Na Folha de S. Paulo de hoje
Filósofo húngaro encara a crise do capitalismo
ELEONORA DE LUCENA
RESUMO O filósofo húngaro István Mészáros, principal discípulo e conhecedor da obra de seu conterrâneo György Lukács, lança livro e faz palestras no Brasil. O pensador marxista argumenta que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram e defende mudanças estruturais para conter a crise do capitalismo.
A atual crise do capitalismo, que faz eclodir protestos por toda a parte, é estrutural e exige uma mudança radical. Essa é a visão do filósofo István Mészáros, 82.
Professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o marxista Mészáros defende que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele diz que o avanço da pobreza em países ricos demonstra que “há algo de profundamente errado no capitalismo”, que hoje promove uma “produção destrutiva”.
Mészáros vem ao Brasil para palestras em São Paulo (amanhã, no Tuca, às 19h), Marília, Belo Horizonte e Goiânia. Maior discípulo e conhecedor da obra do também filósofo húngaro marxista György Lukács (1885-1971), Mészáros lançará aqui o seu livro “O Conceito de Dialética em Lukács” [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 176 págs.], dos anos 60.
A mesma editora lança, de Lukács, “Para uma Ontologia do Ser Social 2″ [trad. Ivo Tonet, Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes, R$ 98, 856 págs.] e o volume “György Lukács e a Emancipação Humana” [org. Marcos Del Roio, R$ 39, 272 págs.].
Folha – O sr. vem ao Brasil para falar sobre Lukács. Como avalia a importância das suas ideias hoje?
István Mészáros - Lukács foi meu grande professor e amigo por 22 anos, até sua morte, em 1971. Ele começou como crítico literário e transitou para temas filosóficos fundamentais, em trabalhos com implicações de longo alcance. Fala-se menos de sua atuação política direta entre 1919 e 1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo revolucionário da Hungria em 1919 e é um exemplo de que moralidade e política não só devem como podem andar juntas.
Sua vida e a dele unem teoria e prática. Que diferença há entre ser militante marxista no séc. 20 e hoje?
A dolorosa e grande diferença é que os principais partidos da Terceira Internacional, que teve uma força organizacional significativa e até influência eleitoral durante algum tempo, implodiram. Como um militante intelectual por mais de 50 anos, ele estaria desolado hoje.
Quando a União Soviética acabou, muitos previram o fracasso do marxismo. Depois, com a crise de 2008, muitos previram o fim do neoliberalismo e a volta das ideias de Marx. O marxismo está em expansão?
Conclusões apressadas geralmente nascem mais de desejos do que de evidências. O colapso do governo [Mikhail] Gorbatchov (1985-91) não resolveu nenhum dos problemas em questão na URSS. Também não é possível descartar o neoliberalismo só pelo fato de que suas ideias são perigosamente irracionais. Em certas condições, até absurdos perigosos obtêm apoio em massa, como mostra a história.
A mudança de humor que colocou “O Capital”, de Marx, de novo na moda não significa que as ideias marxistas estejam avançando. É inegável que o aprofundamento da crise está gerando protestos mundo agora. Mas encontrar soluções sustentáveis requer a elaboração de estratégias e de formas de organização.
E as ideias conservadoras? Elas estão ganhando mais adeptos?
Inegavelmente, ainda que não sejam sustentáveis. “Não mudar” é quase sempre mais fácil do que “mudar” uma forma de comportamento. Na situação atual, respostas podem requerer esforços maiores do que seguir o que “deu certo”.
Qual seria uma boa definição para o período histórico atual?
Há diferença fundamental entre as tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado (que pertencem à normalidade do capitalismo) e a crise estrutural do sistema do capital como um todo –que define o atual período. Nossa crise estrutural (que nasce no final dos anos 1960 e se aprofundou desde então) necessita de mudanças estruturais.
Quais são as figuras mais importantes deste século 21 até agora?
A figura política cujo impacto deve perdurar e se estender é a do presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013). Fidel Castro foi muito ativo na primeira metade desta década, mas as raízes de seu impacto histórico estão nos anos 50. Do lado conservador, se ainda estivesse vivo, eu não hesitaria em nomear o general De Gaulle. Ninguém neste século chegou a sua estatura no lado conservador.
