Na Folha de S. Paulo de hoje
‘Pai’ do Pré-Sal condena leilão e alerta para riscos de conflito de interesses no consórcio com integrantes estrangeiros
ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULO
As reservas de Libra são estratégicas e o Estado deveria ter contratado a Petrobras (que as descobriu) para operá-las em 100%. A opinião é de Guilherme Estrella, 71, considerado o “pai do Pré-Sal” (ele não gosta dessa denominação, pois diz que o mérito é de uma equipe).
Ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras, o geólogo que mapeou a megarreserva faz críticas ao leilão realizado há uma semana e alerta para problemas no consórcio que vai extrair o petróleo (Petrobras, a anglo-holandesa Shell, a francesa Total e duas estatais chinesas).
Para ele, as grandes empresas petrolíferas mundiais, inclusive a Petrobras, representam e defendem os interesses de seus países.
“Energia é fator crítico da soberania e do desenvolvimento de qualquer país. Há, portanto, um potencial conflito de interesses geopolíticos absolutamente inerente à presença de estrangeiros numa gigantesca reserva petrolífera como é Libra. Se vai eclodir, não sei. Mas que está lá, está.”, afirma.
Folha – Por que o sr. foi contrário ao leilão de Libra?
Guilherme Estrella – As minhas críticas concentraram-se no aspecto estratégico para o Brasil. Trata-se de gigantesco volume de petróleo, agora compartilhado com sócios que representam interesses estrangeiros -de potências estrangeiras-, sobre cujo alinhamento com o posicionamento geopolítico de um país emergente da importância do Brasil não temos a menor garantia.
A Petrobras, que mapeou a estrutura de Libra e perfurou o poço descobridor, como empresa controlada pelo Estado, deveria ter sido contratada diretamente, como permite o marco do Pré-Sal.
A inclusão dessa alternativa teve como causa a eventualidade de se tratar com reservas cujas dimensões tivessem valor estratégico para o Brasil. Esse é o caso de Libra, que deveria ter sido discutido com a sociedade e também com a base de apoio do governo no Congresso Nacional.
A Petrobras poderia operar sozinha?
A própria presidente da companhia afirmou que a Petrobras tinha o maior interesse em operar Libra sozinha, mas que só poderia iniciar os trabalhos em 2015. 2015 é amanhã. Não subsiste, portanto, o argumento de que leiloar Libra agora seria para antecipar a produção.
Por que o governo tirou da Petrobras a possibilidade de operar sozinha no Pré-Sal? Só a questão do superavit primário explica esse movimento?
Será que podemos priorizar exigências financeiras momentâneas com aspectos econômicos e políticos da estratégia geopolítica brasileira ao longo deste século 21?
A revista alemã “Der Spiegel” disse que o Brasil leiloou um tesouro por uma pechincha. O sr. concorda?
Não conheço a racionalidade econômico-financeira que levou aos 41,65% [parte do petróleo a ser entregue ao Estado brasileiro]. Fantástico. Como geólogo, não entendo como chegaram a essa precisão! Acusar de xenofobia aqueles que defendem esta opinião é injusto, equivocado e apequena a dimensão estratégica do assunto.
Por que Libra é estratégico?
O caráter estratégico das reservas petrolíferas é inquestionável. Não se invadem e ocupam militarmente países soberanos para apropriação de refinarias.
É possível construir uma refinaria em qualquer lugar do planeta, mas as grandes reservas de óleo e gás estão onde as condições geológicas assim o determinaram.
O pessoal da Argélia, do Iraque, da Nigéria, da Líbia, do Egito sabe disso na pele. O Sudão do Sul foi “fundado” por causa disso.
As monarquias medievais, absolutistas e repressoras da Península Arábica são mantidas pelo mesmo motivo: assegurar reservas de petróleo e gás natural às grandes potências hegemônicas ocidentais.
Não se está a ver fantasmas! Essa é a realidade da geopolítica mundial, escancarada e desavergonhadamente exibida nas últimas três décadas por meio de ações políticas e militares por parte dos países centrais ocidentais.
O sr. considera inapropriado ter sócios estrangeiros na exploração do Pré-Sal?
