Na Carta Capital de 27 de junho de 2012
Diferenciado para quem?
POR LUIZ ANTONIO CINTRA
APROVADA EM 1993, a Lei de Licitações nunca conseguiu evitar a contento o assalto dos corruptos aos cofres públicos. Em todas as esferas da administração, burocratas bem-intencionados queimaram os neurônios para driblar os entraves jurídico-administrativos e tirar do papel os projetos de investimento. Enquanto os desonestos de plantão, em cartel ou isoladamente, se esbaldaram na lama das propinas e da ineficiência.
Na terça-feira 26, na sede do Ministério da Integração Nacional, em Brasília, esse será o pano de fundo quando um grupo responsável por gerir um quinhão relevante do PAC reservará algumas horas para ouvir o relato de profissionais da Infraero. Pressionados pela urgência que vem da cúpula e os rigores e brechas da legislação, pesarão os prós e contras do Regime Diferenciado de Contratações (RDC), iniciativa que o governo pretende estender para as obras do PAC.
Aprovada na Câmara na terça-feira 12, a medida provisória que propõe as novas regras tende a ser aprovada no Senado nas próximas semanas.
Incomodado com o ritmo lento das obras de infraestrutura em várias frentes, o Planalto argumenta que o RDC é um expediente provisório até o Congresso discutir e aprovar uma reforma ampla da Lei de Licitações, o que levará ao menos um ano e meio, segundo o deputado federal Luiz Pitiman (PMDBDF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Gestão Pública.
“As primeiras experiências com o RDC, levadas pela Infraero, demonstram que esse pode ser um instrumento bem mais eficiente. O tempo médio das licitações da Infraero, por exemplo, caiu de 250 para 80 dias”, diz Pitiman. “A Lei de Licitações é extremamente ultrapassada, não interrompeu a corrupção e é demorada demais. Com a contribuição dos três poderes, vamos propor um instrumento definitivo que vá além das obras e sirva também para as áreas de saúde, educação e outras.”
No curto prazo, não cansa de repetir a presidenta Dilma Rousseff a seus ministros, a hora é de acelerar os investimentos, daí a urgência da MP. Usado até aqui para licitar obras aeroportuárias e outras igualmente ligadas à Copa, o RDC, contudo, não é consensual. A novidade enfrenta críticas no Congresso e entre especialistas por causa de alguns de seus princípios, que sob o pretexto de encurtar o prazo entre a publicação do edital e a entrega da obra transferiria uma parcela da soberania do Estado para a iniciativa privada.
Alguns consideram o RDC inconstitucional, tese que será analisada em breve pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em um primeiro momento, contudo, caberá ao ministro Luiz Fux decidir se acata ou não as liminares para suspender a validade do regime propostas em conjunto pelo DEM, PSDB e PPS, e aquela ajuizada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel.
Para o advogado Pedro Estevão Serrano, professor da PUC-SP, os aspectos negativos superam os positivos. “O RDC traz avanços em matéria de economia de tempo, ao reduzir as possibilidades de recursos administrativos. Mas traz normas muito ruins, como a contratação integrada, que no fundo leva o Estado a abrir mão de uma parcela de sua soberania.” Para o especialista, o expediente é um resquício da voga neoliberal dos anos 1990.
A chamada contratação integrada criada pelo RDC foi usada pela primeira vez pelo governo de Mato Grosso, cuja capital, Cuiabá, será uma das sedes da Copa. Na quarta-feira 20, o governo local assinou o contrato para a construção de um trem de superfície do tipo VLT, 78 dias após a publicação do edital. O que preocupa os especialistas é que nesse formato jurídico a licitação é realizada com base em um anteprojeto de poucas especificações, cujo orçamento é inicialmente sigiloso. Coube às empreiteiras detalhar o anteprojeto em suas propostas e apresentar a previsão de custo, que para o consórcio vencedor será de 1,5 bilhão de reais. O projeto básico da obra é posterior à escolha do projeto, o que muitos consideram uma incongruência.
À frente do processo, o secretário estadual Maurício Guimarães, responsável pelo VLT de Cuiabá, faz um balanço positivo. “Além de ser mais rápido, o RDC não permite a criação de aditivos. E caso surjam imprevistos, a responsabilidade será exclusivamente da contratada, ao contrário do que ocorre hoje.” Guimarães prepara o edital para contratar uma empresa que gerencie as obras do VLT, também pelas normas do RDC. “A nova lei é um grande marco que tira todas as possíveis coisas ocultas que costumam caracterizar muitas licitações.” O secretário diz ainda que o processo levaria ao menos 120 dias até a assinatura do contrato, caso não seguissem as regras para as obras relacionadas à Copa.
O advogado Augusto Dal Pozza, coordenador de um livro sobre o tema, destaca como favorável a desburocratização que o novo marco jurídico representaria, a começar pela redução das oportunidades de recursos, mas também pela inversão das fases (com a análise das propostas prévia à habilitação dos proponentes) e a possibilidade de negociação entre as partes envolvidas após a escolha do consórcio vencedor. Dal Pozzo critica, porém, o orçamento sigiloso, por dar margem à venda de informações, já que saber o quanto o contratante estaria disposto a gastar torna-se um ativo valioso. E considera “ruim” a contratação integrada, pelos mesmos motivos apresentados por Serrano, seu colega na PUC-SP.
Próximo ao governo federal, o economista Amir Khair, ex-secretário de Finanças de São Paulo, chama a atenção para o que considera o pior dos mundos, as normas da famigerada legislação de 1993. “Fazer compras ou investir no sistema público pela lei atual é algo gravíssimo. O cipoal burocrático e o medo dos funcionários de segundo e terceiro escalões de serem responsabilizados sacrifica a todos. É preciso desburocratizar, mas também fiscalizar, não só no momento da contratação, mas também durante a execução.”
Reduzida a burocracia, diz um conhecedor da máquina pública, as obras de infraestrutura terão de encarar outro gargalo: a falta de pessoal com expertise para criar um processo de licitação eficiente, para além da inescapável retidão.
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