Por ENEIDA DESIREE SALGADO
As eleições deste ano foram marcantes. E não por bons motivos. A divisão do país em duas torcidas organizadas, com gritos de guerra e táticas contra o “inimigo”, demonstra que não alcançamos uma cultura democrática tolerante, apesar dos avanços nos índices sociais.
Para garantir autenticidade exige-se um sistema de controle das eleições. O Brasil, na Revolução de 1930, optou pelo Poder Judiciário como o grande ator do controle da disputa eleitoral, reunindo competências administrativas e jurisdicionais. Na restauração da Justiça Eleitoral depois do Estado Novo, incluiu-se a possibilidade de expedir instruções e respostas às consultas. O Código Eleitoral de 1965 – em vigor – mantém a opção pelos magistrados, mas deixa claro em sua exposição de motivos a negação ao caráter normativo de suas decisões.
A Constituição de 1988 adota a Justiça Eleitoral como garante da autenticidade das eleições, reconhecendo-lhe competência administrativa (ao não estabelecer um outro ente para organizar o pleito) e jurisdicional. Não lhe atribui poder normativo, nem sequer regulamentar. Opta pelo controle judicial das eleições, mas mantém as decisões sobre as regras do jogo democrático nas mãos do parlamento.
Apesar disso, a Justiça Eleitoral, além de aplicar a legislação eleitoral na organização das eleições e resolver os conflitos derivados da ofensa às regras, tem inovado no ordenamento jurídico, criando obrigações e restringindo direitos. Ao arrepio da Constituição, o Tribunal Superior Eleitoral cria as regras, aplica-as e julga quando do descumprimento das mesmas. Apita o jogo, mas também institui as normas e, cada vez mais intensamente, cruza, cabeceia e defende. Um poder incontrolável.
Nestas eleições, as guinadas foram surpreendentes. A mais acentuada, na reta final da disputa, foi a nova compreensão da liberdade de expressão na propaganda eleitoral, buscando coibir a chamada propaganda negativa. O TSE resolveu, aos 40 minutos do segundo tempo, mudar as regras. Da decisão do ministro Carvalho Neto se extrai: “ataques deste tipo prestam desserviço ao debate eleitoral fértil e autêntico e, em maior escala, à própria democracia, por isso foi preciso fixar novos parâmetros para a propaganda em rádio e televisão” (Representação 165.865). Atenção: o ministro fala em “fixar novos parâmetros para a propaganda”, o que revela a sua atuação forte na definição de regras eleitorais, atividade exclusiva do Poder Legislativo.
Para evitar que a Justiça Eleitoral torne-se um poder absoluto, incontrastável e incontrolável, proponho a separação das funções da governança eleitoral em autoridades distintas. Desde logo, defendo que apenas o Congresso Nacional pode criar e alterar regras eleitorais. E, em tempo: o Poder Legislativo segundo as normas constitucionais, sem propostas criativas inconstitucionais como “constituintes exclusivas” e coisas do gênero.
A administração das eleições, área em que a Justiça Eleitoral brasileira é absolutamente reconhecida por sua capacidade e credibilidade, deve ser feita por um órgão constitucional autônomo, que aproveitaria a atual estrutura da Justiça Eleitoral e seus servidores. Esse órgão, independente em relação aos demais poderes, teria sua cúpula protegida por um estatuto constitucional composto por prerrogativas e restrições, e uma forma de nomeação que envolvesse o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com mandatos fixos.
O controle jurisdicional das eleições deve ser conferido à Justiça Federal e a seus juízes permanentes, em varas especializadas e, nos Tribunais Regionais Federais e no Superior Tribunal de Justiça, em turmas especiais, para dar conta dos prazos exíguos do Direito Eleitoral. Juízes protegidos pelo estatuto constitucional da magistratura, aos quais se garantem a vitaliciedade e a inamovibilidade, e com familiaridade com o direito público.
A divisão de funções serviria para equilibrar a atuação da autoridade administrativa com a possibilidade de revisão jurisdicional e para garantir a segurança nas regras da disputa eleitoral. Se querem uma reforma política de fundo, aí está um bom começo. Uma reforma institucional, e não apenas mudanças pontuais que fortalecem os partidos e diminuem o pluralismo político.
Eneida Desiree Salgado é professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da UFPR.
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