E o evento mais surpreendente?
É provavelmente a velocidade com que a China conseguiu se aproximar da economia norte-americana, alcançando o ponto em que ultrapassá-los é considerado factível em alguns anos. No entanto seria ingênuo imaginar que a China possa permanecer imune à crise estrutural do sistema do capital. Mesmo o superávit de trilhões de dólares dos chineses pode evaporar numa turbulência.
O capitalismo se fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
As tradicionais crises cíclicas/conjunturais fortaleciam o capitalismo, já que eram eliminadas empresas capitalistas inviáveis. Assim, ocorria o que [Joseph] Schumpeter (1883-1950) idealmente chamou de “destruição criativa”. Os problemas são mais sérios hoje, porque a crise estrutural afeta de forma perigosa até a dimensão mais fundamental do controle metabólico social da humanidade, incluindo a natureza. É mais apropriado descrever o que ocorre como “produção destrutiva”.
A crise provocou mudanças políticas em muitos países. É possível discernir um movimento geral, para a esquerda ou para a direita?
Até agora, é mais para a direita do que para a esquerda. Todos os governos “capitalistas avançados” adotaram políticas que tentam resolver problemas pela “austeridade”, com cortes reais em salários e nos padrões de vida já precários dos “menos privilegiados”. Mas é improvável que essas políticas produzam soluções duradouras.
Como o sr. previu, a pobreza aumentou. Nos EUA, a desigualdade cresceu. O que está errado no capitalismo?
Certamente há algo de profundamente errado e insustentável na maneira como o crescimento é perseguido sob o capitalismo. Há alguns dias o ex-primeiro-ministro britânico John Major reclamava que neste inverno muitas pessoas no Reino Unido terão de escolher entre comer e se aquecer. Em 1992, quando era premiê, ele disse, com autocomplacência: “O socialismo está morto; o capitalismo funciona”. Eu disse, então: “Para quem e por quanto tempo?”. O único crescimento com significado é o que responde à necessidade humana.
A crise ampliou o desemprego em muitas regiões e abalou o Estado de bem-estar social na Europa. Multidões foram às ruas protestar. Os partidos de esquerda estão se beneficiando desses movimentos?
O Estado do bem-estar social foi limitado a um punhado de países capitalistas e se ergueu sobre fundações frágeis. A tendência que se nota e que se aprofunda eu já havia caracterizado nos anos 70 como “equalização descendente da taxa diferencial de exploração”. Isso diz respeito às diferenças nos ganhos por hora de trabalhadores para o mesmo trabalho na mesma transnacional na “metrópole” e em países “periféricos”.
Os protestos em muitos países capitalistas são compreensíveis e devem se agudizar. Eles surgem no arcabouço dessa tendência perversa. Os partidos que operam no enquadramento da política parlamentar, compreensivelmente, não podem se beneficiar dos protestos –eles tendem a acomodar seus objetivos a limites restritos.
Os protestos no Brasil têm conexão com os de outros países?
É impossível achar hoje um lugar no mundo onde não estejam ocorrendo protestos sérios. Eles parecem ter diferentes temas, criando uma impressão superficial de que não há correlação entre eles. É um autoengano. A grande variedade de protestos não se enquadra nos modos de ação da política tradicional, mas isso não é prova de sua irrelevância. Ao contrário, apontam para as razões mais profundas dos problemas e das contradições acumuladas.
Qual a relevância das ideias socialistas hoje?
As ideias socialistas têm sido definidas desde o início como as que requerem uma época histórica para a sua concretização, embora os problemas imediatos, de onde elas devem partir, sejam muito dolorosos. Elas requerem não apenas os serviços urgentes mas também prevenção para as doloridas infecções no longo prazo. As ideias socialistas são, portanto, mais relevantes hoje do que jamais foram.
O socialismo ou o comunismo são objetivos atingíveis no futuro? Há risco de barbárie?
Como já escrevi antes, se tivesse que modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, acrescentaria: “Barbárie se tivermos sorte”. Porque o extermínio da humanidade é a ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos em resolver os grandes problemas que se espalham por todas as dimensões da nossa existência e nas relações com a natureza, o perigo seguirá no horizonte.
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