Segunda-feira na Folha de S. Paulo
Projeto de lei foi fechado após escândalos envolvendo ministérios e entidades
Texto só depende do aval de Dilma para ir para o Congresso e regularia setor beneficiado com R$ 6 bi desde 2008
ERICH DECATFILIPE COUTINHODE BRASÍLIA
Após discussão com outros sete ministérios, a Secretaria-Geral e a Casa Civil encaminharam à presidente Dilma Rousseff texto de projeto de lei que altera a relação entre o governo e as ONGs.
Entre as medidas, estão a exigência de que os dirigentes tenham ficha limpa na Justiça para receber dinheiro público, aceitem salários regulados pelo governo e mudem os estatutos das organizações para tentar barrar o enriquecimento ilícito de seus integrantes.
As regras são controversas e, se aprovadas, vão mudar completamente o funcionamento das organizações não governamentais que recebem verbas federais.
Desde 2008, foram mais de R$ 6 bilhões em repasses do governo para essas entidades, mas não há lei para regular o setor, que se vale das normas de repasses da União a Estados e municípios.
Em 2011, na chamada “faxina” do governo Dilma, três ministros caíram após suas pastas serem alvejadas por irregularidades com ONGs: Esporte, Turismo e Trabalho.
Após a queda de Orlando Silva, do Esporte, o governo chegou a suspender repasses a ONGs e determinou um pente-fino em convênios.
FICHA LIMPA
A proposta de exigir ficha limpa para os dirigentes segue o molde da exigência feita aos políticos candidatos. O dinheiro será barrado não só para entidades ligadas a dirigentes condenados, mas em período de até oito anos após o cumprimento da pena.
O texto, que além dos ministérios foi discutido com 14 entidades, precisa apenas da aprovação de Dilma para seguir para o Congresso.
Outra exigência da proposta é criar um mecanismo para impedir que as ONGs, entidades sem fins lucrativos, sejam usadas para o enriquecimento dos seus membros.
A ideia é obrigar as entidades a alterarem seus estatutos se quiserem receber dinheiro público, o que encontra resistência.
Pelo texto, o patrimônio das ONGs não poderá ser distribuído aos seus integrantes. Caso a entidade seja fechada, os bens devem ser destinados a outra instituição similar. Se sobrar dinheiro, o montante também não seria distribuído entre seus membros.
Além disso, as ONGs deverão aceitar que os salários sejam pagos pelo governo, nos projetos, em valores abaixo do teto constitucional, atualmente em R$ 26,7 mil (o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal).
Outra medida é submeter projetos acima de R$ 600 mil a uma auditoria externa independente. Além disso, os ministérios deverão criar uma comissão específica para monitorar as parcerias.
Segundo levantamento do governo, entre setembro de 2008 e julho deste ano, os projetos acima de R$ 600 mil representaram cerca de 20% dos projetos, mas concentraram 80% dos repasses.
“Até hoje não existia nada que tratasse de forma direta da relação entre esses entes e as ONGs. Isso criava insegurança para todos”, diz Vera Maria Masagão Ribeiro, representante da Abong (Associação Brasileira de ONGs) que participou da elaboração do projeto de lei.
“Não existia nada que tratasse da relação entre esses entes e as ONGs. Isso criava insegurança”
VERA MARIA MASAGÃO RIBEIRO
representante da Abong (Associação Brasileira de ONGs)
ANÁLISE
Falta de marco legal é apenas um dos problemas das parcerias
GUSTAVO JUSTINO DE OLIVEIRAESPECIAL PARA A FOLHA
As organizações não governamentais desempenham no mundo papéis essenciais na proteção da cidadania, pois vocalizam as demandas da população na promoção e defesa de direitos frente a governos nacionais, mercados e organismos internacionais.
No Brasil, o florescimento de organizações da sociedade dotadas de perfil mais colaborativo do que combativo ocorreu com a redemocratização e a reforma administrativa nos fins do século 20.
Houve um reforço na realização de atividades de interesse público e na prestação de serviços sociais diretamente à população.
Essa maior aproximação entre o setor público e a sociedade vem sendo marcada por diversos problemas.
Falta de transparência, grande soma de dinheiro público envolvida, despreparo dos gestores públicos para lidar com essas parcerias, não explicitação dos resultados a serem alcançados, ineficientes mecanismos de avaliação e controle e ausência de um marco legal são alguns dos fatores que imprimem dúvidas sobre a real necessidade das parcerias estabelecidas.
Ademais, não foram poucos os escândalos de desvio de recursos públicos.
Sem prejuízo, as parcerias do Estado com as organizações da sociedade civil possuem valor estratégico, pois são importantes ferramentas para a melhoria dos baixos índices de qualidade e satisfação na prestação dos serviços em áreas sensíveis como saúde, assistência social, educação e meio ambiente.
Porém, é a administração pública quem falha quando não consegue dar respostas satisfatórias a questões consideradas cruciais ao bom uso dessas parcerias.
Apesar de as atuais propostas do governo serem insuficientes para a mudança do cenário e ainda que estejamos longe de superar as deficiências, finalmente está sendo conferido ao tema a relevância que ele merece.
GUSTAVO JUSTINO DE OLIVEIRA é professor de direito administrativo da USP
Filed under: Política Tagged: ONGs, Terceiro Setor
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