Os enunciados normativos, ao servirem de instrumento na interpretação e aplicação, devem propiciar segurança como importante valor, coerente com a sociedade plasmada na Constituição brasileira. A centralidade desse valor assentada na legalidade constitucional recolhe da metáfora grega de Archilochus o sentido do ouriço, tal como descrito em Dworkin (em Justice for Hedgehogs): o ouriço sabe uma coisa muito importante. Seu universo, portanto, é unitário.
Nada obstante, os enunciados se revestem de polissemia: de um mesmo enunciado podem emergir diversas normas como também distintas interpretações. Essa possibilidade de respostas diferentes e às vezes incompatíveis entre si, repõe em cena, a partir da mesma metáfora antes mencionada, o significado da raposa, tal como exposta por Isaiah Berlin (no ensaio que escreveu sobre Tolstoi) : a raposa sabe muitas coisas. Seu mundo é, pois, plural.
Se, de uma parte, a prestação jurisdicional demanda legitimamente espaços de solução do caso concreto, tem havido, de outra, choques em termos de limites e possibilidades de atuação dos julgadores, especialmente das Cortes Superiores no Brasil.
Observa-se, em razão disso, adesão progressiva no Judiciário aos ‘precedentes’ como sustentação da razão de decidir, o que traduziria, nesse horizonte, busca maior pelo respeito à autoridade dos julgados. Almeja-se, pois, estabilização.
Tal estabilidade tem sido garantida? Diante de expressivo número de julgados, tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do Superior Tribunal de Justiça, calha ressaltar que a almejada segurança não se coaduna com juízos estritamente pessoais nem com a imotivada negação do passado. A continuidade, assim, não é absoluta, mas pode ser sintoma de compromisso com a justiça. Vem daí que a jurisprudência, pois, não merece tal nome se variar ao sabor das percepções pessoais momentâneas.
A realidade social e econômica tem se mostrado dinâmica, especialmente diante das inovações tecnológicas incessantes ou de mudanças normativas no plano internacional. Logo, é perfeitamente compreensível (e desejável) que a conformação dos casos concretos demande novas soluções. Assim o fez o STF ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental número 54, concernente às células-tronco, bem assim o STJ, quer ao homologar sentença eclesiástica de anulação de casamento religioso, com base no acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, quer ao alterar a orientação referente à contribuição previdenciária sobre o valor do salário-maternidade e de férias.
Segurança jurídica, pois, não significa imutabilidade, mas sim um mínimo indispensável de previsibilidade, em patamares compatíveis com o dinamismo e o cosmopolitismo. Eis, então, o desafio: como encontrar a solução correta no texto constitucional e nas normas infraconstitucionais? Como não sucumbir ao reducionismo simplista da metáfora sobre ouriços e raposas?
O que se espera é que tanto o STF, em matéria constitucional, quanto o STJ, no campo da legislação federal, não apenas formalmente afirmem suas competências como consolidem a unidade do sistema jurídico, cumprindo com a missão de expor, com nitidez, as razões de seu decidir, adequadas como tradução da previsibilidade e da coerência. Os denominados ‘precedentes’, cujo sentido não é unívoco, podem contribuir, nesse limite, com esse desiderato.
Será isso suficiente? Há, a rigor, compromisso ainda mais elevado com a segurança jurídica e que vem marcado pela obediência à legalidade constitucional. Não basta o encadeamento formal de ‘precedentes’ (mesmo aqueles realmente merecedores de tal denominação), antes e acima de tudo, cumpre ser a imagem especular do ordenamento jurídico constitucional.
Trata-se, assim, tanto da legalidade constitucional quanto da compreensão sobre a natureza jurídica de tais precedentes. Quanto a estes, anote-se que, realmente, a decisão pode não ter somente efeito meramente persuasivo. O precedente pode realmente se apresentar como binding precedent (vinculante). Impende, então, reconhecer a aproximação dos sistemas do civil law e do common law, especialmente no redesenho atual do stare decisis.
Estabilidade e simplificação foram os princípios à época indicados pelo Ministro Victor Nunes Leal, que, no Supremo, construiu a finalidade da súmula correspondente ao enunciado de entendimento predominante, inclusive no terreno da declaração de inconstitucionalidade. O julgador, contudo, não se substitui ao legislador. A legalidade constitucionalconstitui fonte e baliza do sistema jurídico.
Hoje, ainda com maior ênfase, a ética da confiança no direito positivado a equilibrar-se com a estabilidade de entendimentos jurisdicionais, os quais, por si só, se imutáveis indefinidamente ou mutáveis imotivada ou constantemente também geram insegurança. Tal temperamento passa pelo rigor da fundamentação racional das decisões, e alcança o sentido da segurança não apenas como garantia de legítimas expectativas, mas também como incidência material da legalidade constitucional.
De quantos corpos se comporia, então, a segurança jurídica plena? A resposta se agasalha na complexidade que pode ser arrostada pela metáfora de Kantorowicz ao divisar os dois corpos do rei.
Com efeito, a dupla imagem fornece o primeiro passo para apreender o que se revela dentro do continente que compõe a concepção de segurança plena. No primeiro corpo está o terreno da raposa, das vicissitudes da conjuntura em que se vive; numa palavra: nele se apresenta o campo das efemérides humanas, vertidas nos pronunciamentos jurisdicionais: (i) ora pelo julgado que, face às efetivas peculiaridades do caso concreto, não configura precedente, (ii) ora pelo precedente julgado que, ao consolidar entendimento predominante, consiste em pronunciamento vinculante, (iii) ora marcado por nova orientação (overruling), motivadamente assentada; no segundo corpo, está a senda do ouriço, a unidade desejável que se exercita, também despida de sentidos insolúveis, na expressão da legalidade constitucional; nesta se compreende a Constituição formal, substancial e prospectiva.
Diante dessa dualidade imbricada, é a segurança jurídica um cavaleiro de duas épocas: tanto segue ou arrosta os arquétipos legislativos, bem como, sem preconceitos nem cópias colonizantes, apreende a força construtiva dos fatos sociais complexos.
Sob o oxigênio da Constituição, essa plenitude imprime à segurança jurídica o destino do que afirmou Ihering: “não é a vida que é o conceito, antes os conceitos existem por causa da vida”. Por essa dogmática jurídica crítica, a confiança na jurisdição pressupõe respeito à lei e julgamentos sólidos sem surpresas.
Luiz Edson Fachin. Advogado. Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná. Pesquisador convidado do Max Planck-Institut für Ausländisches und Privatrecht, de Hamburgo, Alemanha. Professor Visitante do King´s College, de Londres, Inglaterra.
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