tinham de irregulares, tanto que são e foram largamente praticadas por governadores de estado e pelos antecessores da Presidente da República.
E, em segundo lugar, ainda que irregulares sejam consideradas, somente podem o ser para o futuro, dado que uma decisão do Tribunal de Contas da União não pode considerar, retroativamente, irregular uma conduta que sempre foi considerada regular por esta mesma Corte de Contas. Afinal, a Lei Federal de Processo Administrativo, Lei 9.784/1999 (que orienta o processo, também, no TCU) veda a aplicação retroativa de nova interpretação (art. 2º, § ún., inc. XIII).
Ora, como estamos diante de inovação de entendimento do TCU, este somente pode ser aplicado para práticas havidas após a sua publicação. E, após a publicação da decisão do TCU, não ocorreram novas pedaladas fiscais. Diante do que, não se pode concluir que houve o cometimento de crime de responsabilidade pela Presidente da República no exercício do presente mandato.
Com o que se tem outra conclusão imperiosa: se não há crime de responsabilidade, o processo de impeachment possui fundamento exclusivamente político. E a Constituição da República de 1988 veda tal hipótese.
Em face do que, a despeito dessa tentativa de trivialização do impeachment, é imperioso ter-se que na inexistência de crime de responsabilidade, não há como se julgar procedente um pedido dessa ordem.
A não ser que se pretenda instituir na política brasileira a criticável cultura futebolística de troca de comandante no mau momento. Algo que, nesse momento, pode até representar, para alguns, algo útil. Mas que pode trazer, e trará, no futuro, malefícios imprevisíveis para a jovem democracia brasileira. Noutras palavras, teremos um precedente perigosíssimo de que o impeachment passe a ter como fundamento qualquer crise econômica ou política. Ou seja, no futuro todo mundo vai querer um impeachment para chamar de seu.
Júlio Cezar Bittencourt Silva (Professor de Direito Administrativo da Faculdade CNEC de Campo Largo, é mestre e doutorando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná)
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