Não sugeri que ter sócios estrangeiros é “inapropriado”. Argumento que, em se tratando de uma imensa riqueza estratégica concentrada (em Libra) de um produto de tal forma fundamental e sensível para o mundo -e principalmente para as nações hegemônicas mundiais dele dependentes- a sociedade brasileira tem o dever de discutir a conveniência de tê-las como sócios.
As grandes empresas petrolíferas mundiais, inclusive a Petrobras, representam e defendem os interesses de seus países-sedes, nos países onde atuam.
Sua preocupação está relacionada aos interesses divergentes entre produtores e consumidores de petróleo presentes no consórcio?
A turma de topo da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) controla o preço, mas não tem soberania, autonomia, independência para sustar o suprimento. Simplesmente porque interesses divergentes entre grandes produtores e grandes consumidores não conflitam por causa do preço do barril, mas pelo compromisso dos produtores em suprir incondicionalmente os volumes exigidos pelas economias hegemônicas representadas pelos grandes consumidores.
Gente que estudou o assunto afirma que o barril de petróleo do Oriente Médio sai a mais de US$ 300 para a União Europeia e para os EUA, na condição “all in” dos custos de manutenção militar do “status quo” daquela região para barrar, pelas armas, qualquer iniciativa que tenda a mudar o quadro.
O Brasil tem dimensões continentais, é privilegiado em riquezas naturais e é único em integridade nacional. Aparece agora como uma potência energética, cujas reservas potenciais têm impacto no quadro energético mundial. Isso nos obriga a nos prepararmos para assumir um papel não mais de coadjuvante, mas de protagonismo mundial.
A quarta frota [dos EUA] está aí, ressuscitada não por outro motivo. Dentro deste contexto, não seria mais conveniente que uma imensa acumulação de petróleo, como Libra, ficasse 100% nas mãos do Estado brasileiro, com o poder de gerenciar tudo o que lhe concerne sem qualquer ingerência de interesses estrangeiros?
O que cada um dos sócios da Petrobras busca?
Os sócios se interessam, essencialmente, por assegurar suas respectivas partes em óleo produzido. No caso dos chineses, para suprir prioritariamente seu mercado nacional. Shell e Total também, mas são já globalizadas e com mercados muito distribuídos além do europeu.
Como seriam essas divisões internas dentro do consórcio?
A simples presença de interesses estrangeiros pode, em tese, gerar conflitos.
Energia, especialmente petróleo e gás natural, é fator crítico da soberania e do desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico de qualquer país.
Há, portanto, um potencial conflito de interesses geopolíticos absolutamente inerente à presença de estrangeiros numa gigantesca reserva petrolífera como é Libra. Se vai eclodir, não sei. Mas que está lá, está. Esse é o ponto!
Essas dificuldades, ainda que no campo das possibilidades, estariam inteiramente evitadas se Libra estivesse sob gestão exclusiva do Estado brasileiro através da contratação direta da Petrobras.
A China quer aprender a operar em águas profundas?
Pode ser que haja interesse na obtenção de conhecimento de engenharia de projeto e operacional para produzir em águas ultraprofundas. É muito importante, mas não é o essencial.
O Brasil não deveria proteger essa tecnologia?
Proteger tecnologia no mundo atual não é o foco das grandes empresas petrolíferas. O esforço maior, concretamente falando, é assegurar a condução das operações. Porque é a operação, no dia a dia, que vai permitir a permanente e contínua inovação, advinda de novos conhecimentos e, em decorrência, de novos projetos e novos processos.
RAIO-X GUILHERME ESTRELA
IDADE
71 anos
NASCIMENTO
Rio de Janeiro
FORMAÇÃO
Geólogo, formado em 1964, pela então Escola Nacional de Geologia, hoje Instituto de geociências da UFRJ
CARREIRA
- Entrou por concurso na Petrobras em 1965
- Na Petrobras Internacional, foi gerente de Exploração
- Foi diretor de Exploração e Produção da Petrobras de 2003 a 2012
Filed under: Política Tagged: Petrobras, Pré-Sal
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