Na Gazeta do Povo de ontem
A necessidade de invalidar a licitação do transporte coletivo
Por Daniel Ferreira
No fim de 2009, nos termos de lei municipal, a Urbs deu início às tratativas internas para instauração de licitação para outorga de concessão dos serviços de transporte coletivo público urbano de passageiros, com ônibus, em Curitiba. O edital foi publicado em 29 de dezembro daquele ano e o resultado foi homologado em 9 de agosto de 2010, sagrando-se vencedores os consórcios Pontual, Transbus e Pioneiro. Dois anos depois, a regularidade do certame passou a ser duramente questionada pela própria administração, pelo TCE-PR, pela Câmara dos Vereadores e por alguns sindicatos estaduais (dos engenheiros, dos contabilistas e dos trabalhadores em urbanização), com apoio universitário.
Nesses questionamentos, foram apontados alguns vícios. Um deles é a existência de parecer prévio de advogado da Urbs rejeitando a minuta do edital e manifestando-se pela suspensão da licitação até regularização e sua veiculação sem atendimento ao referido parecer e, pior, com alterações substanciais entre as versões analisada e a publicada (assinada pelo presidente), comprometendo o princípio da legalidade.
Ainda haveria sinais ostensivos: de direcionamento do edital para empresas que já operavam o sistema, mediante exigência descabida de requisitos de habilitação e de facilitação de pagamento pela outorga (por meio de compensação com créditos devidos no âmbito municipal), o que violaria os princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade; de estipulação de critérios de valoração da proposta técnica a partir de fatores desproporcionais – em afronta aos princípios da (adequada) seleção da proposta mais vantajosa e da proporcionalidade; e de indevida aceitação da participação de consórcios, aptos à disputa de todos os lotes, constituídos por integrantes comuns – situação incompatível com os princípios do sigilo das propostas e da competitividade.
Embora as irregularidades continuem no plano das cogitações jurídicas, de fato apenas um consórcio apresentou proposta para cada lote (de 1 a 3), e cada um foi agraciado exatamente com o que queria e nas condições desejadas. Logo, a competição entre interessados exigida por lei foi concretamente nula, donde a tarifa hoje praticada pode ser “cogitada” como excessiva, porque inexistiu comparação à época. Agora, seu reexame como adequada ou excessiva depende de cotejo (impróprio) com tarifas praticadas alhures ou do exame dos custos que orientam a sua formulação.
Em conclusão, se comprovadas ditas falhas, então a declaração de nulidade da licitação é providência obrigatória, a ser exercida em seara administrativa ou judicial. Afinal de contas, a melhor exegese do art. 4.º da Lei nº 8.666/93 (a Lei de Licitações) garante a toda a coletividade (e não apenas aos licitantes) o direito público subjetivo de sua fiel observância, de modo que o tema da (in)utilidade da anulação (a partir dos efeitos dela decorrentes) nem se propõe. Mas que fique a ressalva: se não se comprovar participação dos consórcios na contaminação do edital ou mesmo do certame, então à rescisão dos contratos há de se somar a indenização necessária.
Daniel Ferreira, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUCSP, é professor do mestrado em Direito do Unicuritiba.
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Veja posição contrária à nulidade:
A gestão pública do imediatismo
Por Rodrigo Pironti
Mais uma vez um impasse na solução de problemas contratuais no transporte coletivo da capital paranaense coloca a administração pública e os órgãos de controle do Estado diante do dilema da autoridade, segundo o qual punir e anular contratos serve como hipótese primeira para dar resposta ao “interesse público” dos usuários e justificar as eventuais inconformidades dos contratos.
Os problemas contratuais do transporte coletivo de Curitiba não são novidade, tampouco foram construídos em curto prazo de tempo. Pelo contrário: grande parte das questões jurídicas levantadas pelo Tribunal de Contas do Paraná, em seu relatório de auditoria, são atribuíveis à falta de planejamento e ausência de controle da execução contratual, o que, por certo, no médio e longo prazo, levam a uma situação de insustentabilidade do modelo.
A solução pensada normalmente neste tipo de impasse jurídico é a da imediata anulação dos contratos, para que seja dada uma resposta à população, que espera autoridade do poder público. A questão é: é realmente necessária a anulação desses contratos? O resultado dessa anulação irá alterar a realidade do serviço prestado? Qual a consequência jurídica dessa anulação? E, principalmente, como ficará o usuário do serviço após esse processo?
A resposta para esses questionamentos é simples. Temos verificado historicamente que o direito da autoridade, em regra, não corresponde à melhor satisfação dos interesses dos usuários, pois geralmente interrompe a prestação do serviço e impõe ao poder público longas discussões judiciais e um ônus financeiro que o Estado atual não está autorizado a assumir. A solução, em meu sentir, é menos complexa que a resposta dada aos questionamentos anteriores, mas passa necessariamente por uma alteração do paradigma da autoridade, pois nem sempre os impasses jurídicos demandam anulação dos contratos e, ainda, nem sempre essa anulação é o que melhor satisfaz os interesses dos cidadãos.
A atuação da administração pública e o controle sobre seus atos passam atualmente por um repensar de sua postura autoritária, para permitir que, diante da verificação de eventuais inconformidades jurídicas, possa ser estabelecido um campo de diálogo entre os interessados (poder concedente, concessionária e órgãos de controle), no sentido de buscar a melhor solução ao impasse. É o que modernamente se conhece como “administração pública consensual”. Nesse modelo, soluções imediatistas e impensadas não são admitidas, pois se privilegia a razoabilidade e o bom senso na adoção de medidas mitigadoras dessas irregularidades. Logicamente, para que isso seja possível tecnicamente, são necessários alguns requisitos, como ausência de dano irreparável ao erário e de má-fé dos envolvidos, o que permitirá uma busca da solução pelo consenso.
A questão do transporte coletivo da cidade de Curitiba parece estar revestida de todos os ingredientes necessários a uma solução consensual e não imediatista, pois centrada em discussões contratuais sobre a modicidade da tarifa e cláusulas contratuais que, em sua grande maioria, são passíveis de alteração e adequação pela própria legislação, o que, por certo, não impõe a drástica solução de anulação do contrato. Assim, instrumentos como o Termo de Compromisso de Gestão ou outros instrumentos de diálogo poderiam ser utilizados para dirimir essas inconformidades, sem que houvesse um colapso na prestação do serviço e longas discussões judiciais por decisões impulsivas e imediatistas, comuns à atual gestão pública de nosso país.
Rodrigo Pironti, advogado, doutorando e mestre em Direito Econômico, é professor de Direito Administrativo da Universidade Positivo.
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